quinta-feira, 28 de maio de 2015


MADAME BOVARY
 
 
(DE COMO A ADAPTAÇÃO DE UMA OBRA-PRIMA DA LITERATURA UNIVERSAL, PARA O TEATRO, SE TRANSFORMA EM OUTRA.)
 
 
 
 
 
 
            Clássicos são eternos e atemporais. 

E universais também. 

Por isso mesmo, são clássicos.
 
Em qualquer lista dos chamados “top 10” dos grandes romances, ícones da literatura universal, estará MADAME BOVARY, de GUSTAVE FLAUBERT, escrito na metade do século XIX (1857) e que se apresenta como um dos grandes romances realistas, capaz de ter influenciado um considerável números de grandes escritores, como Eça de Queiroz, incluindo brasileiros, como Lima Barreto.
           
O romance MADAME BOVARY, sua obra máxima, além, de merecidos louros, rendeu, também, a FLAUBERT, muito aborrecimento.  Escrito durante cinco anos de árduo trabalho, foi com ele que o consagrado escritor provocou um grande escândalo, por mexer com a hipocrisia burguesa da época, já que a obra é uma dura depreciação dos valores da burguesia vigente.  Por causa de  MADAME BOVARY,  foi levado aos tribunais, onde utilizou a famosa frase "Emma Bovary c'est moi" (Emma Bovary sou eu.), para se defender das acusações de ofensa à moral e à religião,por atentar contra a moral e os bons costumes, ao trazer uma personagem adúltera, e fortes críticas à burguesia e ao clero”.  O processo era contra o autor do livro e também contra Laurent Pichat, diretor da revista Revue de Paris, na qual a história foi publicada, pela primeira vez, em episódios e com alguns pequenos cortes.




Absolvido, oficialmente, pela Justiça, ao contrário se puseram os puritanos críticos da época.  Sua aceitação e consagração viriam muito tempo mais tarde.
 
            Fazer adaptações de uma mídia para outra, inevtavelmente, acaba sendo muito difícil, para quem se propõe a fazê-la, motivo pelo qual sempre que vou assistir a uma peça “baseada ou adaptada” em/da obra “x”, faço-o com reservas, torcendo para que  minhas poucas expectativas me traiam e eu possa sentir satisfação naquilo que verei.  Muitas vezes – que pena! – ratifico meu pensamento negativo, entretanto não é o caso desta brilhante adaptação e direção de BRUNO LARA RESENDE.
 
 








O elenco (as esquerda para a direita): Lourival Prudêncio, Vilma Melo, Raquel Iantas, Joélson Medeiros e Alcemar Vieira.
 
 
Devo, a bem da verdade, dizer que não gostei da peça.  Seria muito pouco dizer isso.  ADOREI!  Ainda seria insuficiente.  Só me autossatisfaço, dizendo que se trata de um dez melhores espetáculos a que já assisti, neste quase extinto 1º semestre de 2015.
 
            Poucas vezes, vi adaptações de livros, para o TEATRO, tão bem feitas, eliminando detalhes, não supérfluos, mas que podem ser omitidos, para caber numa peça de pouco menos de duas horas, sem qualquer prejuízo para a obra adaptada.  Pelo contrário, estimulam os espectadores a ler o livro.  É o que acontece com esta versão, para os palcos, de MADAME BOVARY, que já foi revisitada por vários diretores de cinema e de TEATRO.
           
            No original, FLAUBERT mostra, no início do livro, as dificuldades por que passou o menino CHARLES, na escola, o que, modernamente, seria chamado de “bullying”, e seu empenho nos estudos, até se formar, com muita dificuldade, em medicina.  BRUNO optou por iniciar sua narrativa, quando o, já então formado, DR. BOVARY, conheceu EMMA, numa das visitas que fizera ao pai da moça, o SR. ROUALT, a quem prestava seus serviços profissionais.  Encantou-se pela moça e a desposou, tão logo enviuvara.










Apenas por curiosidade, o manuscrito original do livro conta com 1200 páginas.  A versão impressa, completa, gira em torno de 400.  Nesta versão teatral, BRUNO foi “enxugando” o texto, versão após versão, atendo-se a apenas 50 páginas, o suficiente para contar, com clareza, o cerne do romance.


E uma coincidência: o romance foi escrito em cinco longos anos; esse também foi o tempo de gestação do espetáculo, da ideia inicial até a sua concretização, no palco.
 
 
 
Depois de assistir à peça, procure encontrar uma explicação para os lugares ocupados pelos atores/personagens e sua postura nesta foto.
 
