CONSERTAM-SE
IMÓVEIS
(“MENTIRAS
SINCERAS ME INTERESSAM”.)
Por total
falta de oportunidade, não consegui escrever sobre esta peça antes, durante a primeira temporada, no Espaço SESC, em abril passado. Agora, após a temporada relâmpago, de cinco
dias, no Teatro Glauce Rocha,
encerrada, infelizmente, no último domingo, 28 de junho, faço, porém, questão de escrever um
pouco sobre ela, por considerá-la um grande espetáculo teatral, um dos melhores
deste primeiro semestre / 2015.
Da esquerda para a direita, Suzana Nascimento,
Alonso Zerbinato, Jarbas Albuquerque e Raquel Alvarenga.
Eis
a sinopse, fornecida pela assessoria de imprensa do espetáculo:
SINOPSE:
CONSERTAM-SE IMÓVEIS conta a história
de uma família, cuja trama é firmemente entrelaçada, figurando, no centro, um
nó fundamental: a mãe, idosa e enferma.
Ao
se verem diante de situações inesperadas e de um iminente colapso, todos os
seus membros se articulam, em desdobrados esforços, para poupar a matriarca de
sobressaltos, que podem ser fatais.
Com relativo êxito, esse
controle dura, até que alguns acontecimentos escapam, novamente, do roteiro
inicial, obrigando-os a investir toda a energia em empreender novas mudanças,
justamente para que nada mais mude.
A
família é formada por INÊS (SUZANA
NASCIMENTO), TIA DORA (RAQUEL
ALVARENGA), IGOR (JARBAS
ALBUQUERQUE), TIO DARIO (EDUARDO
CRAVO), estes presentes em cena, e INÁCIO,
irmão de INÊS e IGOR, que viajara, a trabalho, e “não conseguia tempo para voltar a
casa e visitar a família”, o qual é apenas citado, o tempo todo, além da MÃE dos três, que mora na mesma casa,
mas vive reclusa, num quarto, enferma, não aparecendo em cena nem participando,
sequer, com sua voz em “off”.
Um
dos maiores destaques desta peça é o texto,
de KELI FREITAS, a qual bebeu na
fonte do escritor argentino Julio
Cortázar (1914 / 1984). Como na obra
do consagrado escritor, o estranho, o fantástico, o mágico desfilam, lado a lado, no
palco.
Mais propriamente,
o texto da peça baseia-se no conto “A Saúde dos Doentes”, daquele consagrado
escritor. No conto, ocorre a morte de um
dos filhos da matriarca, num acidente de carro, fato que a família resolve
omitir da velha enferma, para poupar-lhe mais sofrimentos. Ocorre que a mentira vai tomando grandes
proporções, já que o tempo passava e o que esperavam acontecer num breve espaço
de tempo, como uma consequência natural do estado de saúde da senhora, ou seja,
a sua morte, não ocorre, advindo daí uma situação insustentável, de continuar
alimentando uma farsa.
Na peça, da
mesma forma como ocorre no conto, a família escreve cartas, supostamente
enviadas pelo filho (INÁCIO), que são
lidas para a senhora, e esta, no seu leito de enferma, dita respostas, escritas
por TIA DORA, para serem remetidas
ao filho distante.
Fui levado ao
teatro, para ver CONSERTAM-SE IMÓVEIS, com dois pensamentos. Um deles
era sobre o título, que reportava, no plano da lógica, a reparos em casas, apartamentos
e congêneres, o que, convenhamos, dificilmente “daria uma bom caldo”, em se
tratando de TEATRO. Depois de ter assistido a peça, na segunda
vez, foi que me dei conta da metáfora nele contida, sobre a qual falarei
adiante. O outro me tirava um pouco a
expectativa de ver alguma novidade: o tema girava em torno de “família”, sobre
o qual tanto já se escreveu, que parece, à primeira vista, estar esgotado. Ledo engano!
Trata-se de um tema muito rico, que permite a pessoas criativas e
inteligentes, como Cortázar e KELI, novas percepções e a exploração
de meandros, até então, bastante escondidos.
Muitas
surpresas, curiosas revelações, um emaranhado de conflitos, dúvidas aos borbotões,
tudo isso está lá, no texto, para que possamos olhar para dentro de nós, para o
seio da nossa própria família, e fazer muitas reflexões, com o objetivo de
chegar, ou não, a conclusões acerca do que ela representa para cada um de nós e
do quanto, e como, estamos engajados nela.
CYNTHIA REIS conduz a direção do espetáculo com maestria,
revelando muita sensibilidade e criatividade.
Imprime, à peça, um ritmo “primoroso”;
“primeiro”,
no sentido qualitativo, e moroso,
como o passar dos dias dos membros daquela família, o que não torna o
espetáculo lento; ao contrário, paradoxalmente, ele prende a atenção do
espectador, do princípio ao fim. Há
momentos em que, por exigência da situação, o ritmo cresce um pouco em
intensidade.
A “sacada” de
os atores jogarem chaves ao chão, para segredarem, uns com os outros, é genial. É engraçado, alivia as tensões que atrama proporciona.
O elenco, com Eduardo Cravo, último à direita, substituindo Alonso
Zerbinato, e, ao fundo, Federico Puppi, com seu violoncelo.
Palmas para LORENA LIMA, pelo espetacular cenário, simples, em elementos cênicos,
e rico, em significados. Apresenta
cômodos ou partes de uma casa, com seu mobiliário, delimitados por fita crepe, aplicada no
piso. O detalhe marcante, no que se
refere à cenografia, e que tem o
dedo da direção, é claro, é o fato
de esses espaços distintos (a sala, a oficina do TIO, um escritório...) irem, ao longo da peça, se transferindo de
um ponto para outro do palco, dentro das referidas delimitações do terreno.
