segunda-feira, 9 de abril de 2018


A
MULHER MONSTRO


(UM SOCO NA BOCA DO ESTÔMAGO.
ou
MANUAL PARA
“REFINAR” A MALDADE.)





           
            Uma das certezas que o TEATRO, me deu, desde que a ele me dediquei, de corpo e alma, e continua me dando, é a de que existe vida inteligente, fora do eixo Rio – São Paulo. Há muita gente, em outras partes do Brasil – e repito o que já disse várias vezes -, que faz um TEATRO da melhor qualidade, que merecia estar nas mídias e ser visto por brasileiros de todas as partes deste país-continente.

Por questões mais que conhecidas por todos nós, infelizmente, poucos artistas e companhias conseguem, vez por outra, condições de deixar o seu berço e mostrar sua arte em outras cidades e estados brasileiros. Sempre que isso acontece, ou seja, toda vez que, no Rio de Janeiro, onde moro, travo conhecimento com espetáculos de outros estados, excetuando-se São Paulo, e saio do Teatro mexido, satisfeito com o que me foi mostrado, aviva-se, em mim, a esperança de que, um dia, as coisas vão mudar, o TEATRO e as artes, de uma forma geral, serão valorizados - porque, hoje, com raríssimas exceções, não recebem o apoio que merecem, por parte das “autoridades governamentais” - e vão fazer parte de um currículo nacional, nas escolas, para que se formem cidadãos melhores, em todos os sentidos, porque são veículos capazes de produzir transformação, para melhor.






            Um momento de grande alegria foi no último sábado (7/4/2018), quando tive o grato prazer de conhecer o trabalho de um jovem ator potiguar, radicado em Recife, JOSÉ NETO BARBOSA, que está, infelizmente, em fim de temporada, no Teatro Rogério Cardoso (VER SERVIÇO.), com um solo interessantíssimo, chamado “A MULHER MONSTRO”, com texto do próprio NETO, baseado no conto “Creme de Alface”, de CAIO FERNANDO ABREU.

            O nome de CAIO, apesar de seu reconhecido pendor para as letras, apenas, não basta, para a garantia de um bom espetáculo de TEATRO, já que ele não era dramaturgo. Uma vez que se decida transpor, para o palco, sob a forma de TEATRO, qualquer texto do consagrado e saudoso escritor, faz-se necessário o talento de alguém que tenha competência para pôr em prática a devida conversão, resguardando as características e intenções originais do autor, como também fazê-lo dentro de uma dinâmica dramatúrgica, que desperte o interesse da plateia e prenda-lhe a atenção. Aqui, chega a hora do reconhecimento do brilhante trabalho da dramaturgia. O conto serviu de base para que fosse feita uma colagem de trechos que compõem um texto impactante, até mesmo chocante, capaz de provocar reações até de asco, quando o espectador se vê diante, muito próximo, fisicamente, de uma criatura à sua semelhança, capaz de tanta monstruosidade. São frases e palavras que estão na mídia, na boca de líderes políticos, nas canções e pregações de líderes religiosos, mormente os evangélicos (E, aqui, não vejam qualquer preconceito ou crítica, de minha parte, aos que professam a verdadeira religião evangélica.). São conteúdos que ouvimos em todas as partes, inclusive entre amigos e dentro de nossas próprias famílias. Somos todos, no fundo, “monstros”, que se recusam a olhar no espelho.

















SINOPSE:

A tragicomédia fala do preconceito, trata a atualidade político-social do Brasil, por intermédio da figura de uma burguesa, perseguida pela própria visão intolerante da sociedade, sem saber lidar com a solidão e as relações, num tempo de ódio e corrupção vistos sem vergonha.

Falas reais, de figuras públicas, foram partidas, para a construção do texto, uma colagem de declarações de líderes religiosos, políticos e anônimos, atualizando o conto “Creme de Alface”, do renomado escritor CAIO FERNANDO ABREU.

A peça aborda as barbáries, sempre lidas e ouvidas, de forma tão escancarada, no dia a dia, e, agora, acentuadas nos últimos tempos, não só nas redes sociais, mas muito as tendo como canais de difusão e ampliação.

          







 