 
 
 
SINOPSE:
 
A peça conta a história de EMMA ROUAULT (RAQUEL IANTAS), uma jovem francesa, campesina, que se casou com CHARLES BOVARY (JOÉLSON MEDEIROS), herdando, assim, o sobrenome do marido.
 
Apesar de CHARLES fazer bem o papel de companheiro - e, talvez, seja justamente essa a razão -, EMMA caiu em um incurável tédio, o qual tentou combater de diversas formas, incluindo a traição.
 
A protagonista havia sido criada num convento, tendo recebido, portanto, uma boa educação.  A oportunidade de acesso a muitos livros fez com que ela se tornasse tão sonhadora quanto as mocinhas dos livros com os quais se deliciava.
 
Mulher de grandes ambições, sonhava viver, glamourosamente, em Paris – ela, que era uma interiorana -, um grande amor folhetinesco, em estado permanente de felicidade.  Foi exatamente o que achou que iria acontecer, após o casamento com o DR. CHARLES BOVARY.  Infelizmente, suas previsões e desejos foram por terra, quando percebeu quão diferente se mostrava o marido, um homem muito simples, sem grandes ambições.
 
Passou, então, a viver uma grande crise existencial, depois de ter comparecido a um grande baile para o qual o ilustre casal fora convidado.  Entediada, convenceu o marido a se mudarem para um lugar mais “movimentado”, o que acabou ocorrendo.

Não estava naquela “mudança” a solução para o problema de EMMA, que passou a viver um ciclo sucessivo de momentos de euforia e de tédio, estes predominando, enquanto ia conhecendo outros homens, todos bem mais interessantes que o marido.  O encantamento por um novo amante durava pouco tempo; logo vinha uma nova decepção e mais depressão.  Isso se tornou uma rotina na vida de EMMA: uma constante busca por uma felicidade, que nem ela sabia qual nem onde encontrar. 
Uma total insatisfeita com a vida, da qual não sabia arrancar e valorizar os momentos de alegria e prazer.  Apenas nos amantes, ela divisava uma possibilidade de ser feliz, o que logo se dissipava. 
Tornou-se, então, uma mulher fútil, dando valor a bens materiais, endividando-se, para comprá-los e dá-los de presente aos amantes, como se os quisesse, também, “comprar”. 
O primeiro de seus amores clandestinos, viveu-o com RODOLPHE BOULANGER, um tipo de Don Juan do campo, que logo a abandonou.  Depois, com LÉON DUPUIS, o jovem empregado de um advogado.  Por esse, ela perdeu, totalmente, o equilíbrio emocional. 
Desesperada e acuada, pela ganância dos credores, suicida-se, ingerindo arsênico.  Só depois de sua morte, CHARLES BOVARY descobriu a verdade.  Ficou perturbado, sem saber o que pensar.  Não se vingou dos amantes, não tomou nenhuma atitude.  Perdeu tudo o que tinha, para saldar as dívidas. Depois, morreu, amargurado, deixando uma filha pequena, que foi morar com a avó, que também morreu.  Para sobreviver, a tia mandou-a trabalhar numa fábrica de tecidos.
 
 

Emma e a morte.
 
Abandonando os ditames do Romantismo, FLAUBERT dá início a uma nova estética literária, a um novo movimento, à escola que foi batizada como Realismo, passando o foco, antes, voltado para os heróis e heroínas, para os anti-heróis.  EMMA BOVARY é uma anti-heroína, que merece a desaprovação, por seus atos, ao mesmo tempo que provoca, também, piedade e uma certa simpatia por parte dos que tomam conhecimento da sua história.
            O grande mérito. nesta adaptação – oxalá BRUNO LARA RESENDE se dedique a outras –, é a técnica utilizada, mesclando partes narrativas e mantendo os excelentes diálogos originais, entrecruzando-os.  O fato de os atores sugerirem algumas ações, cortando-se, uns aos outros, em determinadas cenas, é um excelente exercício de atenção e perspicácia para o espectador.  As interseções de algumas cenas conferem um dinamismo impressionante à peça.  Atores são, simultaneamente, narradores e personagens, passando de um a outro com muita naturalidade.
Quanto ao cenário, de MARCELO LIPIANI, poucos elementos cênicos são utilizados, porém tudo muito bem empregado, a tempo e a hora, possibilitando, ao espectador, exercitar a imaginação e “ver” o que desejar, “invisivelmente exposto”.  Ao adentrar a sala de espetáculo, as pessoas têm sua atenção voltada para um imenso vazio, já que o palco está completamente nu.  Olhando para as laterais, percebe duas enormes mesas retangulares, uma em cada coxia, e alguns bancos quadrados, os quais, apoiados em rodas, entrarão em cena, repetidas vezes, para sugerir vários ambientes.  Também, nas coxias, à vista da plateia, os atores trocam de figurinos (adereços, a maioria), os quais ficam expostos, em duas grandes araras, criando um clima de intimidade e cumplicidade entre o elenco e os espectadores.
            Ao fundo, uma enorme tela, de cor neutra, vai ganhando cores, ao longo da trama, que variam de acordo com a intensidade e a exigência de cada cena.  Para isso, contribui muito o excelente trabalho de iluminação, a cargo de RENATO MACHADO.  Certamente, um dos principais elementos de valorização deste espetáculo
 

