MADAME
BOVARY
(DE
COMO A ADAPTAÇÃO DE UMA OBRA-PRIMA DA LITERATURA UNIVERSAL, PARA O TEATRO, SE
TRANSFORMA EM OUTRA.)
Clássicos
são eternos e atemporais.
E universais
também.
Por isso
mesmo, são clássicos.
Em qualquer
lista dos chamados “top 10”
dos grandes romances, ícones da literatura universal, estará MADAME BOVARY, de GUSTAVE FLAUBERT, escrito na metade do século XIX (1857) e que se
apresenta como um dos grandes romances realistas, capaz de ter influenciado um
considerável números de grandes escritores, como Eça de Queiroz, incluindo brasileiros, como Lima Barreto.
O romance MADAME BOVARY, sua obra máxima, além,
de merecidos louros, rendeu, também, a FLAUBERT,
muito aborrecimento. Escrito durante
cinco anos de árduo trabalho, foi com ele que o consagrado escritor provocou um
grande escândalo, por mexer com a hipocrisia burguesa da época, já que a obra é uma dura depreciação dos valores da
burguesia vigente. Por causa de MADAME
BOVARY, foi levado aos tribunais, onde utilizou a famosa
frase "Emma Bovary c'est moi"
(Emma Bovary sou eu.), para se defender das acusações de ofensa à moral e à
religião, “por atentar contra a
moral e os bons costumes, ao trazer uma personagem adúltera, e fortes críticas
à burguesia e ao clero”. O processo era
contra o autor do livro e
também contra Laurent Pichat,
diretor da revista Revue de Paris, na qual a
história foi publicada, pela primeira vez, em episódios e com alguns pequenos
cortes.
Absolvido,
oficialmente, pela Justiça, ao contrário se puseram os puritanos críticos da
época. Sua aceitação e consagração
viriam muito tempo mais tarde.
Fazer adaptações de uma mídia para
outra, inevtavelmente, acaba sendo muito difícil, para quem se propõe a
fazê-la, motivo pelo qual sempre que vou assistir a uma peça “baseada ou
adaptada” em/da obra “x”, faço-o com reservas, torcendo para que minhas poucas expectativas me traiam e eu possa
sentir satisfação naquilo que verei.
Muitas vezes – que pena! – ratifico meu pensamento negativo, entretanto
não é o caso desta brilhante adaptação e direção de BRUNO LARA RESENDE.
O elenco (as esquerda para a direita): Lourival Prudêncio, Vilma Melo,
Raquel Iantas, Joélson Medeiros e Alcemar Vieira.
Devo, a bem da verdade, dizer que não gostei da
peça. Seria muito pouco dizer isso. ADOREI! Ainda seria insuficiente. Só me autossatisfaço, dizendo que se trata de
um dez melhores espetáculos a que já
assisti, neste quase extinto 1º semestre de 2015.
Poucas vezes, vi adaptações de livros,
para o TEATRO, tão bem feitas,
eliminando detalhes, não supérfluos, mas que podem ser omitidos, para caber
numa peça de pouco menos de duas horas, sem qualquer prejuízo para a obra
adaptada. Pelo contrário, estimulam os
espectadores a ler o livro. É o que
acontece com esta versão, para os palcos, de MADAME BOVARY, que já foi revisitada por vários diretores de cinema
e de TEATRO.
No original, FLAUBERT mostra, no início do livro, as dificuldades por que passou
o menino CHARLES, na escola, o que,
modernamente, seria chamado de “bullying”, e seu empenho nos estudos, até se
formar, com muita dificuldade, em medicina.
BRUNO optou por iniciar sua
narrativa, quando o, já então formado, DR.
BOVARY, conheceu EMMA, numa das
visitas que fizera ao pai da moça, o SR.
ROUALT, a quem prestava seus serviços profissionais. Encantou-se pela moça e a desposou, tão logo
enviuvara.
Apenas por curiosidade, o manuscrito
original do livro conta com 1200 páginas. A versão impressa, completa, gira em torno de
400.
Nesta versão teatral, BRUNO
foi “enxugando” o texto, versão após versão, atendo-se a apenas 50 páginas, o suficiente para contar, com
clareza, o cerne do romance.
E uma coincidência: o romance foi
escrito em cinco longos anos; esse também foi o tempo de gestação do espetáculo,
da ideia inicial até a sua concretização, no palco.
Depois de
assistir à peça, procure encontrar uma explicação para os lugares ocupados
pelos atores/personagens e sua postura nesta foto.
