sábado, 28 de abril de 2018


A VIDA
NÃO É
UM MUSICAL 
- O MUSICAL


(MAS DEU ORIGEM A UM GRANDE MUSICAL.)




            Infelizmente, em sua reta final de temporada, na Arena do SESC Copacabana (VER SERVIÇO.), está em cartaz um dos melhores musicais do momento, no Rio de Janeiro, que, por sua ótima qualidade, merecia fazer uma longa carreira e ser visto pelo máximo de pessoas que gostam do bom TEATRO, principalmente dos MUSICAIS.

            Estou falando de “A VIDA NÃO É UM MUSICAL - O MUSICAL”, uma brilhante ideia de LEANDRO MUNIZ, jovem autor, que ganhou a adesão de uma competente equipe de atores, criadores e técnicos, o que só poderia mesmo acabar resultando numa excelente montagem.

            Se, de um limão, posso fazer uma boa limonada, por que não fazer um bom musical sobre a vida, naquilo que ela tem de ruim ou de pior?

            Foi o que fizeram LEANDRO, FABIANO KRIEGER e JOÃO FONSECA, quando se propuseram a montar o espetáculo, idealização do dramaturgo.








            Trata-se de uma peça que parece ter sido escrita ontem, de tão atual que é, satirizando, de forma profunda e contundente, a ingenuidade do universo dos contos de fadas da Disney, em contraste com o atual cenário político brasileiro, local e nacional, “fazendo um recorte crítico e bem-humorado da atualidade real e contraditória. É um musical brasileiro, que perpassa os estilos tradicionais, utilizando-se da rica música brasileira e de sua diversidade de ritmos, para criar sua identidade”. (Extraído do “release”, enviado por ALESSANDRA COSTA - DUETTO COMUNICAÇÃO). “O projeto de cidade negócios fracassou, queríamos a Disneylândia, mas a realidade é muito mais Complexo do Alemão”, destaca o autor, que, também, dirige o musical.

            Ainda, contido no “release”, “A peça leva, ao espectador, uma comédia musical, em que a ação dramática anda, lado a lado, com a música. Embora haja, aqui, toda essa efervescência de montagens musicais, citada anteriormente, é muito menos comum vermos montagens originais de comédias musicais brasileiras”.

            Tanto o texto quanto as canções são originais e de ótimo nível, propondo-se a um deboche, de maneira respeitosa, numa grande brincadeira, com os musicais americanos, principalmente os que se utilizam das histórias com as quais nos entopem os estúdios Disney, partindo o enredo de um universo real, de uma cidade fictícia, inspirada no Rio de Janeiro, imperfeito, cru, violento. O detalhe do “fictício” é só para constar, uma vez que fica bem claro que  a “urbis” em questão é a ex-Cidade Maravilhosa.

            Os grandes amantes dos musicais tradicionais, como eu, que chego a ser fanático por eles (assumo), tendo lido os primeiros parágrafos desta crítica, podem começar a não sentir vontade de ver o espetáculo ora analisado, achando que serão ofendidos, mas quero deixar bem claro que isso jamais ocorrerá, uma vez que, como já disse, anteriormente, tudo não passa de uma grande e saudável, acrescento, brincadeira, que, no fundo, acaba por homenagear os grandes musicais, em seu formato original.

            Podemos iniciar os comentários “técnicos”, pelo criativo, irônico e simples título da peça: “A VIDA NÃO É UM MUSICAL - O MUSICAL”, que, com foco no conteúdo do espetáculo, equivale a “A vida não é um mar de rosas” ou “Na vida real, não há espaço para o sonho” ou “Desce das nuvens e põe o pé no chão”.

O texto fala de um mundo utópico, construído separadamente da cidade grande: o Vale ‘Dísnei’. Lá, nesse pequeno vilarejo, as famílias vivem felizes, em harmonia, longe da violência. Plantam o que comem, não têm contato com o mundo externo, se amam, cantam o tempo todo, como nos desenhos da Disney, e são extremamente afinadas e precisas quando dançam” – segue o “release”. Quando LIZ (DANIELA FONTAN) é introduzida no mundo real, ocorre, como não poderia deixar de ser, um grande choque cultural, o que vai colaborar para o surgimento de situações que conhecemos  de perto, infelizmente, e que, a cada momento, mais se aproximam da de nós.







SINOPSE:
Satirizando o universo dos contos de fadas da Disney e o atual cenário político, “A VIDA NÃO É UM MUSICAL - O MUSICAL” apresenta LIZ (DANIELA FONTAN), uma personagem criada em um vale encantado, que é levada a conhecer a vida numa “urbis”.
Com um humor ágil e inteligente, o musical mostra as mais variadas situações que LIZ enfrenta, na cidade grande, ao se deparar com a violência, a pobreza e outros problemas do mundo real, até então, longe da sua realidade.

