COMO É CRUEL VIVER ASSIM
(O INSTINTO DE SOBREVIVÊNCIA DE UM SER
HUMANO TEM RAZÕES QUE A PRÓPRIA RAZÃO DESCONHECE.)
Sabe quando a pessoa sai de um
espetáculo teatral feliz, com vontade de recomendá-lo a todos os amigos e doido
para escrever sobre ele? Aconteceu
comigo, no dia 1º de maio, feriado do Dia do Trabalho, depois de ter visto COMO É CRUEL VIVER ASSIM, em cartaz no
teatro da Casa de Cultura Laura Alvim.
O texto, uma comédia
dramática, foi escrito, por FERNANDO
CEYLÃO, em várias etapas, desde seu tempo de estudante. Passou por muitas reescrituras, as primeiras
feitas à mão, num velho caderno, e a lápis.
Segundo o autor, embora tivesse sido pensado para os palcos, parecia
mais o roteiro de um filme de ação, o que, certamente, também daria muito certo. (Fica aqui a minha sugestão de levar a
história às telas.) A ideia da trama
surgiu, enquanto o jovem CEYLÃO,
“matando” aula, "assistia" a um culto evangélico, num templo que ocupava o cinema
que ele frequentara.
Não há, unicamente, um tema
sobre o qual repousa a peça, ainda que a “frustração”
possa ser considerada o principal. Mas
também ali estão presentes a luta diária pela sobrevivência, num país de poucas
oportunidades; a desintegração familiar;
a busca pelo reconhecimento pessoal; a solidão; o descompromisso o moral e o legal; o vazio existencial...
A trama se passa num espaço
esdrúxulo, uma pequena lavanderia meio improvisada, que também serve de moradia
para dois dos personagens: CLÍVIA
(LETÍCIA ISNARD), que a herdara de uma velha tia, e VLADIMIR (MARCELO VALLE), casados.
CLÍVIA é uma companheira fiel, uma espécie de escudeira e
para-raios para as ações desastrosas e frustradas do marido. È sonhadora e provedora do casal, com seus
parcos recursos, advindos de seu trabalho (o único) honesto, ou quase, na
lavanderia (permite que os outros personagens usem roupas dos clientes, antes
de estes as buscarem).
VLADIMIR é uma espécie de pária (ou assim se sente), para quem,
pessimista (ou realista?) de carteirinha, nada parece dar certo. Também não se sabe se ele, realmente, deseja
que dê. Trata-se de um homem beirando os
cinquenta anos, que vive, sem muito pudor, a expensas da companheira e cuja
maior preocupação é a carência de reconhecimento dos outros, maior que a
questão da falta de perspectivas na vida.
Sofre por não conseguir realizar nada de relevante, algo que o fizesse ser
respeitado como homem e como cidadão.
Vive numa total dependência, material e afetiva.
REGINA, personagem vivida por INEZ
VIANA, é uma velha “amiga” de CLÍVIA,
dos bancos escolares, que não se deu bem nos estudos, abandonou-os e partiu
para o mundo. Completamente sem rumo na
vida, mora, de favor, na casa/lavanderia da “amiga”. Do quarteto, é a única que não pode ser
chamada de ingênua, na trama. É dela a
ideia que vai gerar todo o quiproquó da peça.
ÁLAMO FACÓ é PRIMO, o
melhor amigo de VLADIMIR e também o
quarto dos patetas. Totalmente submisso
a este, apresenta traços de uma idiotice contumaz, quase um retardo mental, que
é muito bem explorado pelo amigo. Apenas
sobre PRIMO, VLADIMIR experimenta o prazer de triunfar e tripudiar.
Tudo começa quando REGINA vê o caminho do crime como única
forma de ascensão social e financeira e tem a “brilhante” ideia de sequestrar
seu antigo patrão, homem milionário, em cuja casa havia trabalhado, como babá,
por mais de quatro anos. Seria, ao mesmo
tempo, uma vingança, pelos maus tratos sofridos naquela casa ou, por menos,
pela falta de atenção e reconhecimento por parte do patrão, e um meio de ganhar
dinheiro de forma fácil, já que a sorte resolveu não sorrir para ela. Ou melhor, para os quatro envolvidos no
pacto. Sim, porque, para pôr seu plano
em prática, foram recrutados o casal “hospitaleiro” e o desajustado e trapalhão
PRIMO.
Quatro fracassados, sem
perspectivas de vida, se reúnem para uma ação criminosa, numa atitude, para
eles, totalmente desprovida de sentido do ilícito e do imoral. Agem e pensam, inconsequentemente, movidos
por um desejo de romper a barreira dos obstáculos para transpor a “porta da
esperança”, de uma forma quase ingênua, à exceção de REGINA, que sabe muito bem o que quer e o que faz e leva, sobre o
trio, uma certa vantagem, no campo do crime, por sua possível vivência
anterior.
No fundo, no fundo, são quatro
vítimas, tanto quanto o alvo do sequestro.
Vítimas de um sistema social falido e injusto.