SINOPSE:
A peça conta a história de
EMMA ROUAULT (RAQUEL IANTAS), uma
jovem francesa, campesina, que se casou com CHARLES BOVARY (JOÉLSON MEDEIROS), herdando, assim, o sobrenome do
marido.
Apesar de CHARLES fazer bem o papel de
companheiro - e, talvez, seja justamente essa a razão -, EMMA caiu em um incurável tédio, o qual tentou combater de diversas
formas, incluindo a traição.
A protagonista havia
sido criada num convento, tendo recebido, portanto, uma boa
educação. A oportunidade de acesso a
muitos livros fez com que ela se tornasse tão sonhadora quanto as mocinhas dos
livros com os quais se deliciava.
Mulher de grandes
ambições, sonhava viver, glamourosamente, em Paris – ela, que era uma
interiorana -, um grande amor folhetinesco, em estado permanente de felicidade. Foi exatamente o que achou que iria
acontecer, após o casamento com o DR.
CHARLES BOVARY. Infelizmente, suas
previsões e desejos foram por terra, quando percebeu quão diferente se mostrava
o marido, um homem muito simples, sem grandes ambições.
Passou, então, a viver uma
grande crise existencial, depois de ter comparecido a um grande baile para o
qual o ilustre casal fora convidado.
Entediada, convenceu o marido a se mudarem para um lugar mais “movimentado”,
o que acabou ocorrendo.
Não estava naquela
“mudança” a solução para o problema de EMMA,
que passou a viver um ciclo sucessivo de momentos de euforia e de tédio, estes
predominando, enquanto ia conhecendo outros homens, todos bem mais interessantes
que o marido. O encantamento por um novo
amante durava pouco tempo; logo vinha uma nova decepção e mais depressão. Isso se tornou uma rotina na vida de EMMA: uma constante busca por uma
felicidade, que nem ela sabia qual nem onde encontrar.
Uma total insatisfeita com
a vida, da qual não sabia arrancar e valorizar os momentos de alegria e
prazer. Apenas nos amantes, ela divisava
uma possibilidade de ser feliz, o que logo se dissipava.
Tornou-se, então, uma
mulher fútil, dando valor a bens materiais, endividando-se, para comprá-los e
dá-los de presente aos amantes, como se os quisesse, também, “comprar”.
O primeiro de seus amores
clandestinos, viveu-o com RODOLPHE
BOULANGER, um tipo de Don Juan do campo, que logo a abandonou. Depois, com LÉON DUPUIS, o jovem empregado de um advogado. Por esse, ela perdeu, totalmente, o equilíbrio
emocional.
Desesperada e acuada, pela
ganância dos credores, suicida-se, ingerindo arsênico. Só depois de sua morte, CHARLES BOVARY descobriu a verdade. Ficou perturbado, sem saber o que pensar. Não se vingou dos amantes, não tomou nenhuma
atitude. Perdeu tudo o que tinha, para
saldar as dívidas. Depois, morreu, amargurado, deixando uma filha pequena, que
foi morar com a avó, que também morreu. Para
sobreviver, a tia mandou-a trabalhar numa fábrica de tecidos.
Emma e a morte.
Abandonando
os ditames do Romantismo, FLAUBERT dá início a uma nova estética
literária, a um novo movimento, à escola que foi batizada como Realismo, passando o foco, antes,
voltado para os heróis e heroínas, para os anti-heróis. EMMA
BOVARY é uma anti-heroína, que merece a desaprovação, por seus atos, ao
mesmo tempo que provoca, também, piedade e uma certa simpatia por parte dos que
tomam conhecimento da sua história.
O grande mérito. nesta adaptação – oxalá BRUNO LARA RESENDE se dedique a outras
–, é a técnica utilizada, mesclando partes narrativas e mantendo os excelentes
diálogos originais, entrecruzando-os. O
fato de os atores sugerirem algumas ações, cortando-se, uns aos outros, em
determinadas cenas, é um excelente exercício de atenção e perspicácia para o
espectador. As interseções de algumas
cenas conferem um dinamismo impressionante à peça. Atores são, simultaneamente, narradores e
personagens, passando de um a outro com muita naturalidade.
