DESALINHO
(UM SONHO BORDADO EM FILIGRANAS DE OURO
ou UMA ODE À MORTE “BRANCA”.)
Está em cartaz, na arena do Espaço SESC Copacabana, às 3ªs e 4ªs, às 20h30min,
até o dia 11 de junho, o espetáculo DESALINHO, peça inspirada, livremente,
na grande poeta portuguesa Florbela
Espanca, cuja vida, de apenas
trinta e seis anos, foi plena, embora tumultuosa, inquieta e cheia de
sofrimentos íntimos, que a autora do texto soube transformar em poesia da mais
alta qualidade, carregada de erotização.
DESALINHO: substantivo masculino = falta de alinho,
desarrumação; no sentido figurado, perturbação
do ânimo ou da razão.
O texto é
de MARCIA ZANELATTO, que, “apoiada
em poemas de Florbela
Espanca e Fernando Pessoa,
trouxe, de volta, ao palco, o lirismo de uma história fadada à tragédia: o amor
entre dois irmãos”. Sabe-se, por alguns
de seus biógrafos, que Florbela
nutria uma paixão incondicional e incontível, não sei se correspondida, por seu
irmão, Apeles, falecido, de forma
trágica, num acidente de aviação.
A autora da peça transcendeu a realidade e criou uma
personagem, MARIANA, aficionada por Florbela, e que via, nos versos da
poeta lusa, um esteio para a sua vida.
Na realidade, Florbela não
matou o irmão, menos ainda esteve internada em alguma instituição para
tratamento psiquiátrico, como se dá na encenação.
A dramaturgia da peça prende a atenção do espectador
pelos jogos de palavras e pelo apuro no vocabulário. E, por fugir ao aspecto denotativo, leva-o –
o espectador – a saborear os vocábulos e seus matizes semânticos, de forma a
viajar profundamente pelo universo da grande poeta e sentir o eco do que lhe vai na alma. Estamos diante de um delicado bordado de
filigranas de ouro no mais puro linho egípcio.
Gabriel Vaz, Carolina Ferman e
Kelzy Ecard.
MÁRCIA
situou a protagonista num sanatório psiquiátrico, em função de a moça ter
matado seu irmão, num crime passional.
Naquele lúgubre e insalubre ambiente, as histórias de seu passado,
vivido na realidade ou na sua própria fantasia, vêm à tona, talvez por remorso
e pela culpa que carrega, sob a forma de alucinações, sempre diante de uma
enfermeira, com quem a moça se envolve afetivamente ou, talvez, mais por
necessitar de uma cumplicidade em seus devaneios.
Pode-se considerar o texto um manifesto pela
liberdade de amar, de pensar, de ser, de viver e conviver, e um grito contra todas
as formas de opressão e de julgamentos, que, por vezes, projetam mais foco sobre
tantas vidas que já vivenciam, naturalmente, o sofrimento e a desdita.
Uma ode à
morte “branca”, aquela que não faz sofrer, mas que liberta, também poderia
funcionar como uma definição epitética para este texto.
A direção do espetáculo
é uma atração à parte. Considero ISAAC BERNART um dos melhores e mais
versáteis atores de sua geração. Além
disso, desde que resolveu enveredar pelo campo minado da direção, não fez outra
coisa a não ser acertar. A delicadeza é
marca registrada do seu trabalho. E,
para citar apenas dois exemplos, assim como em DESALINHO, não há como não senti-la em QUERIDA HELENA SERGUEIVNA e CALANGO DEU – OS CAUSOS DE DONA ZANINHA, duas belíssimas pinturas,
emolduradas pelo talento, a sensibilidade e a delicadeza de ISAAC.
Aqui, ele deu asas à sua incomensurável sensibilidade e também
trabalhou muito no bordado deste DESALINHO. E como!
Existem, na peça, algumas marcações de cena que são trabalho de gente
muito profissional, que enxerga além do normal, como, por exemplo, a caminhada
sobre os livros, que a protagonista faz, associada ao texto que vai
dizendo. É obra de gênio! Muito boa, também, é a cena inicial, em que
os dois irmãos (ainda não sabíamos qual seria a relação entre os dois personagens) brincam
de pique-pega, em torno da arena, acima das poltronas.
No elenco, não
se pode poupar elogios ao belíssimo trabalho de CAROLINA FERMAN, que faz a protagonista e que já vem me encantando
há algum tempo, em vários outros papéis.
Talento e presença de palco abundam nessa jovem atriz, que se destaca com
relação às de sua época. Diz seu texto
com tanta naturalidade e verdade, que é difícil controlar a emoção. Grande atriz!
