“31º FESTIVAL
DE CURITIBA”
“BRENDA LEE
E O PALÁCIO
DAS PRINCESAS”
ou
(UM BELO TRIBUTO
O primeiro espetáculo a que assisti, no recente
“Festival de Curitiba”, que mexeu comigo, “até a raiz dos
cabelos”, foi “BRENDA LEE E O PALÁCIO DAS PRINCESAS”, o qual eu
já vinha tentando ver e, infelizmente, não lograra êxito, nas duas vezes em que
estive em São Paulo, no ano passado, quando a peça estava sendo apresentada no “Núcleo
Experimental”, espaço de CULTURA que adoro visitar e de onde
guardo inesquecíveis lembranças. Já conhecia a peça (“Só até a página 5”.),
na sua versão “on-line”, o que, absolutamente, não me satisfazia,
porque AQUILO NÃO É TEATRO, embora tenha lá o seu valor, e eu tinha a mais completa certeza de que
essa montagem iria me impactar, quando eu tivesse a oportunidade de conferi-la
presencialmente, o que se deu no dia 2 do mês em curso.
SINOPSE:
O espetáculo conta a história da travesti Caetana,
também conhecida como BRENDA LEE, que se tornou um marco na luta
por direitos LGBTQIA+.
O musical, que traz, em cena, seis atrizes transvestigêneres (VERÓNICA VALENTTINO, OLIVIA LOPES, ANDREA ROSA SÁ, TYLLER ANTUNES, LEONA JHOVS e RAFAELA BEBIANO) e um ator cisgênero (FABIO REDKOWICZ), fala sobre a luta das travestis, nas ruas de São Paulo, a escassez de oportunidades que as impele à prostituição e sobre como foram apoiadas por BRENDA, que acolheu, em sua casa, as doentes de Aids numa época em que quase nada ainda se sabia sobre a doença.
Acredito que nenhum
ser humano, humano de verdade, consiga sair do Teatro sendo a
mesma pessoa que nele entrou, depois de ter assistido a “BRENDA LEE E O
PALÁCIO DAS PRINCESAS”, um espetáculo que traça um “raio X”,
de altíssima resolução, do que seja a vida de uma travesti, neste país. Em
outras partes do mundo, não é muito diferente, mas aqui é bem pior, não fosse o
Brasil, infelizmente, o recordista em assassinatos de travestis e pessoas LGBTQIA+.
Por
que, num país tão homofóbico, condição que se mostrou mais escancarada nos
últimos quatro anos de obscurantismo e horror que atravessamos, uma travesti
acaba sendo o motivo de uma produção de TEATRO que alcançou grande
sucesso de público e de crítica, ainda alcança e, se desejarem as pessoas
envolvidas no projeto, continuará sob os holofotes por muito tempo? Simplesmente,
porque, de forma bem realista, ainda que, também, lírica e singela, tem a
coragem de trazer à tona uma personalidade que merece o maior respeito e
consideração de todos, um ser marginalizado, porém de uma importância bastante
mais expressiva que muitos “cidadãos de bem” que andam por aí. É preciso, sim, homenagear
BRENDA LEE, por tudo o que ela fez, na defesa e proteção de seus pares,
principalmente as dezenas e dezenas de PESSOAS que passaram por sua casa
de apoio, vítimas do “câncer gay”, como, no início dos anos 80,
os ignorantes se referiam à Aids, execrando os homossexuais.
BRENDA
LEE, nome de uma famosa cantora norte-americana, ainda viva, aos 79 anos,
que se tornou célebre na época do auge do “rock and roll”, foi o segundo
nome social (O primeiro foi Caetana.) adotado pelo nordestino,
pernambucano (Nasceu na pequena Bocodó.), Cícero Caetano
Leonardo, que veio ao mundo em 10 de janeiro de 1948.
BRENDA,
considerada uma das maiores referências, se não for a maior de todas as outras, na luta pelos direitos
da população LGBTQIA+, chegou a São Paulo com apenas 14 anos, na
tentativa de se ver livre da forte discriminação de que era vítima em sua
pequena cidade natal, por ser muito efeminada, desde a infância, e, para
sobreviver, caiu na prostituição, como acontece com tantas iguais a ela. Na capital
paulista, destino de tantos nordestinos, estabeleceu-se no bairro do
Bixiga, onde se tornou uma figura conhecida e festejada. Lá, comprou
uma casa e acolheu o primeiro portador do vírus HIV, em 1984, quando
predominava muita desinformação e preconceito sobre/contra a Aids. Era muito
comum, e ainda o é, em menor escala, até hoje, as famílias rejeitarem os infectados pelo vírus, e a infraestrutura, para
acolher quem recebia alta hospitalar e não tinha onde morar, era muito
incipiente.