Detalhes da cenografia e da iluminação.
É aqui que
cabe a explicação referente ao que entendi pelo termo “imóveis”, contido no título da peça. Creio não se tratar do substantivo, mas, sim,
do adjetivo, substantivado, significando aquilo, ou aqueles, que não consegue(m)
mover-se, mudar, transformar-se, como é o caso dos elementos daquela estranha
família. Tudo é móvel, no cenário, mas
de nada vale tal mobilidade, se esta não existe dentro de cada um dos
personagens. Além de INÊS, que, ao menos, tenta, com o seu estudo do inglês, ninguém muda ou demonstra desejo em fazê-lo. É uma outra mentira.
São bons os figurinos, de BRUNO PERLATTO, assim como excelente é a luz, de PAULO CÉSAR MEDEIROS,
que não vem de cima, como de hábito, mas tem sua origem no chão e nas laterais
do palco, numa altura, no máximo, igual à dos atores, produzindo um belo efeito
plástico. Tripés, com refletores, também
são movidos pelos que estão em cena.
Um grande
diferencial, neste espetáculo, recai sobre a ótima música, composta e, brilhantemente, executada, ao vivo, por FEDERICO PUPPI, ao violoncelo,
instrumento cuja sonoridade me agrada muito, principalmente quando bem
executado, como é o caso em tela.
No elenco, ainda que todos estejam em
perfeita harmonia, no que diz respeito à qualidade das interpretações, é RAQUEL ALVARENGA quem consegue aplausos
em cena aberta, por conta de sua magnífica construção da personagem TIA DORA, com sua compulsão por falar;
seu marcante sotaque mineiro; seus erros de decodificação, por conta de uma surdez; e
pela repetição de frases feitas. Quando
conta, aos outros, os sonhos que, diariamente, tem, ela o faz de uma forma
muito engraçada, pelos exageros e pelas situações inusitadas neles contidos. E quando resolve falar com sotaque lusitano?! TIA
DORA é o elemento cômico, nesse oceano de dramas e conflitos, fazendo um excelente contraponto.
SUZANA NASCIMENTO, ótima, como
sempre, também arranca muitas gargalhadas, às vezes, nervosas, principalmente quando INÊS tenta aprender inglês, por método
auditivo, repetindo, com uma pronúncia duvidosa, o que está gravado nas fitas cassete
(Olha o arcaísmo aí, gente!) que ouve.
Uma total inutilidade é aprender inglês naquela altura do campeonato. Ela o faz às escondidas, durante a madrugada,
e, por várias vezes, é interrompida pelos outros da casa, gerando momentos
divertidíssimos. A cena em que ela lê,
para os demais membros da família, as “atas” referentes às tarefas de cada um,
na casa, é, simplesmente, hilária e quase surreal.
ALONSO ZERBINATO interpreta o TIO DARIO, que vive construindo frutas
de madeira, com o objetivo de encher uma fruteira, o que nunca consegue
terminar. Tem um objetivo, na vida,
jamais alcançado. Na segunda temporada,
foi substituído, à altura, por EDUARDO
CRAVO. Ambos fazem um bom trabalho.
Completa o
quarteto de ótimos atores JARBAS
ALBUQUERQUE, IGOR. A cena em que ele faz a leitura de uma das
“cartas de INÁCIO, enquanto INÊS treina o seu inglês, é ótima.
Aos poucos, a MÃE vai perdendo o interesse pelo filho
ausente, sinal de que, talvez, já desconfiasse de que estava sendo enganada, havia
tempo, e não desejava decepcionar os outros, preferindo permitir que eles
pensassem que ela acreditava em toda aquela farsa.
Enquanto TIA DORA vai lendo uma das respostas
ditadas pela MÃE, numa das cartas a INÁCIO,
IGOR e INÊS vão decorando a casa, com ridículos elementos de festa
infantil, para a comemoração do aniversário da MÃE. É bem interessante a
cena, já que os festejos ocorrem no quarto da aniversariante; fora de cena, portanto. Apenas o que dizem é ouvido, enquanto o palco
está vazio.
Como
ainda somos livres para pensar e refletir, não nos cobram, por enquanto, impostos ou taxas para que isso aconteça,
ocorreu-me uma outra leitura para a ausência de INÁCIO, que pode ser um grande voo da minha imaginação, um exagero
de fertilidade criativa, mas que encontra justificativa plausível na peça. É possível que o filho “desertor” não tenha
morrido, e sim, simplesmente, abandonado os parentes, por ter enxergado ser ele
o único lúcido numa família de loucos.
Talvez não quisesse se deixar contaminar por aquele ambiente
dessincronizado com a realidade. Alguém
embarca comigo neste “balão mágico”?
CONSERTAM-SE IMÓVEIS merecia uma
carreira mais longa, por sua qualidade, alcançada com bastante trabalho e
competência de todos os envolvidos no projeto.
FICHA TÉCNICA:
Idealização e direção: Cynthia Reis
Texto: Keli Freitas
Elenco: Alonso Zerbinato (depois, Eduardo Cravo), Jarbas Albuquerque,
Raquel Alvarenga e Suzana Nascimento
Cenário e Produção de Arte: Lorena Lima
Figurino: Bruno Perlatto
Iluminação: Paulo César Medeiros
Composição e Direção Musical: Federico Puppi
Orientação Filosófica: Alexandre Mendonça
Fotografia: Guga Millet
Projeto Gráfico: Raquel Alvarenga
Assessoria de Imprensa: Minas de Ideias
Produção: Cynthia Reis e Raquel Alvarenga
Direção de Produção: Aline Mohamad
Realização: Tucanae Produções
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