SALINA
(A
ÚLTIMA VÉRTEBRA)
(UM ESPETÁCULO VISCERAL E UM
TRIBUTO AO PERDÃO.)
Por
total falta de tempo e de oportunidade, não havia escrito, ainda, sobre aquele
que considero o melhor espetáculo
teatral, deste ano de 2015,
a que assisti, até o presente momento. Anos-luz à frente de qualquer outro que tive
a oportunidade de ver – e já foram dezenas, até agora -, a despeito de ter tido
a oportunidade de me deliciar com outras excelentes montagens da atual
temporada.
Mesmo
já tendo saído de cartaz, onde estava sendo encenado, na Arena do Espaço SESC, há um mês, no dia 29 de março, ainda que
venha sendo apresentada, esporadicamente, em lonas culturais municipais e em
outras unidades do SESC, a peça
merece uma crítica, para que fique registrado todo o meu agradecimento àqueles
que me proporcionaram, por duas vezes,
o incomensurável prazer de assistir a uma obra-prima
do TEATRO BRASILEIRO.
É
claro que quem, como eu, já conhece, profundamente, o trabalho do AMOK TEATRO, não poderia ir ao Espaço SESC com outra expectativa, que
não fosse a de assistir a um grande espetáculo, a julgar pelos trabalhos do
grupo anteriormente encenados, com destaque para a chamada Trilogia da Guerra, que reúne três peças: O Dragão, Kabul e Histórias de Família, emblemáticas
montagens do grupo. Mas confesso que as
minhas expectativas foram superadas, de forma estupenda, pela encenação de SALINA (A ÚLTIMA VÉRTEBRA).
Tatiana Tibúrcio.
Sérgio Ricardo Loureiro.
Do “site” do
grupo AMOK TEATRO:
“Dirigido
por ANA TEIXEIRA e STÉPHANE BRODT, o AMOK TEATRO se dedica a uma pesquisa
contínua do trabalho do ator e das possibilidades de encenação. Desde sua fundação, em 1998, o grupo tem
recebido, por seus espetáculos, os mais importantes prêmios de TEATRO
BRASILEIRO e um grande reconhecimento da crítica e do público. Além dos espetáculos, o AMOK TEATRO desenvolve
uma intensa atividade pedagógica, com ênfase na formação de atores, e mantém,
em sua sede, a CASA DO AMOK, projetos de pesquisa, formação e intercâmbio, apoiando
o trabalho de grupos e artistas de diferentes segmentos.
O
trabalho do AMOK se caracteriza pela busca de um rigor formal e por uma
intensidade, que se afirma no corpo do ator, como sendo o lugar em que o TEATRO
acontece. Cada novo projeto impulsiona o
grupo a procurar diferentes caminhos de pesquisa e de treinamento, a partir do
diálogo com diferentes tradições e culturas. Os espetáculos do AMOK tratam de temas
contemporâneos, sem perder de vista a busca de uma linguagem poética e a
afirmação da cena, como um espaço cerimônia. Cada projeto do AMOK é um campo aberto à
pesquisa de linguagem cênica, à busca de novos caminhos para o ator e ao
diálogo com questões fundamentais de nossa época.
Criação
e formação estão estreitamente relacionadas nos trabalhos do AMOK. Com a
abertura da sede em 2004, o grupo recebe, em suas oficinas, atores vindos de
diversas regiões do país. A CASA DO AMOK
se configurou como um espaço de criação e de treinamento, onde a vida da
companhia e a formação dos atores estão profundamente ligadas.”
Luciana Lopes.
SINOPSE:
A nova peça do grupo AMOK TEATRO conta a história de SALINA (ARIANE HIME), mulher casada, à
força, e violada por seu marido, SARO
DJIMBA (ANDRÉ LEMOS), a quem odiava.
SALINA amava KANO DJIMBA (THIAGO
CATARINO), o filho mais moço de SISSOKO
DJIMBA (SÉRGIO RICARDO LOUREIRO) e HKAYA
DJIMBA (TATIANA TIBÚRCIO), irmão se SARO,
e, com ele, desejava casar-se, e não com o outro, o que não lhe foi permitido
pela sogra, pois “a prioridade era do
primogênito” e “mulher não pode
escolher marido”.
SALINA dá à luz MUMUYE
DJIMBA (ANDRÉ LEMOS, em papel duplo), um filho que ela detesta, tanto
quanto SARO, o pai. Referia-se a MUMUYE como “o bastardo”,
atitude que provocava a ira de SARO,
“motivo” para que o marido maltratasse a esposa. Amamentava o filho, sem o olhar no rosto, um
gesto de rejeição total ao filho indesejado.