O papel do
irmão é feito por outro jovem bom ator, GABRIEL
VAZ. Comedido nas emoções, entretanto
sem reprimi-las, o ator mantém o mesmo tom sereno e terno do personagem, ao
longo de cerca de uma hora de duração do espetáculo.
Um bom trabalho.
Agora, chegou
a vez de falar de uma das mais completas atrizes brasileiras: KELZY ECARD. Uma operária do TEATRO, no sentido mais amplo e positivo do termo, KELZY é uma atriz que emociona só por
sua figura. Sua presença, na ficha técnica
da peça, aparece como “atriz convidada”. Eu trocaria por “participação mais-que-especial”.
Como sempre, valoriza qualquer cena de que participa e, da forma mais
generosa possível, ilumina a atuação de seus companheiros de trabalho. Quando contracena com CAROLINA, dificulta a nossa respiração. Atuação irretocável.
Gabriel Vaz, Carolina Ferman e
Kelzy Ecard.
A luz, boa, como sempre, é do competente AURÉLIO DE SIMONI.
A cenografia,
muito franciscana, sem nenhuma conotação negativa, é de DÓRIS ROLLEMBERG: uma mesa para refeições, um banco (do tipo mocho)
e uma pequena escada de dois degraus, dos que são utilizados em hospital. O “mobiliário” está
colocado sobre um piso circular, em forma de uma mandala. Fiquei intrigado sobre o que poderiam
significar aqueles traços no chão. Supus
várias interpretações e minha inquietação levou-me a procurar a cenógrafa e
perguntar-lhe sobre a sua proposta. Gentilmente,
ele me deu a resposta, que, com o seu consentimento, transcrevo:
“Quando li o texto, fiquei completamente
arrebatada. Uma poesia a ser levada para a
cena. Trabalho sempre a partir da ideia
de ocupação de espaço, espacialidade/tempo e cinética. Assim, propus que a cena deveria ser vista de
longe, escondida. Dessa forma, o espaço
reduzido nasceu dessa ideia do afastamento (concreto) do espectador e da cena. A imagem de um abismo ou de um buraco negro me
veio como um pressentimento, de forma que acabou por resultar em um espaço
mandálico, onde as linhas e traçados podem indicar os movimentos de expansão e
retração. O grafismo é uma questão que
também me acompanha. A Márcia
(Zanelatto) diz que é um olho, mas pode ser o que espectador quiser. É ele quem deve completar esse desenho”.
E eu completo: o círculo limite da mandala
pareceu-me a fronteira entre o presente e o passado. O centro do traçado, seguindo a visão da
dramaturga, também me pareceu um olho, que tudo vê e pouco percebe; ou que nada vê, porque não há nada de real
para ser visto. Os raios do desenho,
voltados para a plateia, parecerem apontar para cada espectador, como a dividir
com eles aquele sofrimento ou para lembrá-los de que eles também poderiam estar
dentro daquela mandala.
Boas são a direção
musical de ALFREDO DEL PENHO e JOÃO CALLADO, os figurinos de DESIRÉE BASTOS
e a direção de movimento de MARCELLE SAMPAIO.
DESALINHO
é um bom motivo para você ir ao TEATRO.
Para concluir, dois momentos de Florbela Espanca, bem relacionados ao texto da peça, para deleite e
reflexão:
1) “O meu mundo não é como o dos outros; quero demais, exijo demais. Há, em mim, uma sede de infinito, uma angústia
constante, que nem eu mesma compreendo, pois estou longe de ser uma pessoa; sou,
antes, uma exaltada, com uma alma intensa, violenta, atormentada, uma alma que
não se sente bem onde está, que tem saudade… sei lá de quê!”
2) “Afinal, quem é que tem a pretensão de
não ser louca?... Loucos somos
todos, e livre-me Deus dos verdadeiros ajuizados, que esses são piores que o
diabo!”
Eu, Márcia Zanelatto
e Cássio Pandolph.
Eu e Kelzy Ecard.
Regina Cavalcanti,
Leo Ladeira, eu e Cássio Pandolph.
Reunião de amigos: Cássio,
eu, Kelzy, Leo e Regina.
A premiada
figurinista Carol Lobato e eu.
(FOTOS: JOÃO JÚLIO MELLO – PRODUÇÃO E
DIVULGAÇÃO DO ESPETÁCULO e REGINA CAVALCANTI)
Parabéns Gilberto, seu texto é tão lindo e delicado quanto o espetáculo!
ResponderExcluirBelíssimo texto. Quando assisti imaginei que as linhas eram as grades da cela da personagem, mas aqui minha mente viajou ainda mais!
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