Quanto ao cenário, de MARCELO LIPIANI, poucos elementos cênicos são utilizados, porém
tudo muito bem empregado, a tempo e a hora, possibilitando, ao espectador,
exercitar a imaginação e “ver” o que desejar, “invisivelmente exposto”. Ao adentrar a sala de espetáculo, as pessoas
têm sua atenção voltada para um imenso vazio, já que o palco está completamente
nu. Olhando para as laterais, percebe
duas enormes mesas retangulares, uma em cada coxia, e alguns bancos quadrados,
os quais, apoiados em rodas, entrarão em cena, repetidas vezes, para sugerir
vários ambientes. Também, nas coxias, à
vista da plateia, os atores trocam de figurinos (adereços, a maioria), os quais
ficam expostos, em duas grandes araras, criando um clima de intimidade e
cumplicidade entre o elenco e os espectadores.
Ao fundo, uma enorme tela, de cor neutra, vai ganhando
cores, ao longo da trama, que variam de acordo com a intensidade e a exigência de
cada cena. Para isso, contribui muito o
excelente trabalho de iluminação, a
cargo de RENATO MACHADO. Certamente, um dos principais elementos de valorização
deste espetáculo
Emma, entre o marido e o Padre.
Os figurinos,
de PATRÍCIA LAMBERT, não foram
concebidos, propositalmente, quero crer, com a intenção de retratar o interior
da França do século XIX. Acho que, por
conta da atemporalidade do texto. São
simples e o seu grande foco está nos pequenos detalhes, trazidos pelos
adereços. Às vezes um único objeto, como
um xale, por exemplo, dependendo de como é dobrado e colocado na personagem,
acrescentará algum importante detalhe à cena.
BRUNO LARA RESENDE
não poderia ter sido mais feliz na adaptação da obra e ao convidar RAFAELA AMADO, para, com ele, dividir a
direção do espetáculo, trabalho
também valorizado pela inquestionável competência de MÁRCIA RUBIN, na direção de
movimento. Os atores devem ter sido
muito “sugados” pela MÁRCIA,
entretanto valeu o sacrifício dos ensaios, para que o resultado final fosse
magnífico.
Não entendo em que nível se deu a “colaboração artística”, de MÁRCIO
ABREU e ANDRÉ LEPECKI, contudo,
qualquer que tenha sido ela, foi de um enorme proveito, já que, modestamente,
não consegui encontrar nada, nesse espetáculo, que merecesse alguma repreensão.
Uma boa direção
musical valoriza qualquer espetáculo teatral. Para isso, um especial aplauso para ANTÔNIO SARAIVA.
Charles contempla Emma.
Quanto ao elenco, percebe-se que cada um dos cinco atores
investiu muito neste trabalho e todos se apresentam com um nivelamento positivo
invulgar.
À exceção de RAQUEL
IANTAS (EMMA BOVARY) e JOÉLSON
MEDEIROS (DR. CHARLES BOVARY), os quais só interpretam um personagem, ambos
de forma brilhante, os demais se revezam em vários personagens.
EMMA BOVARY
deve ser uma personagem cobiçada por todas as grandes atrizes, um sonho de
consumo, por sua força e riqueza de detalhes na personalidade, e é um grande
desafio dar vida a ela. RAQUEL IANTAS tem uma atuação magistral,
sabendo dosar e marcar, categoricamente, cada momento de maior ou menor
insatisfação com a vida que lhe cabe viver, muito distante da pretendida. RAQUEL
prova, em cena, que é uma grande atriz, de profunda sensibilidade e
empatia. Atuação digna de reconhecimento, em forma de prêmios.
Tédio.
JOÉLSON MEDEIROS
compôs o seu personagem de forma muito correta, aplicando-lhe seus muitos
recursos de ator, transmitidos pela voz e por uma expressão corporal
marcantes. Sabe ser o simples, o tolo, o
desambicioso, o despretensioso, o desapegado, o ingênuo, o generoso, o
abnegado, o medíocre, sem provocar piedade, já que sabe dosar seus sentimentos
e o desejo de sempre agradar à mulher, a eterna insatisfeita, o retrato da
frustração. Um excelente trabalho do ator.
VILMA MELO,
que também costuma assinar boas direções, é uma excelente atriz e o prova, ao
interpretar personagens diversificados, inclusive masculinos: a MÃE do DR BOVARY; HELOISE, sua
primeira mulher; o usurário mercador de
panos LHEUREUX; o DR. CANIVET, um célebre médico; FELICITÈ,
a menina ingênua, de 14 anos, empregada de EMMA (O destino pregando uma
peça: a serviçal que trabalha para EMMA BOVARY se chama FELICIDADE.);
a viúva LEFRANÇOIS, a dona da hospedaria; uma CONVIDADA DO CASAMENTO;
uma VIZINHA; e BERTHA, a filha do casal BOVARY, rejeitada
pela mãe). Excelente em todas as caracterizações.