           







Ampliando a breve sinopse (perdão pelo pleonasmo), temos um mundo “ideal”, totalmente fictício, criado pelos autores das histórias infantis, o vale (Disnei), onde não há espaço para o mal, onde todas as criaturas vivem em harmonia total com a natureza e o universo. É onde moram LIZ e sua família: o marido e filhos. Os limites desse espaço existem e o fato de algum de seus habitantes ultrapassá-los significa uma “quebra do encanto”, ou seja, que terá um pesado fardo a carregar, lembrando, a grosso modo, a expulsão de Adão e Eva do Paraíso. Existe, de forma implícita, ou não, uma proibição, autoimposta, de ultrapassar aqueles limites, à qual não obedece a protagonista. O ir além das fronteiras da ficção significa conhecer os seres reais, os humanos, com seus vícios, suas maldades e toda sorte de outras mazelas inerentes ao Homem.

            LIZ, numa atitude de total rebeldia e curiosidade, ousa não seguir as leis do vale e imerge no mundo real, parando numa cidade grande, facilmente identificada com o Rio de Janeiro. Ela desemboca numa favela (recuso-me ao uso “politicamente correto” do termo: “comunidade”), onde logo é “recepcionada” com um assalto. A partir de então, vê-se na contingência de se adaptar ao meio, deixando-se influenciar pelo que de mais podre existe na sociedade. Tendo deixado o marido no seu “mundinho”, apaixona-se por quem não devia, envolve-se, ingênua e pateticamente, com tipos sórdidos, chegando a extremo de se candidatar ao cargo de governadora do estado, passando pela podridão que envolve as campanhas eleitorais, as quais nos enojam.








            Quando, no início desta crítica, fiz menção à contemporaneidade do texto, acrescento, como exemplo, algumas das várias referências atuais, que corroboram tal afirmação, a começar pela corrupção, que parece ter nascido com o primeiro ser humano, mas, “nunca na história deste país”, esteve tão exacerbada. Não foram esquecidos, também, e nem poderiam ter sido, o podre universo do “marketing” político; o poder destrutivo da mídia e das redes sociais; as repugnantes atuações de alguns segmentos religiosos; a nefasta atuação das milícias, as quais alguns consideram mais danosas e violentas que as quadrilhas de traficantes de drogas; os crimes políticos e sua impunidade, na grande maioria das vezes; a discriminação social, racial e contra a mulher, incluindo o asqueroso assédio sexual; a polarização política; o fundamentalismo político e religioso; a intolerância geral; a desvalorização do ser humano, da moral e da crítica construtiva; o parecer superando o ser...

O curioso é que não conseguimos deixar de dar boas gargalhadas com essas situações, como se hienas fôssemos, porém isso é justificado como uma espécie de um riso nervoso, pela vergonha do alheio e, até mesmo, como uma prova de que não somos tão ingênuos quanto LIZ e que estamos atentos, olhos abertos, embora, muitas vezes, inertes. E, também, porque o elenco é ótimo, formado por gente que sabe explorar o humor. É um texto brilhante, em todos os sentidos, e serve de apoio para a ótima direção, a quatro mãos, de LEANDRO MUNIZ e JOÃO FONSECA. Este, um consagrado “habitué” na direção de musicais; aquele, fazendo o seu “début” na função, se não me equivoco, tendo iniciado, no ofício, com o pé direito, com o mesmo talento como escreve.

Aprovo, totalmente, o aspecto político do texto, já que isso é uma das funções do TEATRO, porque ele, o texto, não é partidário nem panfletário; traduz, fielmente, a triste realidade brasileira do momento, não poupando ideologias ou partidos políticos.








Um bom texto e uma boa direção são fundamentais para o sucesso de um espetáculo. Ambos são garantia deste, mas entra em campo o terceiro elemento de sustentação de um tripé, que é o ótimo elenco, o qual se apresenta de forma irrepreensível, atuando e cantando; até mesmo, dançando, o que não pode faltar a um musical. Todos, sem qualquer exceção, se apresentam de forma marcante.

Percebi um nivelamento total entre todos os atores e atrizes, contudo desejo fazer alguns breves comentários, direcionados a três pessoas do elenco.

Começo pela protagonista, DANIELA FONTAN, que me surpreendeu muito, não como atriz, mas como cantora, uma faceta que eu não conhecia nela, até então. Sua personagem estabelece, com a plateia, uma forte empatia, graças ao bom trabalho da atriz.