            De acordo com o “release” da peça, enviado por CRHISTIANO NASCIMENTO (Assessoria de Imprensa), o espetáculo começou a ser criado em 2015,
motivado pela efervescente crise política do país. JOSÉ NETO BARBOSA aborda a intolerância, decorrente da discriminação e segregação social, além de inserir memórias pessoais. A inspiração também parte das suas lembranças da “Mulher Monga / Conga”, personagem popular dos parques e circos do interior do nordeste brasileiro. Uma forma poética de subverter o que deve ser considerado monstruoso, aliado à posição de opressão e medo”.
            Acho bastante pertinente incluir, nesta análise crítica, um depoimento do ator e diretor do espetáculo, JOSÉ NETO BARBOSA, palavras que também retiro do “release” supracitado: Resolvi fazer da minha arte militância. Vivemos um momento de intolerância muito grande, quando ferir o outro não é vergonhoso; muito pelo contrário, é aceitável socialmente. É um tempo delicado em que monstros estão todos soltos. Se de 1975 para 1995, CAIO percebeu que a sociedade estava mais intolerante, hoje, passados pouco mais dos quarenta anos da criação desse conto inspirador, vemos que, durante o tempo de tentativas da redemocratização brasileira, pouco avançamos, com relação à intolerância e o preconceito. Como diz Nina Simone, ‘o artista deve pensar o seu tempo’. Não nos bastava fazer ficção pela ficção, apenas, diante de tudo que vivemos, hoje, no Brasil. É um dos maiores desafios de minha trajetória no teatro.”.
É, exatamente, essa a proposta de NETO, totalmente perceptível em sua atuação. Ela é atingida em sua plenitude, pois consegue tocar o mais insensível dos espectadores. O espetáculo não é para mero divertimento; é para despertar o exercício da reflexão. Descrito, no “release”, como uma “tragicomédia”, o monólogo provoca muitos risos, é verdade. Mas o público ri de quê? Ri de nervosismo. Ri dos absurdos que saem da boca de uma criatura, que, no fundo, no fundo, é digna de pena. Ri do patético. Comiseração é o melhor termo que se aplica ao sentimento que a personagem nos provoca.








Ninguém consegue, após uma sessão de “A MULHER MONSTRO”, deixar de, pelo menos, buscar, em si, a sua porção “monstro” e pensar em sepultá-la, se bem que a imperfeição humana seja uma grande barreira para que tal sepultamento seja total. Fica aí, inclusive, a sugestão de se pensar em assinar, ou não, embaixo da tão conhecida afirmação de Rousseau, de que “Ninguém nasce mau; a sociedade é que o corrompe”.
            A peça nos provoca bastante e nos instiga a questionar o pensamento do célebre filósofo francês: Será que todo Homem é, mesmo, bom por natureza, não nasce ruim, por índole? Como se explicar o fato de, numa única família, sob as mesmas condições de criação e oportunidades, dois indivíduos possam trilhar caminhos tão opostos? Será que o que percorreu a estrada cuja seta indicava o “BEM” é bom o tempo todo? Não tem seu “monstrinho”, por minúsculo que seja, criado num porão do seu interior? Não se deixa contaminar pelo ambiente, pela sociedade em que vive?
            A peça, que já vem de outras temporadas e já foi vista em algumas cidades brasileiras, de norte a sul, desembarcou, no Rio de Janeiro, com muitas credenciais, fruto dos prêmios e indicações a outros, que vem conquistando, como o Prêmio Cenym de Melhor Monólogo do Teatro Nacional de 2017, outorgado pela Academia de Artes no Teatro do Brasil. Em 2017, “A MULHER MONSTRO” também foi destaque no Festival de Curitiba. Já passou por relevantes mostras/festivais nacionais e internacionais, com sucesso de público e crítica, recebendo prêmios e indicações em diversas cidades brasileiras: Recife/PE, João Pessoa/PB, São Paulo/SP, Curitiba/PR, Trindade/PE, Natal/RN, Ponta Grossa/PR, Porto Alegre/RS e Mossoró/RN.





            Ainda que escrito, por CAIO FERNANDO ABREU, em 1975, em plena época da ditadura militar, “página infeliz da nossa história”, o conto no qual a peça se baseia só foi publicado em 1995, no livro “Ovelhas Negras”, um ano antes de sua morte, ocorrida em 25 de fevereiro de 1996. À época da publicação no conto “Creme de Alface”, CAIO deu a seguinte declaração: “O que me aterroriza, neste conto, de 1975, é a sua atualidade. Com a censura da época, seria impossível publicá-lo. Depois, cada vez que o relia, acabava por rejeitá-lo, com um arrepio de repulsa, pela sua absoluta violência. Assim, durante vinte anos, escondi, até de mim mesmo, a personagem dessa mulher-monstro, fabricada pelas grandes cidades. Não é, exatamente, uma boa sensação, hoje, perceber que as cidades ficaram ainda piores, e pessoas assim, ainda mais comuns.” De lá para cá, passaram-se 23 anos e nada melhorou. Parece que os monstros se reproduzem, como “gremlings”, devastando tudo, com seu humor negro e seu poder de destruição.









