O
JORNAL –
THE ROLLING STONE
(O ESPETÁCULO ACABA,
MAS A
SUA MARCA FICA INDELÉVEL NA NOSSA ALMA.)
A
minha ansiedade por assistir a este magnífico
espetáculo só pode ser comparável à de escrever sobre ele, para exorcizar,
de vez, o que me fez tremer e ficar com a respiração comprometida, ao término
da peça, que está em cartaz no Teatro
Poeira (VER SERVIÇO).
É
impossível assistir a “O JORNAL – THE
ROLLING STONE” e não sair mexido do Teatro,
com, no mínimo, medo de continuar vivendo neste mundo cão, que, cada vez mais,
toma corpo ao nosso redor e nos sufoca e quase acaba com a nossa crença na
humanidade. E pensar que aquela ficção está na nossa frente, atrás, nos
lados... Não é ficção; estamos cercados dela. Não é a ficção que nos causa
medo; é a realidade o que nos apavora.
Como
diz o “release” da peça, que me
chegou às mãos via ANTÔNIO TRIGO (assessoria de imprensa), a “Montagem (...) propõe reflexões urgentes
sobre a busca pela identidade e o amor, num mundo que cerceia a liberdade e a
individualidade”. Eu
iria além: propõe reflexões que nos levam a admitir que o Homem não foi a obra-prima do Criador,
mas, sim, um grande fracasso da Sua
Criação. Diria que Deus não é perfeito,
porque “errou”, no penúltimo dia de Seu
trabalho, antes de descansar, no sétimo. Poderia não ter criado o ser “racional”.
O
texto de “O JORNAL...” é muito recente e sua temática, atualíssima. A peça
estreou, em Londres, em 2015, e já pode ser considerada um
imenso sucesso, com direito a prêmios.
SINOPSE:
Baseada
em fatos reais, infelizmente, e, tendo, como pano de fundo, a intolerância e a crueldade
contra os homossexuais, o texto fala
de uma história de amor, vivida por dois jovens, um genuíno ugandense, DEMBE (DANILO FERREIRA) e outro
mestiço, filho de mãe africana e pai irlandês, SAM (MARCOS GUIAN), um médico.
Num país em que a homossexualidade
é criminalizada, uma “aberração”, não admitida pelo Pai, não só a relação dos dois se torna impossível, como também
atinge e afeta, sobremaneira, todos os que giram à volta de DEMBE, principalmente sua irmã WUMMIE (INDIRA NASCIMENTO) e seu irmão
JOE (ANDRÉ LUIZ MIRANDA).
Desde
que o pai dos três morreu, eles, com dificuldades financeiras, lutam por
reorganizar a vida da família, dentro dos padrões culturais locais, com muito
sacrifício e determinação.
O caminho de JOE parece já estar traçado, visando à
sua nomeação, como pastor da comunidade em que vivem. Aos outros dois, estariam
destinadas duas vagas na universidade, a qual cursariam com bastante
dificuldade. Isso, se as coisas não tivessem tomado rumos diferentes do planejado
pela família; se SAM não tivesse
cruzado o caminho de DEMBE, ou
vice-versa, e ambos não tivessem se apaixonado.
É
exatamente nesse detalhe do final do parágrafo anterior que está concentrada
toda a carga dramática do espetáculo, uma vez que, vivendo num país que pune a
homossexualidade com a prisão perpétua, contando com a incitação de um
periódico local – “THE ROLLING STONE” –,
que publica listas e fotos de “supostos” homossexuais, sugerindo-lhes a forca,
os dois amantes se veem, num determinado ponto da narrativa, numa bifurcação da
estrada, na qual caminhavam, juntos, na condição de ter de optar por um
rompimento, pelo fim de uma linda, porém “proibida”, história de amor ou pôr em
risco a própria vida, talvez, até, com uma punição cruel, em que o povo, numa
prova de barbárie explícita, faria “justiça” com as próprias mãos.
Para que o leitor possa compreender
melhor o drama dos dois rapazes, os protagonistas,
e dos que os cercavam, transcrevo trechos, com ligeiras adaptações, extraídos
da Wikipédia, fonte que me serviu de
pesquisa para estes escritos. O material está reproduzido, aqui, “enxuto”,
tendo sido mantido o essencial, para a compreensão do texto da peça.