Falar de THELMO FERNANDES chega a ser “covardia”. Ele é um dos mais completos atores brasileiros, mantendo, sempre, o mesmo talento, ou se superando, quando, por exemplo, um dia, resolveu investir nos musicais, ele, que é um ator que joga bem nas duas posições, defesa e ataque: drama e comédia. Um de seus personagens, o GOVERNADOR SÉRGIO CAMARGO, escancaradamente, baseado num ex-governador fluminense, cujo nome não citarei, por motivos óbvios (um deles seria não provocar ânsias de vômito no meu leitor), abusa do cinismo e do mau-caratismo.






MARCELO NOGUEIRA tem a oportunidade, mais uma vez, de nos mostrar o seu potencial de ator e cantor, que atingiu o auge, ao interpretar o cantor Agnaldo Rayol, no musical “Agnaldo Rayol – a Alma do Brasil”, de saudosa e agradável lembrança, ainda recente. Aqui, interpreta uma partitura que exige bastante dele, e dos demais do elenco, em alguns momentos.






Num musical, conta muito ponto, obviamente, a direção musical, neste, assinada por FABIANO KRIEGER e GUSTAVO SALGADO, os quais conseguem harmonizar as vozes em conjunto e trabalhar os solos, extraindo o melhor dos atores/cantores. FABIANO também, como já disse, compôs todas as melodias originais, em parecia com LEANDRO MUNIZ, que se encarregou das letras. A GUSTAVO, couberam, também, a orquestração e os arranjos vocais. Gostaria de nominar os componentes da banda, entretanto não tive acesso a suas identidades, o que não me impede de elogiar o seu trabalho.

Agradaram-me, igualmente, os figurinos, criados por CAROL LOBATO, creio que parte deles oriundos de seu acervo, todos interessantes e bem ajustados aos personagens, a cada momento, e o cenário, de NELLO MARRESE, que mistura elementos da fantasia e da realidade, incluindo balões de gás, distribuídos na arquibancada, a serem estourados pelo público, a um pedido de LIZ, e objetos e adereços, que serão utilizados em cena, até determinado momento, ocultos, ao redor da arena, sob um tecido azul. Na verdade, esses elementos, ao serem trazidos à visão do público, revelam a realidade do lixão em que o mundo atual parece ter sido transformado.

Nada em especial, com relação à luz, de responsabilidade de PAULO DENIZOT, a não ser atestar que ela está acorde com a proposta da peça.   

Todos os demais profissionais e técnicos envolvidos no projeto colaboram para o seu sucesso.












FICHA TÉCNICA:

Texto : Leandro Muniz
Direção : João Fonseca e Leandro Muniz
Direção Musical: Fabiano Krieger e Gustavo Salgado
Músicas Originais: Fabiano Krieger

Elenco: Daniela Fontan (Liz), Thelmo Fernandes (Governador Sérgio Camargo, Fanho, D. João VI e Donald Trump), Augusto Volcato (Justin; Zé; Homem do Lixão; Deputado Amaro; Figurante, Begônia; e Âncora do Debate), Ester Dias (Líder Comunitária, Zé, Estudante, Índia e Deputada), Flora Menezes (Eveline; Assessora do Governador, Mendiga; Jennifer e Cinderela), Ingrid Gaigher (Narradora; Irmã, Chefe dos Terroristas; e Branca de Neve), Joana Mendes (Tia Lucy, Pivete e Mulher do Lixão), Marcelo Nogueira (Martin, marido de Liz; Deputado Malaquias e Getúlio Vargas); Nando Brandão (Gabriel, Coro e Ayrton Senna) e Udylê Procópio (Militante, Miliciano Carlão, Escravo e Saci)

Direção de Movimento e Coreografias: Carol Pires
Figurinos : Carol Lobato
Cenário : Nello Marrese
Iluminação: Paulo Denizot
Design de Som: Rossini Maltoni
Design Gráfico : Pablito Kucarz
Fotos: 
Carol Pires
Visagismo: Diego Nardes
Assessoria de Imprensa: Duetto Comunicação
Direção de Produção: Júnior Godim
Produção Executiva: Juliana Trimer
Assistente de Produção: Nely Coelho
Realização: Quase Companhia
Idealização: Leandro Muniz




 









SERVIÇO:

Temporada: De 12 de abril a 6 de maio de 2018
Local: SESC Copacabana - Arena
Endereço: Rua Domingos Ferreira, 160 – Copacabana – Rio de Janeiro
Dias e Horários: De 5ª feira a sábado, às 20h; domingo, às 19h
Valor dos Ingressos: R$ 30,00 (inteira); R$ 15,00 (meia-entrada); R$ 7,50 (associado SESC)
Duração: 1h45min
Classificação Indicativa: 16 anos
Gênero: Musical
Lotação: 242 lugares

 
















O humor é uma excelente ferramenta para a crítica, qualquer que seja ela, e, neste espetáculo, ele é muito bem construído, servindo a tal função. É próprio para ratificar os versos de Belchior: “A vida realmente é diferente / Quer dizer / Ao vivo, é muito pior”.