A partir de lá, sua casa de apoio, “Casa
de Apoio Brenda Lee”, se manteve aberta, prestando assistência médica,
social, moral, psicológica, jurídica e material não só para travestis, mas
também a qualquer um soro positivo que não tinha onde morar e alguém que pudesse
cuidar de sua saúde. O preconceito, muito mais do que hoje, condenava
pessoas com o HIV ao abandono e à solidão. "A importância de BRENDA
LEE foi enorme. Sua casa de apoio e acolhimento à população trans ficou
conhecida como o ‘PALÁCIO DAS PRINCESAS’. Ela firmou convênios com a Secretaria
da Saúde do Estado de São Paulo e com o Hospital Emílio Ribas e, em conjunto,
aprimoraram a forma de atender pacientes soropositivos, independentemente de
gênero, sexo, orientação sexual e etnia". Uma verdadeira cidadã, "acima de qualquer
suspeita".
Por sua efetiva e marcante militância pelos direitos
da população LGBTQIA+, BRENDA era, carinhosamente, chamada de “o
anjo da guarda das travestis”. É importante dizer que ela também passou a acolher, de maneira geral, pessoas da
comunidade LGBT que precisavam de apoio. Foi, sem sombra de
dúvidas, uma das primeiras ativistas a acolher portadores de HIV.
Em 28 de maio de 1996, aos 48 anos, no auge de seu projeto, mais
que filantrópico, BRENDA LEE foi, brutalmente, assassinada e seu corpo encontrado
no interior de uma Kombi, estacionada em um terreno baldio, com
tiros na região da boca e no peitoral. “O crime teria sido motivado por
um golpe financeiro cometido por um funcionário da casa (Ela descobrira
que o motorista da casa de apoio havia falsificado sua assinatura num cheque.).
Em 2008, foi criado o ‘Prêmio Brenda Lee’, que contempla personalidades que se
destacam na luta contra o HIV e prevenção da Aids.”, em função de seu trabalho
ter se tornado um referencial e um marco importante. O “Prêmio” é
concedido, quinquenalmente, para sete categorias, por ocasião das comemorações
do "Dia Mundial de Combate à Aids" e
aniversário do “Programa Estadual DST/Aids do Estado de São Paulo”.
Após sua morte, a casa foi vendida e se tornou
uma ONG, voltada ao oferecimento de cursos, no período compreendido
entre 2011 e 2015. Felizmente, em 2016, aquele espaço foi
reaberto e voltou a atender pacientes soropositivos e membros da comunidade LGBT que
precisam de auxílio, assim como no projeto inicialmente idealizado por BRENDA.
Hoje, seu ideal de ajudar as “irmãs” que precisam é tocado por
ativistas da comunidade LGBTQIA+.
Ainda que a devastação causada pela AIDS
esteja muito presente na peça, pontuando-a, do princípio ao fim, há um
foco mais amplo, voltado para uma profunda
discussão sobre a luta das travestis, nas ruas de São Paulo, e a
escassez de oportunidades, que acaba impelindo-as à prostituição, além
de, é obvio, mostrar como foi, e ainda é, o apoio recebido por elas, iniciado
pela protagonista. Em sua grande maioria, são PESSOAS discriminadas
por um considerabilíssimo contingente da sociedade e perseguidas pela Polícia,
além de não aceitas por suas famílias. Evidentemente, não são todas.
Com seu talento, mais
que indiscutível, tantas vezes já comprovado, FERNANDA MAIA deu forma a uma ótima dramaturgia, assim
como escreveu as letras do espetáculo. Ela não economizou no desejo de tocar
mesmo nas feridas expostas e atrair a atenção dos espectadores. É impossível alguém
se desligar do “cordão invisível” que liga a plateia ao palco.
Para escrever o texto da
peça, FERNANDA utilizou, após uma meticulosa “garimpagem”,
transcrições
de entrevistas reais, de BRENDA LEE, colhidas de registros em vídeo, na “internet”.
Nelas, a grande protagonista “conta quem é, fala sobre sua família, sobre
a prostituição, sobre como amealhou um patrimônio e o colocou à disposição de
outras amigas. Fala sobre o trabalho na casa e sua relação com a morte”.
Três planos distintos limitam três núcleos
dramatúrgicos, mas não há divisão em atos. O primeiro é o dos números
musicais, “que faz uma homenagem às antigas boates da noite
paulistana que, nos anos 80, foram um porto seguro da população transgênero e
geraram oportunidades de trabalho para as travestis”. Nele, as
personagens “contam suas histórias pregressas e falam de seus sonhos e
objetivos através de canções”. No segundo, vê-se a história cronológica
em que Brenda não abre mão do sonho de ter seu ‘Palácio das Princesas', a fim
de “poder acolher as amigas que estavam doentes”. Por
último, mas não menos importante, temos o plano das entrevistas.
Os nomes das cinco personagens, excetuando-se
a protagonista, são
os das princesas da Disney, e suas histórias foram construídas a
partir dos relatos de travestis reais, através de uma pesquisa da dramaturga,
como já citado. Alé disso, FERNANDA contou também com um material bibliográfico
de apoio, além de depoimentos de pessoas que conheceram pessoalmente BRENDA
LEE e outras, que foram moradoras ou trabalharam na casa.