“A homossexualidade
em Uganda possui ‘status’ ilegal, sendo que os cidadãos LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e
Transgêneros) do país não possuem qualquer proteção contra discriminações e
agressões físicas e/ou verbal, como previsto na legislação.
O número de cidadãos
assumidamente LGBT no país é de,
aproximadamente, 500 000 pessoas.
(Não sei se os números são os de hoje.).
A atividade homossexual, tanto masculina quanto feminina, é ilegal no
país. Cidadãos LGBT que praticam
a homossexualidade são tidos como criminosos, de acordo com os termos do Código Penal de Uganda, o qual diz que
a ‘prática carnal com outra pessoa do
mesmo sexo é contra a ordem da natureza’. A homossexualidade é altamente criminalizada e, no caso da
homossexualidade masculina, a punição chega a uma pena de prisão perpétua.
De acordo com o ‘Pew Research Center’, 96% dos habitantes de Uganda acreditam
que ‘a homossexualidade é um modo de
vida que a sociedade não deve aceitar’. A porcentagem de homofobia era a quinta maior, em 45 países pesquisados.
Uma outra pesquisa,
realizada em 2010, revelou que 11% dos ugandenses viam o comportamento
homossexual como ‘moralmente aceitável’. Comparando com outros países do Leste Africano, apenas 1% na Tanzânia afirmou aceitar a
homossexualidade, 4% em Ruanda e
1% no Quênia.
Em novembro de 2012, o presidente
do Parlamento de Uganda prometeu promulgar uma lei anti-homossexualidade, que prevê sanções mais duras contra
pessoas homossexuais e qualquer um que não denunciá-los às autoridades,
incluindo a prisão perpétua para mulheres LGBT
e prisão perpétua para "homossexuais
reincidentes".
A lei, em Uganda, que proíbe atos sexuais
homossexuais, foi promulgada ainda durante o domínio colonial britânico,
no século XIX,
e consagrada na Lei de Código Penal de
1950, tendo sido mantida, após a independência.
Atenção ao Artigo 145: Ofensas antinaturais. Qualquer pessoa que:
(a) tiver relação carnal
com outra do mesmo sexo, contra a ordem da natureza;
(b) mantiver relação
sexual com um animal;
(c) permitir que um homem
tenha relação sexual com outro homem ou permitir que uma mulher tenha relação
sexual com outra mulher;
Comete um crime e é condenado à prisão por toda a vida.
Diante de tanta ignorância,
intolerância e obscurantismo, é o caso de um homossexual ugandense se
perguntar, antes de “pecar”, se vale a pena o prazer que o sexo com um igual
lhe proporciona.
Ao espectador de “O JORNAL...”, homossexual ou não, mais
aplicado àquele segmento, cabe uma reflexão sobre até onde a pessoa iria, para ser
quem ela, realmente, é. Seria capaz de morrer por amor? Teria coragem de
enfrentar os tabus e se expor à fúria de uma população “cega” e ensandecida? Manter-se
embotado, camuflado, inerme, num casulo, sobre o fio de uma navalha, na
expectativa ou iminência de, a qualquer momento, ser denunciado e pagar com a
própria vida, por ter nascido “diferente”, ou fugir daquele lugar e viver
feliz; ou dar cabo à sua existência?
O texto foi escrito por um jovem dramaturgo britânico, CHRIS
URCH, que recebeu o Prêmio Bruntwood, seis indicações ao Prêmio Off West End e uma nomeação ao Prêmio Evening Standart. No Brasil, certamente, receberá outras
premiações. Pelo menos, merecimento, para isso, há.
Entre nós, o texto ganhou uma brilhante tradução,
de DIEGO TEZA, e vem preencher um espaço
muito importante, que merece reflexões e discussões acerca da temática LGBT, ainda, carente de
esclarecimentos. Não que os seus praticantes e/ou simpatizantes tenham de dar
satisfações de seus atos ou ensinar nada daquele universo a quem ainda teima em
não respeitar as igualdades, mas é mais uma porta aberta, para receber os que
se permitirem refrescar as cabeças, a fim de um convívio saudável, pacífico e harmonioso entre seres
humanos irmãos, respeitando-se as diferenças.