Acusada de deixar o esposo
morrer, agonizante, num campo de batalha, SALINA
é banida de sua cidade.
Com a morte do irmão, KANO assume a liderança da aldeia e
precisa de uma esposa. O destino parecia
estar pondo SALINA no caminho de KANO, porém este acaba se casando com ALIKA (SOL MIRANDA).
Antes do casamento, um ORÁCULO (ROBSON FREIRE) (cego), o que
nos reporta à velha narrativa de Édipo
Rei, diz a ALIKA que ela teria
seis filhos do marido, porém o último não lhe pertenceria (Está aí a grande surpresa do final da peça.).
Exilada no deserto, depois
de ter visto todos os seus sonhos se ruírem, SALINA passa a se alimentar de um profundo desejo de vingança: “Meu filho será o braço armado da minha
vingança!”
Da sua ira, nasce KWANE MKRUMBA (REINALDO JÚNIOR), filho
que ela “faz sozinha”, para executar sua vingança, matando aqueles que
considera responsáveis por sua tragédia e punição.
KWANE trava uma guerra com seu irmão, MUMUYE, até que uma reviravolta surpreendente acontece no destino
da protagonista.
O subtítulo da peça faz
menção a uma lenda ancestral africana, de que a alma de um
morto, cujo corpo não é inteiramente enterrado, ou seja, faltando-lhe algum
pedaço, não descansará, até que todas as suas partes sejam, de novo, reunidas e
sepultadas. SALINA, em sua ideia fixa de vingança, havia cometido o sacrilégio
de retirar vértebras do sogro e as enterrar em locais diversos, sendo, sem saber,
seguida pela sogra, que ia recolhendo os macabros troféus, um a um, menos a
última, que seria aquela que poderia dar ao morto o descanso eterno.
André Lemos.
Thiago Catarino.
Reinaldo Júnior.
A peça propõe
um mergulho numa África ancestral, através de uma história atemporal e
universal, sobre exílio ódio e perdão.
Mais sobre este, sobre como o perdoar é difícil, complexo, o quanto isso
exige, até mesmo uma anulação de um ser humano.
O texto, do
premiado autor francês LAURENT GAUDÉ,
é inédito no Brasil, apesar de já ter tido várias montagens em outros países.
A obra é
carregada de elementos da tragédia grega – base para a construção do texto -,
mas também comporta outros, da epopeia africana, com expressivas pinceladas do
épico e do lirismo típico das profundas paixões, pondo em evidência o lado
sombrio do ser humano, aquele que se resguarda, como proteção natural do
indivíduo, mas que vem à tona, sempre que este se sente ameaçado.
O excelente
texto foi escrito em 2003 e a história se passa em algum ponto da África
ancestral.
A ação é
iniciada com a entrada de MAMA LITA (LUCIANA
LOPES) e mais quatro mulheres, cantando e dançando. De início, a cena já causa um grande impacto
positivo à plateia, pelo belíssimo efeito plástico, o qual será mantido durante
toda a encenação, e é um sinal de que ninguém conseguirá piscar durante as mais
de três horas de duração do espetáculo, com um intervalo de 20 minutos, durante
o qual, é servido um simpático lanche ao público.
Cena de abertura.
O lençol maculado.
Sangrou.
As plateias,
que garantiram lotação esgotada, antecipadamente, em todas as sessões, não se
dão conta da passagem do tempo cronológico, uma vez que, a cada cena, a
narrativa prende, totalmente, a atenção do público, tornando-se, a peça, cada
vez mais, profunda, surpreendente e instigante.
O grupo de
mulheres que adentra a arena, logo no início do espetáculo, tem como missão
lavar lençóis que cobriram, na noite anterior, a cama de uma mulher que perdera
a virgindade, o que deveria ser feito longe do rio que banhava a aldeia, para
não macular a água de que a população se servia, a fim de garantir sua
sobrevivência. É uma cena em que se
discute a expectativa de que SALINA
(ARIANE HIME), que fora adotada por MAMA
LITA, também venha a ter a sua primeira menstruação, quando estaria pronta
para o casamento. Ela estava prometida a
SARO DJIMBA (ANDRÉ LEMOS), e a
possibilidade de, a qualquer momento, vir a sangrar a angustiava.