Torço muito por “A VIDA NÃO É UM MUSICAL - O MUSICAL”, que consiga patrocínios, para que possa emplacar novas temporadas e ser levada, também, a outras praças, a fim de que, em outas cidades e estados, se tome conhecimento do bom TEATRO que está sendo feito no Rio de Janeiro, apesar de todos os pesares.

Recomendo muito o musical!!!

E VAMOS AO TEATRO!!!

OCUPEMOS TODAS AS SALAS DE ESPETÁCULO DO BRASIL!!!

COMPARTILHEM ESTA CRÍTICA, PARA UMA MAIOR DIVULGAÇÃO DO BOM TEATRO BRASILEIRO!!!



 




(FOTOS: CAROL PIRES.)



















































































quinta-feira, 26 de abril de 2018


SENHORA DOS AFOGADOS


(MAIS UMA DESCONSTRUÇÃO
QUE DEU CERTO.
OU
A ARTE DE VALORIZAR
UM TEXTO.)




            Já quase virou um mantra: eu não faço parte dos fanáticos por NELSON RODRIGUES; nem de seus simples admiradores. Sustento a minha opinião sobre sua obra dramática (não a de cronista, que adoro), sem medo de apedrejamentos, porque não tenho compromisso com ninguém, a não ser comigo mesmo, com o meu pensamento, com o meu gosto e a minha verdade, embora respeite a opinião alheia e saiba que sou minoria. Só tenho dúvidas quanto a um fato: será que a legião de “rodrigomaníacos” é sincera ou não exprime suas verdadeiras convicções, para não ficar “desenturmada”? Acredito que muita gente o incensa, para não se sentir “out” ou sofrer críticas negativas, o que não é problema para mim.

Repito o que já disse, em outras críticas, sobre textos do “Anjo Pornográfico”: de suas 17 peças, agrada-me meia dúzia e, certamente, “SENHORA DOS AFOGADOS” não é uma delas, nem mesmo depois de ter assistido à brilhante montagem de JORGE FARJALLA, em quem reconheço um enorme talento, já tantas vezes demonstrado, inclusive em outras montagens com textos de NELSON. Aplaudo, e muito, a encenação, incluindo direção, elenco e profissionais técnicos envolvidos no projeto; não o texto. Não gosto dele e considero-o, inclusive, um pouco hermético, de difícil compreensão para o grande público.  

            FARJALLA é tão criativo, inventivo, inteligente e genial, que consegue me fazer gostar de um espetáculo teatral, montado sobre um texto pelo qual não tenho a menor simpatia. Isso porque ele, um rodriguiano convicto, profundo pesquisador da vida e da obra de NELSON, sabe enxergar, nas profundezas da obra do autor, aquilo que, talvez, eu não consiga ver nem na superfície; ou melhor, até enxergo, mas não gosto do que vejo. Não vou perder a oportunidade de me utilizar de uma frase nada original, porém verdadeira: "GOSTO NÃO SE DISCUTE". E, por conta disso, FARJALLA parte para direções incríveis, da obra do autor em tela, utilizando uma estética singular, com destaque para a recente “Dorotéia”. Não foi diferente com o espetáculo aqui analisado.



 







SINOPSE:

Ligações incestuosas, obsessões, pulsões arcaicas, conflitos entre o lógico e o irracional, todas as amarras são rompidas, os personagens se movem num tempo verdadeiramente mítico, do inconsciente. “SENHORA DOS AFOGADOS” é uma peça que se aproxima das tragédias gregas, em que os clãs familiares se devoram, reciprocamente, num inferno de culpas desmedidas. 

DONA EDUARDA (ALEXIA DECHAMPS), esposa de MISAEL (JOÃO VITTI), e MOEMA (KAREN JUNQUEIRA), única filha mulher que restara, além do irmão, PAULO (LETÍCIA BIRKHEUER), se digladiam, em torno da questão do pudor e da honra da mulher, hostilizando-se, mutuamente, devido a um ódio primordial.

Na trama, ainda há espaço para NADIA BAMBIRRA (DONA MARIANINHA), DU MACHADO (VENDEDOR DE PENTES e VIZINHO) e JAQUELINE FARIAS (PROSTITUTA MORTA, OUTRA PROSTITUTA e VIZINHA).