Um excelente depoimento de um dos produtores
e diretor da peça, KIKO MASCARENHAS, sobre a montagem e o
momento atual: “Quando o TEATRO cria um espelho da atualidade, é preciso prestar
atenção e não deixar que o silêncio se transforme em cumplicidade”. E LÁZARO RAMOS, o outro produtor e co-diretor do espetáculo, completa: “Encontrar um roteiro que fale de
uma realidade de Uganda, mas, ao mesmo tempo, nos remete a tanto do que vivemos
no Brasil é um privilégio. Acima de tudo, ‘O JORNAL’ é uma peça que fala sobre amor”.
Não resta a menor dúvida de que, guardadas
as devidíssimas proporções, Uganda é
aqui. Por que não? Pode ser, também um outro lugar. E por que aqui, no
Brasil?
Porque, em 2016, o número de
mortes de LGBTs bateu recorde no Brasil.
Porque o Grupo Gay da Bahia (GGB)
provou que o ano de 2016 foi o mais
violento, desde 1970, contra pessoas
LGBTs. Foram registradas 343 mortes, entre janeiro e dezembro do
ano passado. Ou seja, a cada 25 horas, um LGBT foi
assassinado, o que faz do Brasil
o campeão mundial de crimes contra as minorias sexuais. A Bahia ocupa a segunda posição, dentre os estados, com 32 mortes, ficando atrás, apenas, de São Paulo (49 casos). O Rio de Janeiro totalizou 30 casos e o Amazonas, 28.
Porque a integridade, física e moral,
dos indivíduos LGBTs é ameaçada a
cada segundo.
Nada mais é necessário, para justificar
a importância deste esplendoroso espetáculo, que, além do magnífico texto, conta com uma direção
perfeita e um naipe de atores que
são motivo de orgulho para nós. Sim, o TEATRO
BRASILEIRO está coalhado de grandes diretores,
atores, técnicos e profissionais da
criação. “O JORNAL...” os
reuniu.
Um dos maiores méritos desta montagem
reside no fato de ela ter sido levantada com recursos próprios de seus produtores, não contando com patrocínios,
o que, nos dias atuais, é como se achar uma agulha num palheiro.
Merece uma divulgação o processo que levou à seleção do elenco da peça. “Para escalar os atores, LÁZARO idealizou
uma oficina, que contou com apoio da Rede Globo e que mobilizou diversos
profissionais, para um processo de escolha de elenco criativo e único. O
resultado foram 5.000 inscritos, até se afunilar para 70 atores, de sete
estados diferentes do país. Na sequência, 15 dias intensos de aulas de dança e
canto, em jogos de improviso, ministrados pela dupla de diretores, com a ajuda
essencial do coreógrafo ZEBRA e
do preparador vocal WLADIMIR
PINHEIRO. No fim, cinco destes candidatos integram o elenco de seis
atores (...)”. Apenas DANILO
FERREIRA não participou da oficina, tendo entrado para o grupo via teste.
Sobre a direção a quatro mãos, KIKO
e LÁZARO imprimem, ao espetáculo, um
ritmo que já começa agitado, com as cenas, sucessivamente, ganhando mais aceleração
e provocando, na plateia, uma angústia e um clima de tensão, que assusta, pois
todos sabemos que aquele rio vai desaguar num oceano encapelado.
Deve ter sido, mesmo,
interessantíssima a oficina, de onde surgiu o elenco, em quase sua totalidade, a julgar pelo que se vê em cena.
Muito me agradam textos que tratam de alguns temas polêmicos,
sem puxar para o viés da conversão, sem adotar tons panfletários nem procurar “fazer
cabeças”. O enredo poderia, muito
bem, caminhar por esse atalho, mas não o faz e os diretores entenderam muito bem a proposta do dramaturgo e a honraram.
Há, no espetáculo, momentos que são
verdadeiros achados da direção,
considerando-se, também, é óbvio, o talento
dos atores.