Para montar o
espetáculo, os diretores, ANA TEIXEIRA
e STÉPHANE BRODT, utilizaram um
processo de seleção de atores, todos negros, como são os personagens, desconhecidos
do grande público, desconhecidos da grande mídia, porém de um extremo talento,
todos merecedores de destaque e de prêmios, em função do excelente trabalho de
interpretação, com destaque para ARIANE
HIME, TATIANA TIBÚRCIO e LUCIANA LOPES.
Banhando-se no rio.
Não se pode
classificar SALINA como um
espetáculo musical, embora haja, durante toda a encenação, a presença da
música, executada ao vivo, por todos do elenco, utilizando-se de instrumentos
tradicionais africanos e afro-brasileiros.
O que se vê, em cena, é uma belíssima conjugação de texto (conto),
jogos, música e dança, estas duas últimas tão presentes e marcantes na cultura
africana.
Ainda, no que
se refere ao elemento musical, merece um grande destaque a atuação fundamental
do músico FÁBIO SIMÕES SOARES, que
esbanja talento em seu trabalho. Durante
toda a duração da peça, ele se mantém num pequeno espaço na arena, no qual se
concentra a maioria dos instrumentos musicais que são utilizados por ele, os
mais diversos e “estranhos” (para a nossa cultura) possíveis.
Logo no início
da peça, uma pequena parte do texto é dita num dialeto africano, o que, a princípio,
me deixou um pouco preocupado. Será que
aquilo prejudicaria a compreensão do enredo?
Não; foi apenas um breve toque, especialíssimo e marcante, para atrair o
público ao universo africano. Para uma
familiarização com tal universo.
Rejeição e ódio.
Tudo, mas tudo mesmo, em SALINA, é perfeito e digno de comentários elogiosos, contudo vou me
limitar a alguns destaques marcantes do espetáculo:
1)
O texto é um
primor.
2)
A direção é
de uma correção inquestionável.
3) A atuação do elenco é digna de uma
premiação coletiva. Todos, absolutamente todos, demonstram ter
mergulhado num profundo trabalho de pesquisa de corpo, principalmente, e de voz,
para dar forma aos personagens, gerando uma obra-prima do TEATRO BRASILEIRO.
4) A música, composta e executada por FÁBIO SIMÕES SOARES, que também é
responsável pela confecção dos instrumentos musicais, mais uma personagem da
peça, repito, é de uma beleza e riqueza de detalhes que inundam de prazer e
alegria os nossos ouvidos.
Fábio Simões Soares. Muitos “BRAVOS” para este músico!!!
5) A luz, do grande profissional do ramo RENATO MACHADO contribui para pôr em
evidência toda a plasticidade do conjunto cênico.
6) As coreografias, de TATIANA TIBÚRCIO, fazem com que nos mexamos nas poltronas e,
inconscientemente, nos projetemos para o espaço cênico, dançando com os
atores. Um raro momento coreográfico em TEATRO.
Merece destaque a coreografia de KANO,
que antecede um seu encontro com SALINA. Mérito, também, é claro, para o ator THIAGO CATARINO.
Música e dança.
7) Os figurinos e os cenários, ambos assinados pela dupla de diretores, ANA e STÉPHANE, são de uma profunda beleza e compõem, com perfeição, a
atmosfera em que se passa o drama. Os
trajes femininos permitem, às atrizes, alcançar momentos de rara beleza, na
execução das coreografias. Os masculinos
também, além de acrescentarem, aos homens, detalhes que levam a um realce à
virilidade dos guerreiros. No cenário,
“apenas” bancos; instrumentos musicais (artesanais); objetos de cena, como
muitos panos coloridos, um pequeno tronco, tudo disposto ao redor da arena;
além de um poste, que surge no final do espetáculo, e um berço bastante original,
utilizado numa das cenas.
8) Um “puxão
de orelhas”, não sei em quem, vai aqui, pela omissão, no programa da peça, do
nome do(a) responsável pelo incrível visagismo,
principalmente no segundo ato, quando os personagens aparecem velhos e
alquebrados. Parabéns a você, grande profissional,
quem quer que seja!
Tatiana Tibúrcio: um “show” de interpretação.
9) O trabalho corporal da atriz LUCIANA LOPES (MAMA LITA), quando vai
se banhar no rio, é fascinante. Já bem
velha, assume uma postura adequada à idade, com destaque para os dedos dos pés,
completamente retorcidos. Aliás,
considero uma das melhores cenas do espetáculo, durante a qual, podemos
vivenciar as sensações táteis daquela imersão, fruto do excelente trabalho de LUCIANA.
