quinta-feira, 23 de novembro de 2017

BUG 
CHASER


(QUASE AO APAGAR DAS LUZES,
UMA DAS MELHORES SURPRESAS
DO ANO TEATRAL DE 2017.)






            Fui para São Paulo com a intenção de assistir a alguns espetáculos teatrais, principalmente aqueles que têm pouca, ou nenhuma, chance, de vir para o Rio. Organizei a minha agenda, entretanto houve um contratempo: o musical que eu iria rever, na 4ª feira, dia 15 de novembro, o ótimo “Rent”, antecipou o término da sua segunda temporada e fiquei com um “furo de pauta”.

A que assistir, de bom, numa noite de 4ª feira, em São Paulo? Pedi sugestões aos amigos de lá e recebi várias. Uma, porém, que me chegou, via o querido amigo e talentoso ator Ando Camargo, me chamou muito a atenção, depois que fui pesquisar sobre ela. E por ela me decidi. E não me arrependi nem um pouco. Ao contrário, só tenho a agradecer ao meu amigo Ando, pela alegria e o prazer que me proporcionou de assistir a um dos melhores monólogos que tive a oportunidade de ver, não neste ano, mas nos últimos tempos.

            O espetáculo se chama “BUG CHASER” e PRECISA VIR PARA O RIO DE JANEIRO, com a maior urgência!!!

            Para mim, foi uma gratíssima surpresa. Fui apresentado a um assunto que eu desconhecia, por completo, o que, acredito, deva acontecer com a maioria do público que assiste ao espetáculo e que, também, se encanta por ele, como aconteceu comigo.

            A peça trata de um universo quase macabro, mas que não pode, nem deve, ser ignorado, porque existe, de verdade, e em proporções muito acima do que possamos imaginar, ainda que venha a ser considerado um tema bizarro, uma excentricidade, uma total fuga aos padrões, que envolve vidas humanas. Há, porém, certamente, muito mais coisa a ser discutida, além do que a peça nos apresenta na sua superfície. É só mergulhar fundo nela.



           




SINOPSE:

MARK (RICARDO CORRÊA) é um “bug chaser” e está em uma quarentena, sendo analisado por uma VOZ (LEONARDO SOUZA), um programa de inteligência artificial.

Em fragmentos e saltos atemporais, a peça conta a saga desse homem, um advogado criminalista, que busca se infectar, propositalmente, com o vírus do HIV.












            Para quem, como eu, ignorava o universo de que trata o espetáculo, faz-se necessária a divulgação de um pequeno glossário, encontrado no programa da peça, para que todos possam acompanhar o drama do personagem:

1    BUG CHASER (CAÇADOR DE VÍRUS) = termo utilizado para se referir a uma pessoa soronegativa, que, por uma razão só dela, busca se contaminar com o vírus do HIV, tornando-se, portanto, soropositiva.

2)  GILT GIVER (DOADOR DE PRESENTE) = pessoa soropositiva, que aceita contaminar outras pessoas com o vírus do HIV. Nesse caso, o vírus é referido como “GIFT”, em tradução livre, “PRESENTE”.

3   BAREBACK = termo de origem inglesa, que denomina um estilo de montar um cavalo sem o uso da sela e tem sido usado para descrever o envolvimento intencional, deliberado e consciente, em relações sexuais, sem uso de preservativo.

4) ROLETA RUSSA ou FESTAS DE CONVERSÃO = Termos usados para se referir a festas organizadas com o propósito de “converter” caçadores de vírus.

5)  CAPA = Termo para se referir a preservativos (camisinhas).

6) CARIMBO = Termo utilizado para especificar o ato de contaminação proposital. O “CARIMBO” se dá em uma relação sexual em que somente quem está contaminado é ciente de sua sorologia e o “CARIMBADO” não está de acordo com a contaminação, ou seja, não sabe da condição soropositiva do parceiro, ao contrário da relação entre os “GILT GIVERS” e os “BUG CHASERS”, quando a transmissão do vírus é consensual.









Como se pode ver, o monólogo mexe num vespeiro, que impacta o espectador, desde a primeira cena, não só pela temática de que trata, o que, em si, já seria suficiente para pôr os nossos nervos à flor da pele, mas, principalmente, pela magnífica atuação visceral de um jovem ator, de quem tive a grata satisfação de me tornar amigo e do qual não apenas São Paulo, onde já é conhecido e aplaudido, mas o Brasil inteiro haverá de ouvir falar muito. Chama-se RICARDO CORRÊA, um ator que merece premiações, pelo seu trabalho, além de, também, ser o autor da ótima dramaturgia e idealizador do projeto, ao lado de DAVI REIS, que assina uma direção irretocável.