Ao adentrar o auditório, o
espectador já trava o primeiro contato com o elenco, uma ideia já tão usada e desgastada, em muitos casos, o que
não ocorre aqui. É como se o público fosse saudado, ao som de uma bela canção
africana, começando a se interessar pela história, ao ver ser traçado, no piso,
um grande círculo, dentro do qual se passam quase todas as cenas da peça.
Decodifiquei, naquele espaço, Uganda,
como um microcosmo de um universo doente.
Duas das mais belas cenas do
espetáculo reúnem, dentro do círculo, os personagens DEMBE e SAM. Uma, quando
ambos estão no lago, dentro de um barco, admirando o céu e tentando adivinhar
quem ou o que seriam cada estrela e cada nuvem. A outra é quando os dois se
encontram, no apartamento de SAM, na
cama, após uma noite de prazer, e trocam juras de amor, como uma triste e
pressentida despedida.
Outra cena genial é quando DEMBE e WUMMIE conversam sobre a infância e reproduzem, com movimentos
corporais, a subida numa mangueira. Solução simples, criativa e extremamente
linda.
A ideia de um final aberto, "pero no mucho", serve de
consolo para o público, que, ao longo dos 90
minutos de duração da peça, torce por aquele amor impossível, totalmente cúmplice
dos dois amantes.
Para completar, a belíssima direção do espetáculo, ainda, nos dá o golpe de misericórdia, que, fatalmente, obriga qualquer espectador a refletir sobre o que acabou de assistir. KIKO e LÁZARO fazem com que a plateia deixe o teatro ao som da emblemática canção, de Caio Prado, "Não Recomendado", cuja letra, mais que densa e verdadeira, infelizmente, vai aqui transcrita
Para completar, a belíssima direção do espetáculo, ainda, nos dá o golpe de misericórdia, que, fatalmente, obriga qualquer espectador a refletir sobre o que acabou de assistir. KIKO e LÁZARO fazem com que a plateia deixe o teatro ao som da emblemática canção, de Caio Prado, "Não Recomendado", cuja letra, mais que densa e verdadeira, infelizmente, vai aqui transcrita
“NÃO RECOMENDADO”
Uma foto... uma
foto...
Estampada numa grande avenida.
Uma foto... uma foto...
Publicada no jornal pela manhã.
Estampada numa grande avenida.
Uma foto... uma foto...
Publicada no jornal pela manhã.
Uma foto... uma
foto...
Na denúncia de perigo na televisão.
Na denúncia de perigo na televisão.
A placa de censura, no
meu rosto, diz:
NÃO RECOMENDADO À SOCIEDADE.
A tarja de conforto, no meu corpo, diz:
NÃO RECOMENDADO À SOCIEDADE.
NÃO RECOMENDADO À SOCIEDADE.
A tarja de conforto, no meu corpo, diz:
NÃO RECOMENDADO À SOCIEDADE.
Pervertido, mal amado,
menino malvado, muito cuidado!
Má influência, péssima aparência, menino indecente, veado!
Má influência, péssima aparência, menino indecente, veado!
A placa de censura, no
meu rosto, diz:
NÃO RECOMENDADO À SOCIEDADE.
A tarja de conforto, no meu corpo, diz:
NÃO RECOMENDADO À SOCIEDADE.
NÃO RECOMENDADO À SOCIEDADE.
A tarja de conforto, no meu corpo, diz:
NÃO RECOMENDADO À SOCIEDADE.
Não olhe nos seus
olhos,
Não creia no seu coração,
Não beba do seu copo,
Não tenha compaixão.
Diga “não” à aberração!
Não creia no seu coração,
Não beba do seu copo,
Não tenha compaixão.
Diga “não” à aberração!
A placa de censura, no
meu rosto, diz:
NÃO RECOMENDADO À SOCIEDADE.
A tarja de conforto, no meu corpo, diz:
NÃO RECOMENDADO À SOCIEDADE.
NÃO RECOMENDADO À SOCIEDADE.
A tarja de conforto, no meu corpo, diz:
NÃO RECOMENDADO À SOCIEDADE.
Falar sobre o elenco do espetáculo não
requer muito tempo nem tantas palavras. Num só adjetivo, caberiam todos: MAGNÍFICOS!!!