Emma, entre o marido e o Padre.
 

            Os figurinos, de PATRÍCIA LAMBERT, não foram concebidos, propositalmente, quero crer, com a intenção de retratar o interior da França do século XIX.  Acho que, por conta da atemporalidade do texto.  São simples e o seu grande foco está nos pequenos detalhes, trazidos pelos adereços.  Às vezes um único objeto, como um xale, por exemplo, dependendo de como é dobrado e colocado na personagem, acrescentará algum importante detalhe à cena.
            BRUNO LARA RESENDE não poderia ter sido mais feliz na adaptação da obra e ao convidar RAFAELA AMADO, para, com ele, dividir a direção do espetáculo, trabalho também valorizado pela inquestionável competência de MÁRCIA RUBIN, na direção de movimento.  Os atores devem ter sido muito “sugados” pela MÁRCIA, entretanto valeu o sacrifício dos ensaios, para que o resultado final fosse magnífico.
            Não entendo em que nível se deu a “colaboração artística”, de MÁRCIO ABREU e ANDRÉ LEPECKI, contudo, qualquer que tenha sido ela, foi de um enorme proveito, já que, modestamente, não consegui encontrar nada, nesse espetáculo, que merecesse alguma repreensão.
            Uma boa direção musical valoriza qualquer espetáculo teatral.  Para isso, um especial aplauso para ANTÔNIO SARAIVA.
 
 
Joelson Medeiros e Raquel Iantas vivem o casal Emma e Charles Foto: Divulgação
Charles contempla Emma.
 
            Quanto ao elenco, percebe-se que cada um dos cinco atores investiu muito neste trabalho e todos se apresentam com um nivelamento positivo invulgar.
            À exceção de RAQUEL IANTAS (EMMA BOVARY) e JOÉLSON MEDEIROS (DR. CHARLES BOVARY), os quais só interpretam um personagem, ambos de forma brilhante, os demais se revezam em vários personagens.
            EMMA BOVARY deve ser uma personagem cobiçada por todas as grandes atrizes, um sonho de consumo, por sua força e riqueza de detalhes na personalidade, e é um grande desafio dar vida a ela.  RAQUEL IANTAS tem uma atuação magistral, sabendo dosar e marcar, categoricamente, cada momento de maior ou menor insatisfação com a vida que lhe cabe viver, muito distante da pretendida.  RAQUEL prova, em cena, que é uma grande atriz, de profunda sensibilidade e empatia.  Atuação digna de reconhecimento, em forma de prêmios. 
 
Madame Bovary
Tédio.
 
            JOÉLSON MEDEIROS compôs o seu personagem de forma muito correta, aplicando-lhe seus muitos recursos de ator, transmitidos pela voz e por uma expressão corporal marcantes.  Sabe ser o simples, o tolo, o desambicioso, o despretensioso, o desapegado, o ingênuo, o generoso, o abnegado, o medíocre, sem provocar piedade, já que sabe dosar seus sentimentos e o desejo de sempre agradar à mulher, a eterna insatisfeita, o retrato da frustração.  Um excelente trabalho do ator.
            VILMA MELO, que também costuma assinar boas direções, é uma excelente atriz e o prova, ao interpretar personagens diversificados, inclusive masculinos: a MÃE do DR BOVARY; HELOISE, sua primeira mulher; o usurário mercador de panos LHEUREUX; o DR. CANIVET, um célebre médico; FELICITÈ, a menina ingênua, de 14 anos, empregada de EMMA (O destino pregando uma peça: a serviçal que trabalha para EMMA BOVARY se chama FELICIDADE.); a viúva LEFRANÇOIS, a dona da hospedaria; uma CONVIDADA DO CASAMENTO; uma VIZINHA; e BERTHA, a filha do casal BOVARY, rejeitada pela mãe).  Excelente em todas as caracterizações.
ALCEMAR VIEIRA desdobra-se no apaixonado LÉON DUPUIS, escrevente de cartório; no devasso e sedutor RODOLFO BOULANGER, um amante; em PADRE; em CRIADO manco da hospedaria; em PERSONAGENS DE PASSAGEM; num CONVIDADO do casamento; num VIZINHO; num HOMEM DO BAILE.  O ator, com apenas alguns elementos dos figurinos, além das devidas variações corporais e de voz, consegue, com perfeição, fazer com que o público distinga cada um de seus personagens, empreendendo a cada um deles uma personalidade bem distinta do outro.  Um grande trabalho de ator.
            LOURIVAL PRUDÊNCIO completa este elenco de primeiríssima qualidade, interpretando o PAI do DR. BOVARY; o PAI de EMMA; o ambicioso farmacêutico SR. HOMAIS; a AUTORIDADE; um CEGO; um VIZINHO; o SR. GUILLAUMIN.  Perfeito em todos eles.
 