O sucesso da peça também ocorre por força de um excelente trabalho de interpretação do sexteto de atrizes (travestis), com destaque, na minha visão, para OLIVIA LOPES e VERÓNICA VALENTTINO, tendo esta, no papel da protagonista, conquistado alguns prêmios, como o de Melhor Atriz, por São Paulo, na mais recente edição do “Prêmio SHELL”, numa festa em que estive presente, no Rio de Janeiro. Os dramas pessoais das seis personagens e seus desdobramentos - como se defendem das agressões sofridas, no dia a dia, e a luta pela conquista de seus direitos - desfilam num palco, durante 140 minutos, tempo que passa sem que nos demos conta disso, o que, em se tratando de TEATRO, é ótimo.
A cumplicidade profissional, de anos,
que existe entre FERNANDA MAIA e ZÉ HENRIQUE DE PAULA sempre
deságua num oceano de águas límpidas e calmas. O formato da peça se aproxima
muito da “categoria cabaré”, e o texto recebeu um irrepreensível
tratamento de ZÉ HENRIQUE, na direção. É uma montagem que marca,
indelevelmente, os amantes do bom TEATRO.
Por se tratar de um
musical, existem músicos tocando ao vivo. São eles: RAFA
MIRANDA (piano), que ainda acumula as
funções de autor das melodias, preparação vocal e direção musical; JUMA PASSA
(contrabaixo); RAFAEL LOURENÇO (bateria); e CARLOS
AUGUSTO (guitarra e violão). Contendo
elementos de brasilidade, aliados à contemporaneidade, todas as canções têm, como
referência, compositores “queer”, transgêneros e não binários. Acrescente-se
o fato de que, além de darem conta, como atrizes, as seis artistas se comportam de forma
muito favorável, como cantoras.
Nada de especial a ser comentado, com relação aos elementos de
criação: cenografia, de BRUNO ANSELMO; os figurinos, de ZÉ HENRIQUE DE
PAULA; e a iluminação, de FRAN BARROS. Ainda por se tratar e
um musical, a montagem não pode abrir mão de uma boa coreografia, assinada por GABRIEL
MALO.
FICHA TÉCNICA:
Dramaturgia e Letras: Fernanda Maia
Direção e Figurinos: Zé Henrique de Paula
Assistente de Direção: Rodrigo Caetano
Assistente de Figurino: Gustavo Zanela
Direção Musical, Música Original e Preparação Vocal:
Rafa Miranda
Assistente de Direção Musical: Guilherme Gila
Elenco: Verónica Valenttino, Olivia Lopes, Andrea Rosa Sá, Tyller Antunes, Leona Jhovs e Rafaela Bebiano
Músicos: Rafa Miranda (piano), Juma Passa
(contrabaixo), Rafael Lourenço (bateria) e Carlos Augusto (guitarra e violão)
Preparação de Atores: Inês Aranha
Coreografia: Gabriel Malo
Iluminação: Fran Barros
Cenografia: Bruno Anselmo
Visagismo (cabelos e maquiagem): Diego D’urso
Coordenação de Produção: Laura Sciulli
Pelo
que pude apurar, salvo engano, infelizmente, a casa de apoio está fechada, desde 2017, sem
perspectiva de reabertura, precisando de uma reforma e mais voluntários para
funcionar novamente. A conferir. Foi lá que as “amparadas meninas”
aprenderam, com a mestra BRENDA LEE, a se valorizar, pensar positivo,
mesmo diante de tanta “porrada” recebida, ser otimistas e a
sempre querer mais da vida.
Numa
das canções do espetáculo, os versos “Você não duraria nem ao menos 10
minutos / Se estivesse na minha pele / Pelas ruas da cidade", procuram tocar o espectador, em sua humanidade, a fim de que as travestis sejam
respeitadas, como SERES HUMANOS, e tenham seu lugar de fala, numa
sociedade que não é igualitária e transborda em homofobia e intolerância.
Oxalá a resposta esperada e desejada por elas seja positiva!
Para finalizar, digo que, embora tratando de um tema bem “pesado” e não deixar de abordar o fim trágico dessa grande brasileira, encaro esta montagem como bastante oportuna e com um final “para cima”. O espetáculo voltou ao cartaz, no "Núcleo Experimental", até o dia 14 de maio próximo. Procurem se informar e não percam a oportunidade de conferir.
BRENDA LEE (Foto: autoria desconhecida.)
BRENDA LEE visita um de seus assistidos.
(Foto: autoria desconhecida.)
Fachada da "Casa de Apoio BRENDA LEE"
(Foto: autoria desconhecida.)
FOTOS: DIVULGAÇÃO,
GILBERTO BARTHOLO
E
NANDA ROVERE
GALERIA PARTICULAR
(FOTOS: GILBERTO BARTHOLO)
COLETIVA DE IMPRENSA:
DEBATE APÓS A SESSÃO:
VAMOS AO TEATRO,
COM TODOS OS CUIDADOS!!!
OCUPEMOS TODAS AS SALAS DE ESPETÁCULO
DO BRASIL,
COM TODOS OS CUIDADOS!!!
A ARTE EDUCA E CONSTRÓI, SEMPRE!!!
RESISTAMOS, SEMPRE MAIS!!!
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POSSAMOS DIVULGAR
O QUE HÁ DE MELHOR NO
TEATRO BRASILEIRO!!!
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