Apesar da presença de dois protagonistas, DEMBE e SAM,
os outros quatro personagens coadjuvantes atraem, totalmente, a atenção
do espectador, por sua força e pelas brilhantes interpretações de todos. Aos
seis componentes do elenco, um grito em uníssono: BRAVI!!!
ANDRÉ LUIZ MIRANDA, o mais conhecido de todos, por seus trabalhos na TV,
desde menino, compõe um personagem (JOE), que se vê empoderado, quando
se torna o pastor de uma comunidade, ao mesmo tempo que tal posição faz dele um
ser sufocado pela distância que há entre a palavra e a ação. Como “chefe
religioso” de uma tribo, tem de seguir os ditames daquela cultura arcaica, de
uma gente ignorante e intolerante, princípios nos quais ele também acredita,
porém se vê na corda bamba, quando a sua pregação se torna vulnerável, com um
irmão “gay” sob o mesmo teto.
Na posição de mais velho dos três
irmãos, incumbe-se de proteger a família, após a morte do pai, e tentar
administrar não só a sua vida, como a dos dois irmãos. Demonstra um
caráter e um temperamento fortes e definidos, mas também nos passa uma leve
doçura.
É a primeira vez que o vejo pisando
o palco, entretanto posso dizer, com convicção, que, apesar de ter apenas 30
anos, o ator demonstra muita segurança em cena e nada fica a dever a muitos
veteranos.
Sobre DANILO FERREIRA, o que
dizer? Para mim, uma gratíssima revelação, em que pese o fato de eu só tê-lo visto
atuando num recente musical infantojuvenil, daqueles que nos causam
arrependimento, por ter saído de casa. DANILO, aqui, se redime daquele
musical e de qualquer outra atuação que, porventura, não lhe tenha sido muito
favorável, em sua breve e promissora carreira. Que presença de cena! Que
poder de convencimento tem este ator, a ponto de ganhar, o personagem, a
comiseração de uma plateia inteira, tal é seu envolvimento emocional com DEMBE
e sua competência no ofício da representação! Quero ver em muitos outros trabalhos
esse rapaz, além de que vou rever “O JORNAL...”.
HELOÍSA JORGE foi “presenteada”
(para falar como os atores globais, nas entrevistas) com uma grande personagem,
que exige muito da atriz e que ela representa “de olhos fechados”. Sua MAMA é
fantástica! Um misto de antiga vizinha e tia postiça, que, metaforicamente
falando, é uma caixa de linda embalagem, de presente, dentro da qual há uma
cascavel, das mais venenosas. Como passar uma imagem e ser outra pessoa? Sua
atuação é brilhante, porque exige uma constante atenção na construção da
personagem. Ela engana os demais em cena, mas, em pouco tempo, o espectador
mais atento vai começando a desconfiar de sua verdadeira identidade.
MAMA não “morde e sopra”; ela
faz o contrário. Angolana de nascimento, a atriz é a única, no sexteto,
que fala com um leve sotaque e seu desempenho ganha força, por conta dessa
maneira peculiar de falar, pelo impressionante trabalho de corpo, que lhe
confere uma postura de onipotência e dona da verdade, e de sua maneira de se expressar
com os olhos. Ela associa, com extrema sincronia, som e imagem, em suas
participações.
Por pura conveniência (se eu disser
o porquê, serei um “estraga-prazeres”), tem uma fixação em casar sua filha, NAOME,
com DEMBE, no que conta com a concordância dos irmãos do rapaz. Quase ao
final da história, o espectador irá compreender o motivo de tal desejo.
Ela interfere, com sua influência,
na nomeação de JOE, como pastor, para que este fique preso às suas
teias, e consegue minar o rapaz, fazendo dele um grande combatente dos
homossexuais. Há, também, por trás dessa “força”, interesses financeiros.