A peça, em segunda temporada, é uma produção e realização da CIA. ARTERA DE TEATRO e seu propósito maior está em discutir a “relação entre o risco e o prazer, com a prática do ‘barebacking’ (sexo sem preservativo) e do ‘bugchasing’ (quando um homem saudável procura, deliberadamente, ter relações sexuais outro homem com HIV positivo, para ser infectado”, como já foi explicado no glossário.










“Falar de ‘bareback’, de um homem à procura de um vírus e de toda uma sociedade deteriorada é trabalhar num universo particular, que não deve ser entendido cartesianamente e requer cuidado, para não reforçar preconceitos. O nosso desafio foi debruçar sobre esse texto, que trata de escolhas radicais, e no trabalho do ator criador, que lida com um personagem de extremos. Aqui, a luta contra a biopolítica impositiva e em estar fora da caixa social em que estamos, automaticamente, submetidos é levada ao limite. A partir da verticalização profunda no universo LGBT - abrangendo desde a sua subcultura até o mais violento preconceito sofrido - e a busca por ressignificações de lugar no mundo, pretendemos trazer questionamentos para além da simples reflexão e julgamento”, diz o diretor DAVI REIS.

"A quarentena da peça significa a de todos os dias em que os discursos biomédicos colocam o sujeito que pratica ‘bareback’ como alguém anormal, portador de distúrbios psicológicos ou criminalizadores, que acabam contribuindo para a manutenção de novos estigmas que, há séculos, acompanham os indivíduos homossexuais. Aliás, ainda há campos de concentração para ‘gays’. Foi mais de um ano de pesquisa, baseada em documentos e depoimentos de homens que se dispuseram a falar sobre o ‘bareback’", conta RICARDO CORRÊA, que já lançou um curta documentário, “No Sigilo”, como parte de sua pesquisa, que também trouxe depoimentos de vários homens “gays” sobre sexualidade, “bareback” e o HIV para o espetáculo.

“Há uma distinção entre o que se chama ‘barebacking’ e ‘bugchasing’. Nem sempre os praticantes de ‘bareback’ buscam a soroconversão. Percebi que esse é um assunto sobre o qual não se fala, há um silêncio na comunidade LGBT e, por isso, decidi enfocá-lo neste projeto artístico, pelos diferenciais que ele carrega em si e por sua tamanha complexidade. Existem, entretanto, diferentes aspectos ou dimensões culturais mais amplas, do nosso tempo, que devem ser considerados nestes contextos de fascinação pelo risco ou apostas nos ganhos sensoriais de encontros perigosos. Problematizo um homem em trânsito em um mundo doente, que busca encontrar pertencimento e aceitação. Uma jornada perigosa de autodescoberta, para encontrar o melhor e o pior de uma nova comunidade, da qual ele quer, desesperadamente, fazer parte. Falo de escolhas, de desejos, de estigmas e, principalmente, sobre um novo capítulo da história do HIV”, conclui RICARDO.









Por oportuno, até porque carece de uma maior divulgação, principalmente pelas pessoas que não moram em São Paulo, julgo bastante pertinente falar um pouco sobre a COMPANHIA ARTERA DE TEATRO, também me apropriando de material que consta no já citado “release”: “Com o intuito de abarcar diversas dimensões da cena contemporânea, tem, por meta, a encenação de textos com dramaturgias inéditas, direcionando a pesquisa para temas relacionados às minorias, permitindo-se o intercâmbio com outras artes, manifestações e tecnologias. Em 2017, o grupo está completando 15 anos de atividades ininterruptas, tendo realizado quinze produções, recebendo importantes prêmios”.

A dramaturgia da peça é redonda, perfeita, sem permitir “barrigas”, como costuma ocorrer em monólogos, ainda mais quando este dura 90 minutos, o que gera um grande mérito para o autor e o ator, por sua competência e por sua preparação física, uma vez que a peça exige um esforço sobre-humano de quem interpreta MARK, não só do ponto de vista físico, como no que tange ao aspecto emocional. Há uma total doação de RICARDO ao personagem, uma prova cabal de sua entrega ao ofício que abraçou. O ator tem uma excelente presença de palco, ocupa-o totalmente, mesmo nos espaços vazios, com um forte carisma e uma enorme carga emotiva; modula a voz, dentro da exigência do texto, e faz o que bem entende com seu corpo, sua ferramenta de trabalho. Cospe e vomita ódio e ternura, arrependimento e dúvida, medo e esperança, verdade, verdade, verdade e mais verdade... Um trabalho do qual jamais me esquecerei.