ALCEMAR
VIEIRA desdobra-se no apaixonado LÉON
DUPUIS, escrevente de cartório; no devasso e sedutor RODOLFO
BOULANGER, um amante; em PADRE; em CRIADO manco da
hospedaria; em PERSONAGENS DE PASSAGEM; num CONVIDADO do
casamento; num VIZINHO; num HOMEM DO BAILE. O ator, com apenas alguns elementos dos
figurinos, além das devidas variações corporais e de voz, consegue, com
perfeição, fazer com que o público distinga cada um de seus personagens,
empreendendo a cada um deles uma personalidade bem distinta do outro. Um grande trabalho de ator.
LOURIVAL PRUDÊNCIO
completa este elenco de primeiríssima qualidade, interpretando o PAI do DR. BOVARY; o PAI de EMMA; o ambicioso farmacêutico SR. HOMAIS; a AUTORIDADE; um CEGO; um VIZINHO; o SR. GUILLAUMIN. Perfeito em todos eles.
Decisões?
O
romance de FLAUBERT deu origem a um
conceito em Psicologia, chamado “bovarismo”, que, “em termos
patológicos, consiste em uma
alteração do sentido da realidade, por meio da qual uma pessoa possui uma
deturpada autoimagem,
considerando-se outra (de características grandiosas e admiráveis), que não é. Em termos mais gerais, o “bovarismo” faz referência ao estado de
insatisfação crônica de um ser humano (EMMA),
produzido pelo contraste entre suas ilusões e aspirações, que, geralmente, são
desproporcionadas, tendo em conta suas próprias possibilidades, e a realidade
frustrante. Pode ser caracterizada como
uma forma de mitomania.”
(WIKIPÉDIA, com adaptação.)
Considero
bastante oportuno transcrever um texto de BRUNO
LARA RESENDE, extraído do belo programa da peça: “Um lugar onde o dinheiro é soberano, os clichês comandam as atitudes, o
livre pensar está a serviço de um carreirismo sem escrúpulos, a batina esconde
um corpo sem espírito e sem compaixão, o comerciante desonesto é um agiota
impiedoso, os afetos medíocres são incapazes de aplacar a solidão, o consumo é
o único recurso contra a angústia, os erros médicos ficam impunes, o miserável paga
por crime que não cometeu, a autoridade é retórica vazia. Soa familiar? É Yonville, o fictício vilarejo onde se
concentra a narrativa do romance adaptado. A época, primeira metade do século XIX. É nesse cenário que CHARLES e EMMA hão de
cumprir seu trágico destino”
Mistério.
FICHA TÉCNICA:
Do romance de Gustave Flaubert
Idealização, Tradução e Adaptação: Bruno
Lara Resende
Direção: Bruno Lara Resende e Rafaela Amado
Colaboração Artística : Márcio Abreu e
André Lepecki
ELENCO: Raquel Iantas, Joélson
Medeiros, Alcemar Vieira, Lourival Prudêncio
e Vilma Melo
Cenário: Marcelo Lipiani
Figurinos: Patrícia Lambert
Iluminação: Renato Machado
Direção de movimentos: Márcia Rubin
Música: Antônio Saraiva
Projeto Gráfico: Lygia Santiago e Maurício
Grecco
Foto da Arte: Maurício Grecco
Fotos de Divulgação: Milton Montenegro
Foto do Elenco do Programa: André Fachetti
Assessoria de Imprensa: Verbo Virtual
(Luciana Medeiros e Paula Catunda)
Direção de produção: Isabel Themudo e
Cristiana Lara Resende
Produção executiva: Roberta Brisson
Realização: Cris Lara Resende
Encurralada.
SERVIÇO:
Temporada: de 12 de maio a 1º de julho de
2015.
Local: Teatro dos Quatro - Shopping da
Gávea (Rua Marquês de São Vicente, 52 - 2° piso).
Informações: 2274-9895.
Horário: 3as e 4as feiras, às 20h.
Duração do Espetáculo: 110 minutos.
Preço
do Ingresso: R$40,00 e R$20,00 (idosos e estudantes).
(FOTOS:
MAURÍCIO GRECCO,
MÍLTON
MONTENEGRO
e
ANDRÉ FACHETTI.)