Guarda a esperança de que JOE
possa curar NAOME, fazendo-a voltar a falar e é ela quem revela à
família de DEMBE sua condição de homossexual, após ter visto a foto do
pobre rapaz estampada no pasquim. É uma delatora, já tendo, mesmo, exercido tal
papel no episódio da morte de DAVID MUKISA, antigo namorado de NAOME,
personagem importante na trama, que não aparece, porém, em cena. MUKISA,
colega de sala de aula de DEMBE, aparece morto, com a cabeça esfacelada,
ele, que nem era “gay”, mas tivera seu nome numa das listas do “ROLLING
STONE”. Quantos inocentes, como ele, se considerássemos um erro a prática
sexual entre pessoas do mesmo sexo, também não sucumbiram nessa caça às bruxas,
dos nossos tempos? A perseguição era tão vultosa, que, quando JOE se recusou
a presidir a cerimônia fúnebre de DAVID
MUKISA, por considerá-lo impuro e indigno de tais préstimos, o reverendo Amós (creio ser esse o nome) aceitou
substituí-lo, o que atraiu dúvidas sobre a sexualidade deste.
MAMA se mostra com um discurso
de ódio contra os homoafetivos e consegue contaminar JOE com esse
discurso. E nós nos perguntamos: Onde fica o Cristianismo nisso?
Que
atriz fantástica é INDIRA NASCIMENTO! WUMMIE, sua personagem, tem uma
relação mais próxima com DEMBE,
motivo que a faz sofrer tanto, ao descobrir a orientação sexual do rapaz. Uma
cumplicidade se forma entre eles, o que é facilitado, em cena, pela grande
afinidade que existe entre as atuações de ambos, INDIRA e DANILO. As
cenas entre os dois se revestem de uma ternura que nos encanta.
WUMMIE é a única que tem noção
do perigo que corre a família, além de DEMBE.
Ela briga com JOE, porque ele vende
os pertences do seu pai, recém-falecido, com o objetivo de desocupar o quarto e
poder alugá-lo, para melhorar a situação financeira da família. Nesse gesto,
percebe-se quão apegada aos valores familiares é a personagem.
Ela se sacrifica pela felicidade de DEMBE,
a ponto de desistir do seu sonho de estudar, indo trabalhar, como faxineira,
num hotel, para que o irmão possa concluir seus estudos. Cabe a ela interromper
JOE, durante um inflamado discurso
contra os homossexuais, durante um culto, para mostrar-lhe a foto de DEMBE, estampada no “ROLLING STONE”, como pederasta, o que
gera uma grande decepção, em JOE, fazendo-o partir para uma agressão, verbal e física, contra DEMBE. Durante toda a longa cena da
pregação, nota-se, na audiência da Igreja,
o desconforto de DEMBE, um excelente
momento da atuação de DANILO FERREIRA,
que consegue expressar tanta angústia, medo e vergonha, sem dizer uma só
palavra. Como última tentativa de “salvar” o agredido, WUMMIE implora a JOE que
o “cure”, mas DEMBE se recusa a ser “curado”
do que não reconhece como uma doença.
Quando JOE propõe a DEMBE que fuja, para não ser
massacrado, WUMMIE entrega a este
uma cruz, espécie de amuleto, que pertencera ao pai dos três, um objeto
emblemático naquela família.
SAM, o namorado de DEMBE, é brilhantemente representado por MARCOS GUIAN, um jovem, porém ótimo, ator.
Mestiço, filho de pai irlandês (branco) e mãe ugandense (negra) SAM foi educado na Europa e se tornou médico, indo parar em Uganda, para trabalhar. É ateu, o que lhe dificultava, mais ainda,
compreender o porquê daquele ódio aos homossexuais, orquestrado pela religião.
A
condição de meio-europeu fecha-lhe, um pouco, os olhos para o verdadeiro perigo
que ele e DEMBE correm, por sua
condição homossexual. Ele representa o contraste entre dois modos de pensar, de
ver o mundo; uma total oposição cultural entre Europa e África. Busca
uma tentativa de “iluminar” um pouco a escuridão daquela gente, sem,
infelizmente, condições de atingir seu objetivo. Eles são muitos (não os
objetivos, mas as pessoas).
O
momento em que o personagem parece levar mais a sério a iminência de uma
delação é quando se surpreende, ao ver que alguém, na sua ausência, invadira
seu apartamento e pichou, numa das paredes de seu banheiro, a palavra “KUCHU”, vocábulo de origem swahili, uma forma de se referir aos
homossexuais, em Uganda. “Veado” seria a melhor tradução.