 A direção de DAVI REIS é perfeita, dando realce a uma situação ficcional/real, sem deixar que o espetáculo deslize para a ribanceira da pieguice e sem apelar para a vitimização do protagonista. Achei excelente a sua linha de trabalho, buscando levar o ator a explorar seu potencial criativo, sem exageros, mas não abandonando o propósito primeiro do personagem.

Os elementos técnicos da montagem são simples, porém todos devidamente ajustados à proposta, encaixando-se dentro dos limites de produção, de parcos recursos materiais, porém riquíssima em criatividade e bom gosto, representados pelo interessante cenário, de CÉSAR RESENDE DE SANTANA (BASQUIAT), reproduzindo uma espécie de “bunker”, dentro do qual só há os objetos mínimos para o desenvolvimento das ações; pela correta e discreta iluminação, de FRAN BARROS; pelo figurino, quase um uniforme de um interno numa unidade tratamento psiquiátrico, de CY TEIXEIRA (adorei o detalhe da calça, pela qual me interessei); e pela trilha sonora, de LUCAS KAISER, que embala e sublinha, corretamente, determinadas cenas, reforçando-lhes a carga dramática.

Considerando o belíssimo e dificílimo trabalho de corpo do ator, não tenho o direito de omitir a colaboração, nesse sentido, de FELIPE ALVES, na preparação corporal.








FICHA TÉCNICA:

Dramaturgia: Ricardo Corrêa
Direção: Davi Reis

Elenco: Ricardo Corrêa e Leonardo Souza (voz)

Vídeo Design, Fotos e Programação Visual: Alice Jardim
Figurino: Cy Teixeira
Iluminação: Fran Barros
Trilha Sonora: Lucas Kaiser
Cenário: César Resende de Santana (Basquiat)
Preparação Corporal: Felipe Alves
Operação de Som e Vídeo: Flávia Servidone e Viviane Barbosa
Operação de Luz: Lucas Barbosa
Produção: Ricardo Corrêa
Realização: Cia. Artera de Teatro












            “BUG CHASER” é “teatro de resistência” mesmo, feito com muita garra e com recursos próprios de seus idealizadores, sem contar com patrocínios. É daqueles espetáculos a que costumo assistir mais de uma vez. Duas ou três, para mim, poderiam ser consideradas insuficientes, pois o espetáculo nos reserva muitas surpresas e detalhes, que só podem ser totalmente assimilados, quando a peça é vista mais de uma vez, sem falar no enorme prazer que é ouvir um texto daquela qualidade, sendo interpretado por um grande ator, sob a batuta de um ótimo diretor.

            Foi uma pena eu só ter podido assistir à peça já no final desta segunda temporada e não ter tempo para voltar ao Núcleo Experimental, um espaço ao qual tenho um enorme prazer em ir, depois que o conheci, com o inesquecível “Urinal, O Musical”, espetáculo ao qual assisti duas vezes.

            Se eu tivesse dinheiro suficiente para bancar essa produção no Rio de Janeiro, certamente, já teria iniciado as negociações com RICARDO e DAVI, durante nossa deliciosa conversa, após a sessão. Fica, então, um apelo – eu disse “apelo” – aos produtores cariocas, para que procurem conhecer esse trabalho. Pesquisem sobre ele e tragam-no para o Rio de Janeiro, na certeza de que será um grande sucesso de público e de crítica. Eu garanto, com todos os fios da minha barba. Ofereço-me para fazer a ponte entre os interessados e RICARDO e DAVI.

            Voltei para casa, naquela noite, pensando, o tempo todo, no grandioso espetáculo de puro TEATRO que acabara de ver e demorei a me entender com o sono. A cena final, abaixo ilustrada, ainda que fora do contexto, para quem não assistiu ao espetáculo, é uma das mais belas metáforas que vi num palco.







            Oxalá os DEUSES DO TEATRO façam o impossível, para que os cariocas possam sentir a mesma emoção que vivenciei, assistindo a “BUG CHASER”!!!




(FOTOS: ALICE JARDIM.)



GALERIA PARTICULAR:


Com Ricardo Corrêa.



Com Davi Reis.





























Nenhum comentário:

Postar um comentário