10) Outra cena
inesquecível é o encontro de KANO
com SALINA, uma cena em que a
sensualidade é apresentada à flor da pele, de uma forma tão poética, lírica,
comovente... Mérito para os atores e
para a direção. SALINA faz de tudo para se entregar a KANO, que não aceita uma conjunção carnal antes do casamento.
11) São muitas
as cenas marcantes. Mais uma: a do parto
de SALINA, sozinha. O texto e a ação se casam harmoniosamente,
valorizados pela estupenda atuação de ARIANE.
12) Mais uma
que ficará na memória do espectador: a cena do combate entre os dois irmãos, KWANE MKRUMBA (REINALDO JÚNIOR) e MUMUYE DJIMBA (ANDRÉ LEMOS). Além da interpretação dos dois atores, a
coreografia também ajuda a criar a força e o peso da cena.
13) Gostei do
detalhe de personagens mortos serem utilizados como narradores, ligando os
fatos.
Clamando aos céus!
14) O encontro
de SALINA e a sogra, no deserto, é uma
cena de arrepiar, principalmente pelo fato de ambas não se reconhecerem, de tão
maltratadas pelo tempo e pelas agruras da vida, até o momento em que a nora
lava os olhos da outra, para remover a areia que a impedia de enxergar, e ambas
se reconhecem. Falam de suas “perdas” e
mágoas. Tensão pura.
15) Deixando
de lado o indefectível “politicamente correto”, não posso deixar de registrar a
oportunidade que esse texto nos proporciona de ver um elenco formado só de
atores negros (todos de primeira
grandeza), sendo protagonistas de um drama, ou melhor, de uma tragédia, com
importância vital na obra, desde os personagens de maior destaque até os que
não têm tanto peso na trama.
Desafio.
Os filósofos
e, principalmente, os dramaturgos gregos foram pródigos, ao escrever que os homens
que não se submetem ao destino que lhes cabe pagam um preço muito alto por
isso. SALINA tinha um desejo, que não era o que lhe fora destinado. Ela só queria ser feliz ao lado do homem que
amava. Roubaram-lhe o sonho. Ceifaram-no e, ainda por cima, a submeteram
ao horror de se casar com quem não amava.
Subtraíram-lhe a felicidade. Não
se conformou com isso e fez de tudo para conseguir realizar o impossível. Não mereceu, portanto, um final de conto de
fadas.
O drama de SALINA deixa de ser pessoal e passa a
ser dividido por toda a audiência, passa a ser coletivo, graças à capacidade de
compaixão e piedade do ser humano pelo semelhante. Sofri muito com, e por, ela. Chorei.
Choramos, uma plateia inteira, que, unanimemente, aplaudiu, e sempre
aplaudirá, de pé, esse espetáculo “hors concours”.
Próximo à surpresa.
Compaixão e perdão.
FICHA TÉCNICA:
Texto: Laurent Gaudé
Direção: Ana Teixeira e Stéphane Brodt
Elenco (por ordem alfabética):
ANDRÉ LEMOS (SARO e MUMUYE DJIMBA)
ARIANE HIME (SALINA)
GRACIANA VALLADARES (SOWUMBA)
LUCIANA LOPES (MAMA LITA)
REINALDO JÚNIOR (KWANE MKRUMBA e um DJIMBA)
ROBSON FEIRE (ORÁCULO e um DJIMBA)
SÉRGIO RICARDO LOUREIRO (SISSOKO DJIMBA)
SOL MIRANDA (ALIKA e uma mulher DJIMBA)
TATIANA TIBÚRCIO (KHAYA DJIMBA)
THIAGO CATARINO (KANO DJIMBA)
Música: FÁBIO SIMÕES SOARES
Assistente de Direção: Vanessa Dias
Luz: Renato Machado
Coreografias: Tatiana Tibúrcio
Cenário e Figurino: Ana Teixeira e Stéphane Brodt
Bonecos: Maria Adélia
Instrumentos: Fábio Simões Soares
Tradução: Ana Teixeira
Revisão do Texto: Sol Miranda
Fotos: Vanessa Dias
Programação Visual: Paulo Barbosa Lima
Assessoria de Imprensa: Lead Comunicação Ltda.
Produção Executiva, Coordenação Administrativa e Financeira: Eureka
Ideias (Marco Luna e Sônia Dantas)
Canto final, de agradecimento ao público. Não há como não chorar!!!
(FOTOS: VANESSA DIAS)
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