SAM
demonstra amar muito DEMBE, a ponto
de ir procurá-lo, na casa do namorado, após um período de sumiço deste, tendo
sido recebido por WUMMIE, a quem,
acaba confessando o relacionamento entre os dois.
SAM
propõe a DEMBE uma fuga para a Inglaterra, onde poderiam ser felizes,
longe daquela perseguição. Teria o projeto ido adiante? Veja a peça e tire suas
conclusões!
“Last,
but not least”, vamos falar de MARCELLA
GOBATTI, que encarna a jovem NAOME,
filha de MAMA, uma personagem
enigmática, a qual carrega, ao longo da peça, um segredo, o qual, ao ser
revelado, quase aos 45 minutos do segundo tempo (Não serei eu a cometer um “spoiller”.), causa surpresa ao público
e indignação com relação à sua mãe. Ela ficou muda, durante seis anos, como
consequência de um ato traumático, que, sem sua culpa, vai gerar outro, pior
ainda. Seu desejado casamento com DEMBE,
por parte de sua mãe, funciona como uma espécie de moeda de troca (Isso é
horrível!!!), para consolidar os laços entre as duas famílias, tudo fruto de
interesses escusos, por parte de MAMA.
O trabalho de composição da personagem serviu para avaliarmos o
imenso grau de competência profissional de MARCELLA.
Que bela atriz, que tudo diz, sem falar!!!
Quanta expressão na sua mudez!!! Quanta expressividade no seu dizer no
vácuo!!!
Num momento de fraqueza, numa bela
cena, dentro do barco, no lago, DEMBE
abre o coração com NAOME e lhe
revela sua condição de homossexual, o que acaba sendo o estopim para a sua
“explosão”. É possível entender o gesto de NAOME
como uma vingança contra o “mal” por que passara, havia seis anos, porém do qual
nem DEMBE nem DAVID MUKISA tiveram culpa.
Para encerrar estes comentários,
algumas breves palavras sobre os elementos técnicos da montagem.
Apenas dois bancos de madeira e
quatro caixotes, vazados, com um lampião dentro de cada um, além de um pequeno
“esqueleto” de um barco compõem as peças do simples e totalmente necessário cenário, assinado por MAURO VICENTE FERREIRA. Os bancos e os
caixotes servem a várias configurações exigidas por algumas cenas.
Responsável pelos figurinos, TEREZA NABUCO trabalhou dentro da discrição que o modo de se vestir
daqueles personagens exigia. A cor cinza, uma representação metafórica para
aquele ambiente sombrio e conturbado, foi a escolhida para todos os trajes, à
exceção da camisa vestida por DEMBE,
toda em estamparia africana, abundantemente colorida, o que era motivo de
repreensão dos que o cercavam, menos SAM,
os quais apontavam seu “mau gosto” em se vestir. Nem poderia ser diferente, uma
vez que ele destoava de todos; ele era o “diferente”.
PAULO
CÉSAR MEDEIROS, em mais de seus excelentes trabalhos, assina uma ótima luz, que ajuda a ampliar e dimensionar
cada cena, dentro das exigências dramáticas.
Não podem ficar de fora desta
modesta análise dois elementos. Um deles é a magnífica trilha sonora original, da autoria de um grande músico, WLADIMIR PINHEIRO, debruçada sobre
cantos africanos. Como me agrada esse tipo de música! Mesmo quando abordam
temas ligados à tristeza, as canções, quando cantadas, possuem uma sonoridade
linda e, por estranho que possa parecer, alegre, de um delicioso frescor. O
outro é o trabalho de direção de
movimento, de responsabilidade de JOSÉ CARLOS ARANDIBA (ZEBRINHA), que explora a elasticidade dos corpos dos
atores e cria excelentes momentos de movimentação em cena.