No final, às portas da concretização do
delito, um “imprevisto” ocorre e põe tudo a perder. É claro que não posso revelar o final da
peça. Jamais roubaria a você, que me lê,
o prazer de descobri-lo, indo ao teatro e dando boas gargalhadas.
Quanto à FICHA TÉCNICA:
TEXTO – FERNANDO CEYLÃO.
Excelente. Apesar do rótulo de
“comédia dramática”, como é vendido o espetáculo, há falas e momentos, na peça,
que chegam a lembrar um pouco o teatro do absurdo, tal é o grau do que se pode
chamar de “sem-noção” dos quatro personagens.
O inverossímil e o surreal, quase primos entre si, vez por outra, dão as
suas caras e tornam o espetáculo mais interessante ainda.
DIREÇÃO – GUILHERME PIVA.
Muito boa e segura. Não é fácil
dirigir comédia. PIVA deve ter trabalhado muito com os atores, até que atingissem o
tom certo para os personagens e um tempo de comédia que se mantivessem do
início ao final dos 90 minutos de duração do espetáculo. O trabalho do diretor, numa comédia, é, no
meio de tantas preocupações, conter as extravagâncias na interpretação, rumo
para o qual, naturalmente, parece correr o trabalho dos atores, de uma forma
geral, nesse tipo de texto. GUILHERME e seus companheiros souberam,
muito bem, misturar, em doses certas, os elementos necessários para se fazer
uma boa comédia.
ELENCO – ÁLAMO FACÓ, INEZ VIANA, LETÍCIA ISNARD e MARCELO VALLE (em
ordem alfabética). Excelentes
trabalhos de todos. Não vejo a menor
possibilidade de destacar a atuação de ninguém.
Poucas vezes, conseguimos ver, no palco, um elenco tão afinado e tão
competente. Já os vi fazendo dramas, em
que também se saem bem, mas, indiscutivelmente, a vocação do quarteto para a comédia
é digna de todos os elogios. Só tenho a
agradecer aos quatro pelas sonoras gargalhadas que me fizeram dar, acompanhado
por toda a plateia, a cada fala, inteligentemente construída por CEYLÃO e dita por eles.
DIREÇÃO DE MOVIMENTO – MÁRCIA RUBIN – Boa, principalmente se
considerarmos as dimensões do palco, o pouco espaço que sobra, em função do
cenário, e as marcas feitas pelo diretor.
CENÁRIO e OBJETOS – AURORA
DOS CAMPOS – Depois de triplamente premiada, em 2013, por seus trabalhos de
cenografia, com destaque para o magnífico cenário de CONSELHO DE CLASSE, AURORA
brilha mais uma vez. Ainda bem que a ficha técnica não se limita a falar
apenas em “cenário” e acrescenta a
rubrica “objetos”. Sim, porque essa competentíssima profissional
não é apenas uma cenógrafa; seu trabalho entra pelo campo da direção de arte. Os objetos expostos no cenário estão
perfeitamente ajustados à concepção do ambiente. Recomendo que prestem atenção a todos os detalhes expostos no cenário.
FIGURINOS – ANTÔNIO MEDEIROS e
TATIANA RODRIGUES. Ótimos.
Principalmente os vestidos por INEZ
e ÁLAMO.
ILUMINAÇÃO – MANECO QUINDERÉ.
Mais um acerto do MANECO. Muito boa a luz e, na visão de quem não é
técnico, difícil de ser operada, tarefa tirada de letra por BEL CABRAL.
TRILHA MUSICAL – FERNANDO CEYLÃO.
Muito boa.
SUPERVISÃO MUSICAL e DESENHO
DE SOM – MARCELO ALONSO NEVES. Bom trabalho.
É longa a ficha técnica e todos
estão de parabéns, porque, de alguma forma, contribuíram, e contribuem, para o
bom resultado da peça.
Saí do teatro muito feliz,
depois de me divertir bastante e de dar boas gargalhadas. Por outro lado, como dizia o poeta Billy Blanco, em sua canção Canto Chorado, “O que dá pra rir dá pra chorar; questão só de peso e medida”. Depois do espetáculo, é parar para pensar no
que levou os personagens àquela situação grotesca, hilária, desesperadora,
limite e pensar no que se pode fazer para transformar este país numa nação mais
justa, que deveria tratar melhor seus filhos, para evitar que acontecesse o
desfile de atrocidades e injustiças, diariamente, aos nossos olhos. O que poderia ser feito para dar dignidade aos
milhões de exemplos de CLÍVIA, REGINA, VLADIMIR e PRIMO, que
são nossos vizinhos ou nós mesmos?
Recomendo muito o espetáculo,
em cartaz no teatro da Casa de Cultura
Laura Alvim, de 5ª a sábado, às 21h, e, aos domingos, às 20h, até o final de
maio, salvo engano.
Fernando Ceylão (autor)
Guilherme
Piva (diretor)
(FOTOS DIVULGAÇÃO / PRODUÇÃO DO ESPETÁCULO
E PÁGINA DO FACEBOOK : COMO É CRUEL VIVER ASSIM)
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