 
Madame Bovary
Decisões?
 
O romance de FLAUBERT deu origem a um conceito em Psicologia, chamado “bovarismo”, que, “em termos patológicos, consiste em uma alteração do sentido da realidade, por meio da qual uma pessoa possui uma deturpada autoimagem, considerando-se outra (de características grandiosas e admiráveis), que não é.  Em termos mais gerais, o bovarismo” faz referência ao estado de insatisfação crônica de um ser humano (EMMA), produzido pelo contraste entre suas ilusões e aspirações, que, geralmente, são desproporcionadas, tendo em conta suas próprias possibilidades, e a realidade frustrante.  Pode ser caracterizada como uma forma de mitomania.” (WIKIPÉDIA, com adaptação.)
 
Considero bastante oportuno transcrever um texto de BRUNO LARA RESENDE, extraído do belo programa da peça: “Um lugar onde o dinheiro é soberano, os clichês comandam as atitudes, o livre pensar está a serviço de um carreirismo sem escrúpulos, a batina esconde um corpo sem espírito e sem compaixão, o comerciante desonesto é um agiota impiedoso, os afetos medíocres são incapazes de aplacar a solidão, o consumo é o único recurso contra a angústia, os erros médicos ficam impunes, o miserável paga por crime que não cometeu, a autoridade é retórica vazia.  Soa familiar?  É Yonville, o fictício vilarejo onde se concentra a narrativa do romance adaptado.  A época, primeira metade do século XIX.  É nesse cenário que CHARLES e EMMA hão de cumprir seu trágico destino”
 

 
Madame Bovary
Mistério.
 
 
 
 
FICHA TÉCNICA:
 
Do romance de Gustave Flaubert
Idealização, Tradução e Adaptação: Bruno Lara Resende
Direção: Bruno Lara Resende e Rafaela Amado
Colaboração Artística : Márcio Abreu e André Lepecki
 
ELENCO: Raquel Iantas, Joélson Medeiros, Alcemar Vieira, Lourival Prudêncio
e Vilma Melo
 
Cenário: Marcelo Lipiani
Figurinos: Patrícia Lambert
Iluminação: Renato Machado
Direção de movimentos: Márcia Rubin
Música: Antônio Saraiva
Projeto Gráfico: Lygia Santiago e Maurício Grecco
Foto da Arte: Maurício Grecco
Fotos de Divulgação: Milton Montenegro
Foto do Elenco do Programa: André Fachetti
Assessoria de Imprensa: Verbo Virtual (Luciana Medeiros e Paula Catunda)
Direção de produção: Isabel Themudo e Cristiana Lara Resende
Produção executiva: Roberta Brisson
Realização: Cris Lara Resende
 
 
 
 
 
Madame Bovary
Encurralada.
 
 
 
 
SERVIÇO:
 
Temporada: de 12 de maio a 1º de julho de 2015.
Local: Teatro dos Quatro - Shopping da Gávea (Rua Marquês de São Vicente, 52 -  2° piso).
Informações: 2274-9895.
Horário: 3as e 4as feiras, às 20h.
Classificação Indicativa: 12 anos.
Duração do Espetáculo: 110 minutos.
Preço do Ingresso: R$40,00 e R$20,00 (idosos e estudantes).
 
 
 
 
 
(FOTOS: MAURÍCIO GRECCO,
MÍLTON MONTENEGRO
e ANDRÉ FACHETTI.)