FICHA TÉCNICA:
Texto: Chris Urch
Tradução: Diego Teza
Direção: Kiko Mascarenhas
Co-Direção: Lázaro Ramos
Assistência de Direção: Ana
Luiza Folly
Elenco (por ordem alfabética): André Luiz Miranda (Joe), Danilo Ferreira (Dembe), Heloísa Jorge (Mama), Indira Nascimento (Wummie), Marcella Gobatti (Naome) e Marcos Guian (Sam)
Cenografia: Mauro Vicente
Ferreira
Assistência de Cenografia: Rogério
Chieza
Figurinos: Tereza Nabuco
Assistência de Figurinos: Júlia
Custódio
Iluminação: Paulo César
Medeiros
Assistência de Iluminação: Júlio
Medeiros
Direção de Movimento: José
Carlos Arandiba (Zebrinha)
Trilha Sonora Original: Wladimir
Pinheiro
Preparação Vocal: Edi
Montecchi
Montagem de Luz: Boy Jorge, Luíza Ventura, Fabiano Gomes,Vilmar Ollos e Rodrigo
Emanuel
Operação de Luz: Walace
Furtado
Operação de Som: Marcito
Vianna
Estúdio de Gravação: "DRS" e "FD"
Cantores: Flávia Santana, Lu Vieira, Renato Ribone e Wladimir Pinheiro
Construção de Cenário: Em
Família Cenografia e
Eventos
Adereços: Mauro Vicente
Ferreira
Costureiras: Adélia
Andrade e Severina da
Silva Viana (Mainha)
Calçados: Jaílson
Marcos
Assessoria de Imprensa: Antônio
Trigo
Comunicação: Web Urgh
Arte e Lay Out do Projeto: Léo
Dória / BR Produtora
Projeto Gráfico: Novo
Traço
Fotos de Estúdio: Jorge
Bispo
Fotos de Cena: Ana
Branco
Realização e Produtores Associados: Lázaro Ramos e Kiko Mascarenhas
Produção: KM ProCult e BR
Produtora
Direção de Produção: Viviane
Procópio e Radamés
Bruno
Produção Executiva e Administração: Viviane Procópio
Assistência de Administração Jandy Vieira
Equipe de Produção: Igor
Dib, Milena Garcia e Diego Teza
SERVIÇO:
Temporada: De 03 de novembro a 25 de fevereiro
Local: Teatro Poeira
Endereço: Rua São João Batista, 104, Botafogo, Rio de Janeiro
Dias
e Horários: De 5ª feira a sábado, às 21h, e domingo, às 19h, exceto feriados de
Natal, Ano Novo e Carnaval
Horário
de Funcionamento da Bilheteria: De 3ª feira a sábado, das 15h às 21h, e domingo,
das 15h às 19h
Telefone:
(21) 2537-8053
Valor
dos Ingressos: R$80,00 (inteira) e R$40,00 (meia entrada)
À
venda na bilheteria do Teatro Poeira ou por meio do “site” www.tudus.com.br
OBSERVAÇÕES: Descontos de meia entrada previstos
pela Lei e 20% de desconto do ingresso no valor de inteira para os clientes do
Clube Eu sou + Rio
Capacidade:
160 lugares
Duração: 90 minutos
Classificação
Etária:14 anos
Gênero:
Drama
Fico muito feliz, vendo que, em meio
ao caos cultural em que os (des)governos afundaram o Brasil, mormente neste ano de 2017,
com péssimas previsões para o próximo, principalmente no Rio de Janeiro, alguns corajosos, determinados e bem intencionados produtores não medem esforços e sacrifícios,
para nos proporcionar espetáculos do excelente nível de “O JORNAL – ROLLING STONE”. Feliz, também, por ver um espetáculo tão
necessário, para ampliar as discussões sobre as relações humanas, o respeito ao
próximo e à dignidade do Homem,
independentemente de cor, credo ou orientação sexual.
Estamos diante de um dos melhores
espetáculos, não deste ano, mas dos últimos tempos, no Rio de Janeiro, e que é uma grande prestação
de serviço à causa LGBT, merecedora de
todo o meu respeito e admiração.
E VAMOS AO TEATRO!!!
OCUPEMOS AS SALAS DE
ESPETÁCULO!!!
(FOTOS:
JORGE BISPO
E
ANA
FRANCO.)
GALERIA PARTICULAR
(FOTOS DE MARISA SÁ.)
Com Marcos Guian.
Com Indira Nascimento.
Com Heloísa Jorge.
Com André Luiz Miranda.
Com Danilo Ferreira.
Com Marcella Gobatti.