MOEMA, a filha mais velha, de três irmãs, nutria um amor incestuoso pelo pai, a ponto de afogar suas duas “rivais”, CLARINHA e DORA, que não aparecem na trama, para poder ser a única a merecer a atenção de MISAEL. Por desejar, compulsivamente, o pai, como homem, ela intenta ser a única a dividir a cama com ele, porém, sua vontade jamais será consumada, já que, assim como nas tragédias, “o desejo anda sempre ao lado da morte” (JORGE FARJALLA).

Ela, que gostaria de viver sozinha com o pai, arquiteta um plano, numa trama quase macabra, cheia de mistérios, para que a mãe traia o marido com o próprio NOIVO – este não é chamado pelo nome próprio - (RAFAEL VITTI), um ex-oficial da marinha.

Ocorre que o NOIVO se apoia naquela ignomínia, para desvendar a morte de sua mãe, uma prostituta, assassinada, por MISAEL, há 19 anos.










A peça foi escrita em 1947, baseada em “Electra Enlutada”, do dramaturgo americano Eugene Oneill, já tendo este feito uma adaptação de “Orestíada”, de Ésquilo, um trágico grego antigo. Esteve sob censura, de 1948 a 1954, nos governos de Dutra e Vargas. Apesar de o texto de “SENHORA DOS AFOGADOS” ser classificado, oficialmente, como um drama, nota-se, claramente, que ele se aproxima mais de uma tragédia.

Sua estreia ocorreu em 1954, com um grande elenco, capitaneado por Nathalia Timberg, sob a direção de Bibi Ferreira. Como também aconteceu em outras peças de NELSON, houve uma cisão na plateia. Parte aplaudia. Uns, naturalmente; poucos, com bastante entusiasmo, chegando ao extremo elogio de considerá-lo “gênio”. Outra parte do público apupava o autor, com assovios, vaias e xingamentos, como o de “tarado”, como atesta o noticiário da época.  

         Os elementos presentes nesta ficção são facilmente encontrados em quase todas as obras dramáticas de NELSON: traição, incestos, destruição da instituição família, fratricídios, falta de pudor, desvalorização da honra, infidelidade, repressão sexual, vingança e morte; os principais. Com eles, o dramaturgo construiu seu universo criador e FARJALLA apropria-se dele, para, sem fugir ao cerne dos textos, dar o seu toque pessoal, fazendo a sua adaptação, uma leitura “sui generis”, de grande admirador de NELSON.

            No original, a ação se passa no Rio de Janeiro, porém o encenador houve por bem – e o fez de forma magnífica - transferir o espaço para um mangue pernambucano, creio que para homenagear o autor do texto, nascido em Recife, onde viveu até o início de sua juventude, quando se transferiu para o Rio de Janeiro, cidade em que viveu o resto de sua vida.
O grande diferencial, nesta montagem, é a opção, de FARJALLA, de unir o divino e o profano, puxando para o misticismo e o sincretismo religioso. É extremamente interessante a associação que o diretor faz entre os personagens e alguns orixás e elementos das matrizes religiosas africanas, como pode ser comprovado no interessante e bem detalhado e ilustrativo programa do espetáculo, pelos textos e as informações que contém: MISAEL = Xangô, deus da justiça; MOEMA = Iemanjá, rainha das águas; DONA EDUARDA = Oxum, deusa da beleza; PAULO = Oxumaré, meio homem, meio mulher; DONA MARIANINHA, a avó de MOEMA = Obá, ranzinza; NOIVO = Oxaguiam, o justiceiro; PROSTITUTA = Maria Padilha, pomba-gira; VENDEDOR DE PENTES = Zé Pelintra, exu; VIZINHOS = Odus (inteligências que participaram da criação do universo; cada pessoa traz um odu de origem, que a influencia e cada orixá é governado por um ou mais odus).






Ao contrário de muitos diretores, FARJALLA entende, como eu, que o trabalho de mesa, de descobrir e discutir a essência e a estrutura dos personagens, é da maior importância e facilita o trabalho de todos, quando se parte para os ensaios no palco. Assim age em todas as suas montagens. Nesta, foram quarenta dias de intenso trabalho de leitura e ricas descobertas.