            O espetáculo é uma montagem da S.E.M. CIA. DE TEATRO (SENTIMENTO, ESTÉTICAS E MOVIMENTO), fundada em 2012 em Natal/RN, hoje com sede no Recife/PE. A Cia. também conta com os integrantes SÉRGIO GURGEL FILHO (potiguar, iluminador, preparador cênico, diretor, bailarino e ator há 13 anos), DIÓGENES LUIZ (paulista, também radicado em Nova York/EUA, “drag queen”, maquiador, cineasta e sonoplasta) e com MYLENA SOUSA (norueguesa, cineasta, diretora, fotógrafa e sonoplasta).
            JOSÉ NETO BARBOSA, o grande nome do espetáculo, milita no meio teatral há 15 anos. Nasceu no interior do Rio Grande do Norte, mas, há algum tempo, assumiu Pernambuco, como local de trabalho, onde exerce, na capital, Recife, o cargo de Assessor de Teatro e Ópera do Governo de Pernambuco. Além de ator, também é diretor, dramaturgo, arte educador e produtor. Percorre, ainda, o país, como curador / jurado convidado de mostras teatrais, e, mais, acumula o ofício de professor de atuação.
            É preciso muito cuidado, para escrever sobre esta peça, para que não se evitem os “spoilers” sobre determinadas situações, que são destaque, no espetáculo. Dessa forma, vou me esforçar bastante, para não roubar, aos que ainda irão assistir a esta montagem, as surpresas e o prazer que aquelas situações me causaram.
            Em geral, antes de assistir a uma peça, leio, com muita atenção, o “release” que me chega às mãos. Por algum motivo, que me foge, no momento, não se deu essa prática, com relação a esta “A MULHER MONSTRO”, o que acabou sendo muito bom, para mim, porquanto criei uma expectativa sobre o que eu “achava” que poderia encontrar em cena e acabei me deparando com algo completamente diferente do que imaginava e de uma qualidade a toda prova, superando, em muito, as minhas expectações.
            Posso, apenas, adiantar que o espetáculo se inicia com uma “performance” do ator, ao som de um aúdio original da Mulher Monga / Conga. Ele se apresenta com uma máscara de monstro e corpo de mulher, em vestes íntimas, e se aquece, para entrar numa jaula, de, aproximadamente, três metros quadrados, dentro da qual acontece toda a encenação. Há uma desconstrução, que dará lugar a uma reconstrução. Mais, não é conveniente falar. É o único cenário do espetáculo, além de uma cadeira, giratória, de executivo, colocada dentro da jaula.
            A iluminação da peça utiliza luz de serviço, pequeninos refletores, brancos ou coloridos, e bastantes “leds”; luz perfeita, apropriada à proposta do espetáculo.








            Além do brilhante texto, o grande destaque da encenação vai para o fabuloso trabalho de ator, de JOSÉ NETO BARBOSA, o que justifica suas indicações a prêmios. Trata-se de um trabalho muito difícil, que exige o máximo de energia do ator, tanto física quanto emocional, porque a personagem, embora seja a mesma pessoa, age, digamos, em “cinco áreas de atuação”, como se fossem cinco mulheres numa só, sem “spoilers”: a que lamenta a morte do único filho; a que é evangélica “praticante”, chegando ao extremo da intolerância, com relação a tudo; a que lamenta ter sido traída pelo marido, despejando, sobre ele, toda a sua ira e vingança; a que fala mal da família, principalmente de uma tia e de seu filho “homossexual” e sua filha “aleijada”; a que não faz outra coisa na vida, a não ser reclamar desta e criticar tudo o que, “segundo seus princípios”, está errado, no dia a dia da sociedade em que vive.
            NETO esbanja talento no palco, conseguindo prender a atenção do público, do primeiro ao último momento da peça, por sinal, este, muito impactante. Por motivos óbvios, paro, por aqui, qualquer outro comentário acerca desse final apoteótico.  


 







FICHA TÉCNICA:

Idealização, Dramaturgia, Direção e Atuação: José Neto Barbosa.

Sonoplastia, Figurino e Cenografia: S.E.M. Cia. de Teatro.
Colaboração em Iluminação: Sérgio Gurgel Filho.
Colaboração em Maquiagem: Diógenes Luiz.
Fotografias e Outros Registros: Mylena Sousa.
Fotos: Annelize Tozetto
Produção: S.E.M. Cia. de Teatro.













SERVIÇO:

Temporada: De 23 de março a 15 de abril de 2018

Local: Teatro Rogério Cardoso (Casa de Cultura Laura Alvim)
Endereço: Avenida Vieira Souto, 176, Ipanema – Rio de Janeiro
Dias e Horários: Sextas-Feiras e sábados às 19h; domingos, às 18h
Valor dos Ingressos: R$40,00 (inteira); R$20,00 (meia entrada)
Classificação Indicativa: 16 anos
Duração: Aproximadamente, 70 minutos.
Informações: 21 99747-4579 ou 
facebook.com/semciadeteatro












            Foi uma noite muito gratificante, por ter tido a oportunidade de assistir a uma produção tão simples e, ao mesmo tempo, tão grandiosa, do ponto de vista artístico, o que me faz recomendá-la, com o maior empenho.





(FOTOS: ANNELIZE TOZETTO
E
MYLENA SOUSA.)



GALERIA PARTICULAR 
(FOTO: ALEXANDRE POMAZALI.)






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