Trecho extraído do “release” que me foi enviado por MARY DEBS (DEBS COMUNICAÇÃO): Os DRUMMOND, uma família de três séculos, com mulheres que se gabam da fidelidade conjugal, choram a morte, por afogamento, de CLARINHA, uma das filhas de DONA EDUARDA e MISAEL. Ao mesmo tempo, prostitutas do cais do porto interrompem suas atividades, para lamentar a impunidade do assassinato de uma das suas, que morrera dezenove anos atrás. O assassino é MISAEL DRUMMOND, pai de DORA, CLARINHA e MOEMA. Ele matara a ‘mulher da vida’ (a impura – grifo meu), com quem tivera um caso, pois ela insistia em experimentar o leito conjugal antes da esposa, no dia do seu casamento”. Perdão, se considerarem esta última parte um “spoiler”, mas não resisti a escrevê-la.
O projeto desta montagem nasceu de um desejo de LETÍCIA BIRKHEUER de que FARJALLA a desconstruísse num papel de TEATRO, ou seja, desse a ela a oportunidade de interpretar um bom personagem, que fizesse o público deixar de vê-la, apenas, com uma das modelos mais bonitas deste país. FARJALLA topou o desafio e lhe deu um papel masculino, PAULO, transformando-a numa espécie de “Diadorim do mangue”. Para que não paire nenhuma dúvida com relação à metáfora anterior, atenção para este detalhe: não se trata de uma mulher, disfarçada de homem; é um personagem masculino, interpretado por uma mulher, deixando, no ar, uma certa dualidade, até porque a atriz utiliza seus próprios cabelos compridos, mas assume uma postura masculina, até onde consegue, no corpo e na voz. Apresenta-se, como os demais personagens, sob uma figura suja e desleixada, graças ao ótimo visagismo, de VAVÁ TORRES, como um ser meio carcomido, pele seca, gasta e curtida, pelo tempo e pelo sol. São muito boas as caracterizações físicas, em função de uma perfeita combinação: maquiagem (VAVÁ TORRES) e figurinos (JORGE FARJALLA e ANA CASTILHO), ambos responsáveis, também, pelos adereços. Os figurinos são confeccionados com a predominância de tecidos de textura grosseira, em tons escuros, muito parecidos com trapos, andrajos, a maioria.
Já que mencionei LETÍCIA, cujo trabalho me agradou, complemento o comentário sobre sua atuação, dizendo que superou as minhas expectativas, o que deve ocorrer com a maioria dos espectadores, embora já diga, logo, que eu havia deixado, do lado de fora da entrada do lindo Teatro Porto Seguro (São Paulo), onde o espetáculo encerra temporada, infelizmente, no próximo domingo, dia 29 de abril (2018), todo e qualquer vestígio de preconceito, até porque já a vira em trabalhos anteriores, porém em papéis de menor importância e nos quais não se dera a desejada “desconstrução”. É muito prazeroso vê-la em cena, assim como todos os demais do elenco.
ALEXIA DECHAMPS, uma das protagonistas, que já me encantara como a viúva Dona Maura, em “Dorotéia”, ratifica seu talento de atriz, num papel denso, em que a personagem ora se aproxima de uma madona, ora flerta com uma “operária de um prostíbulo”. O desejo pelo sexo é forte, mas autorreprimido. A personagem é plena de uma sensualidade e um erotismo, que procura conter, em família, mas acaba cedendo aos prazeres da carne, quando se entrega ao NOIVO. ALEXIA, também uma mulher de rara beleza e porte físico invejável, se permite viver uma personagem que a deixa quase irreconhecível, numa entrega total à DONA EDUARDA, “uma mulher forte, resignada, triste, doce, assustada e com vontade imensa de amar e ser amada. Complexa, silenciosa e de família perturbadora” (ALEXIA DECHAMPS). E eu acrescento: opaca, descolorida. Felicito-a pelo trabalho.
MOEMA (KAREN JUNQUEIRA) é a outra protagonista deste enredo. “MOEMA é densa, tem uma suavidade e quase uma inocência, no início; essa é sua máscara social” (KAREN JUNQUEIRA). Creio que seja a personagem que NELSON mais utiliza, na trama, para provocar, no público, uma reflexão acerca da verdade que há em cada ser humano: uma parte boa, revelada, representada ou fingida, que seja, e outra, ruim, perversa, escondida nas nossas entranhas, pronta a entrar em ação, quando um desejo maior nos acomete. É quando atropelamos tudo, passamos, como um trator, por cima de todos, até cometendo as maiores atrocidades, para atingir nossos objetivos, sejam eles justos ou não, corretos ou tortos, como o seu desejo incestuoso pelo próprio pai. KAREN é uma atriz de grandes possibilidades, que agasalhou o grande desafio de enfrentar uma personagem muito forte, que vai desencadear uma sucessão de desgraças, dentro e fora da família. Ótimo é o trabalho da jovem atriz.
    
Passo a falar de dois importantes personagens na trama, pai e filho bastardo, interpretados, aqui, por pai e filho, na vida real, trabalhando juntos pela primeira vez. O pai, MISAEL, é JOÃO VITTI; o filho, na verdade, o NOIVO, é RAFAEL VITTI, ambos em corretíssimas atuações. JOÃO, para mim, não seria uma novidade, pois acompanho seu trabalho, no TEATRO, de longa data. RAFAEL, porém, me surpreendeu e, com toda sinceridade, visto que não sou de meias verdades nem de eufemismos, tinha, até então, minhas dúvidas sobre seu potencial de ator, já que nunca o vira pisando num palco e, principalmente, defendendo um personagem tão forte, como o NOIVO. Não era preconceito; era ceticismo. Meu lado São Tomé falava mais alto. Mas aí, para que possamos conhecer quem nasceu para a arte de representar ou não, existe o TEATRO, veículo em que ninguém consegue enganar e nem pode contar com recursos tecnológicos ou com a possibilidade de refazer a cena, como no cinema e na TV. No palco, a pessoa mostra que é ou não do ramo. JOÃO já o é, há muito tempo; RAFAEL, para mim, acaba de ser incorporado ao clã.
MISAEL é um “cristão-burguês, um homem sem fé e prisioneiro da sua irracionalidade, (in)fidelidade conjugal,; incesto e assassinato são alguns dos venenos que nutrem sua obsessão pela luz e sombra, simbolizadas do Farol, cravado no meio das águas de um mar que não devolve o cadáver de seus afogados” (JOÃO VITTI). O sangue mancha-lhe as mãos e parece sair por seus poros. O ator vê, no personagem (está no programa da peça) a possibilidade de o autor desejar que cada espectador se veja refletido nele (personagem), obrigando-nos a enxergar a própria violência, a nossa natural maldade. Eu me permito não considerar tanto essa possibilidade, muito mais presente em MOEMA. É muito boa a sua atuação.
RAFAEL, um ator muito jovem, é digno de total respeito, não só pelo fato de topar um grande desafio, mas também, ou principalmente, por ter mergulhado fundo em livros e pesquisas, até chegar aos contornos do NOIVO. O resultado é bem satisfatório, para um incipiente (com “c”; não com “s”). O fato de o nome do personagem não ser revelado pode estar ligado a uma representação simbólica daquilo ou de quem surge no nosso caminho, sem que tivéssemos programado, para gerar o caos e nos desafiar, para que continuemos a viver; também para fazer justiça.
NADIA BAMBIRRA, segundo a própria, “estava trancada no cofre”, como um tesouro, algo muito valioso, acrescento eu, concordando com ela, pois tem dedicado seu tempo mais às atividades de diretora, preparadora de elenco e professora de interpretação teatral. NADIA, excelente atriz, incorpora uma DONA MARIANINHA, com toda a sua força de mulher sisuda, misteriosa e louca. Durante toda a peça, enlouquecida, a personagem guarda um segredo, que a sufoca, que seria conhecer o autor do assassinato da prostituta.
Desde sua primeira aparição na peça, DU MACHADO (VENDEDOR DE PENTES e VIZINHO), segundo o qual o personagem é “místico, profético; às vezes, engraçado e lúcido, que está em todos os lugares ao mesmo tempo”, chama a atenção do espectador para a sua presença em cena. Mesmo quando fora, diretamente, da ação, visto que os atores nunca saem do palco, algumas vezes, me dei conta de que estava desviando o meu foco da cena e transferindo-o para ele, de tão marcante que é a sua presença cênica. Salvo engano, só conhecia um único trabalho do ator, que também é músico, como um dos “homens-jarro”, de “Dorotéia”, em que, além de ser um personagem bem coadjuvante, aparecia com o corpo todo coberto, incluindo o rosto. Aqui, ele se despe, no sentido de se mostrar inteiro, como um bom ator, trabalhando, com maestria, voz e, principalmente corpo, apoiado a um cajado, pelo fato de seu personagem ser aleijado, o que lhe exige um trabalho corporal que muito aplaudo.
JAQUELINE FARIAS, que, em “Dorotéia”, vivia a viúva Carmelita, personagem de maior destaque, com relação às que representa em “SENHORA DOS AFOGADOS”, consegue, com personalidade, por meio de personagens bem coadjuvantes, deixar sua marca em cena: PROSTITUTA MORTA, VIZINHA e OUTRA PROSTITUTA.
Um dado interessante, julgo eu, é que cinco, dos oito atores do elenco (JOÃO, RAFAEL, KAREN, NADIA e LETÍCIA), mais da metade, portanto, está, pela primeira vez, experimentando um texto de NELSON.
“JORGE FARJALLA é mestre em levar NELSON RODRIGUES ao extremo contemporâneo e destacar a singularidade da religião em suas obras, em que o sagrado se alimenta do profano, teatralizando, ainda mais, através dos signos e símbolos, revisitando a obra numa estética que comunga cenário, figurino, desenho de luz, som e música original, em um contexto singular aos olhos do TEATRO pós-moderno, riscando, nesta montagem, mais uma vez, sua visão própria e original do texto, com a marca arrojada e diferente, que imprime nas encenações que dirige”. (texto extraído do “release”, com mínimas intervenções minhas).
            Em “Doroteia”, os “homens-jarro”, genial criação de FARJALLA, faziam as vezes do coro das tragédias gregas. Aqui, tal função cabe aos VIZINHOS, sempre presentes, espionando, espreitando as ações dos personagens principais.






  


O premiado cenógrafo JOSÉ DIAS, que, há algum tempo, vem acompanhando os projetos de FARJALLA, fazendo parte de seu time de grandes criadores, tem, nesta peça, uma enorme importância, uma vez que é o responsável pela direção de arte e pelo espaço cênico, algo além, simplesmente, de um cenário. DIAS criou uma ambientação, incorporada ao todo da montagem, que dialoga com tudo e todos os que ocupam aquele espaço cênico. Gostei muito dos galhos retorcidos, nas laterais do palco, à guisa de representar a vegetação de um manguezal. Já assisti a várias montagens de “SENHORA DOS AFOGADOS” e não me recordo de nunca ter visto um farol em cena. Não é, porém, um mero farol, com a função de orientar os navegantes; é uma peça que se transforma em quarto, num leito conjugal ou num catre de bordel. Ao mesmo tempo, toma a forma de um altar, com direito a um enorme crucifixo, este utilizado, pelo diretor, para nos oferecer boas surpresas.

Também tendo assinado a direção musical e as canções originais da montagem farjalliana de “Dorotéia”, JOÃO PAULO MENDONÇA volta a trabalhar com o diretor, nas mesmas funções, criando canções ingênuas e pueris, bem ao jeito do cancioneiro popular da beira do rio e do mar. A ciranda não foi esquecida.

Quanto à luz, criada por VLADIMIR FREIRE e JACSON INÁCIO, esta segue a estética da peça e é bem parcimoniosa, soturna, criando áreas de sombras, para ocultar o que não deve ser exposto ou, apenas, sugerir e aguçar a inteligência e a atenção do espectador; para valorizar o mistério. Um belo trabalho.



 








FICHA TÉCNICA:

Texto: Nelson Rodrigues
Direção e Encenação: Jorge Farjalla

Elenco: Alexia Dechamps, João Vitti, Karen Junqueira, Rafael Vitti, Letícia Birkheuer, Nadia Bambirra, Jaqueline Farias e Du Machado

Dramaturgia: Jorge Farjalla
Direção Musical e Trilha Original: João Paulo Mendonça
Direção de Arte e Espaço Cênico: José Dias
Figurinos e Adereços: Jorge Farjalla e Ana Castilho
Desenho de Luz: Vladimir Freire e Jacson Inácio
Preparação Corporal: Jorge Farjalla
Maquiagem e Visagismo: Vavá Torres
Assistente de Direção: Raphaela Tafuri
Preparação Vocal: Patrícia Maia
Design Gráfico: Kalulu Design & Comunicação
Direção de Produção: Lu Klein

















SERVIÇO:

Temporada: De 23 de fevereiro a 29 de abril de 2018
Local: Teatro Porto Seguro
Endereço: Alameda Barão de Piracicaba, 740 - Campos Elíseos – São Paulo 
Telefone: (11) 3226-7300)
Dias e Horários: 6ª feira e sábado, às 21h; domingo, às 19h.
Gênero: Drama
Valor dos Ingressos: R$90,00 (plateia) e R$70,00 (balcão e frisas). Meia entrada para quem fizer jus a ela.
Classificação: 16 anos
Duração: 90 minutos











            É uma pena que eu só tenha tido a oportunidade de ir a São Paulo, para assistir à peça, já no final da temporada, que foi muito bem recebida, pelo público e pela crítica paulistana. Gostaria de revê-la.

Os cariocas merecemos que “SENHORA DOS AFOGADOS” também atraque no porto do Rio, fazendo o caminho inverso ao de “Doroteia”, que estreou na capital fluminense, onde fez um estrondoso sucesso, e partiu, depois, para uma boa temporada na “terra da garoa”, além de uma bela turnê por todo o Brasil. Que “SENHORA DOS AFOGADOS” tenha o mesmo destino, por merecimento.

Recomendo, com empenho, o espetáculo!
           


E VAMOS AO TEATRO!!!
           
OCUPEMOS TODAS AS SALAS DE ESPETÁCULO DO BRASIL!!!

COMPARTILHEM ESTA CRÍTICA, A FIM DE QUE ESTE BELO TRABALHO FIQUE REGISTRADO, PARA OS QUE ASSISTIRAM A ELE E PARA OS QUE, COM A GRAÇA DOS DEUSES DO TEATRO, VIRÃO A FAZÊ-LO!!!



 






(FOTOS: CAROL BEIRIZ
e
EDSON LOPES JR.)