FARNESE
SAUDADE
(QUANDO O TEATRO E
AS ARTES PLÁSTICAS
CAMINHAM DE MÃOS DADAS.
CAMINHAM DE MÃOS DADAS.
ou
UM COMOVENTE
ESPETÁCULO-INSTALAÇÃO.)
Em cartaz, no Teatro
Poeirinha (VER SERVIÇO.), um espetáculo que presta uma homenagem, na forma
de um reconhecimento ao talento de um grande multiartista plástico, não muito
conhecido no Brasil (pelo menos,
como merecia), apesar de sua grande importância para as artes plásticas brasileiras, já tendo tido, porém, uma considerável
notoriedade, no entanto, praticamente, relegado ao ostracismo, após sua morte. Seu nome FARNESE
DE ANDRADE NET O.
Confessando minha quase total ignorância acerca do
personagem da peça, passei boa parte do meu tempo, no dia de sua estreia, na última
5ª feira (01/03/2018), pesquisando
sobre a vida e a obra de FARNESE e,
para escrever esta crítica, tive uma breve, porém profícua, conversa com o idealizador do
projeto, VANDRÉ SILVEIRA. Mesmo
assim, não me considero satisfeito, com as informações que colhi, ficando-me
alguns pontos meio nebulosos, com relação à vida do artista, principalmente no
que diz respeito ao seu relacionamento com os pais. Isso é bom, para aguçar a
imaginação dos espectadores.
Sei, pelo que li, de seus biógrafos e estudiosos de sua
arte, e diante do trabalho de VANDRÉ,
que FARNESE parece ter sido uma
pessoa bastante deprimida, atormentada, por força das “armadilhas” que a vida
lhe reservou, o que, obviamente está refletido em seus trabalhos. Sua vida foi marcada por momentos trágicos, como a morte de dois
irmãos, numa enchente do rio, a separação dos pais e um período de cerca de
dois anos, durante o qual lutou pela sobrevivência, ao duelar, bravamente,
contra uma tuberculose, sem falar no fato de ser homossexual assumido, o que,
em sua época, lhe deve ter causado muita dor e problemas, para conviver em
sociedade e, talvez, até mesmo, para consigo mesmo.
Não sei se me equivoco, quando penso ter percebido uma relação forte,
entre filho e mãe (“O útero é o melhor
hotel do mundo!”), quase mística e mítica, enquanto não me pareceu tão robusto
o relacionamento entre filho e pai, o que me deu margem a algumas ilações, que
prefiro guardar para mim.
Na minha considerável e agradabilíssima
pesquisa sobre a vida e a obra de FARNESE,
tive a oportunidade, como leigo em artes
plásticas, ainda que um grande apreciador do belo que elas me transmitem,
de saber, por intermédio do historiador Rodrigo
Naves,
que “a
singularidade de sua obra está na carga afetiva, gerada tanto pela presença dos
objetos antigos e rudimentares, com características altamente pessoais,
marcados pelo uso e pelo tempo, envelhecidos, como por conter referências
biográficas. Em vez de montagem de objetos e imagens, sua obra pode ser vista
como uma colagem de tempos, remetendo a um passado que não mais nos pertence e
ainda pesa sobre o presente. A constância da caixa, em sua obra (...) poderia
ser interpretada como uma representação do inconsciente e do corpo materno,
algo que encerra e separa do mundo aquilo que é precioso ou frágil”.
Esses conceitos podem ser, facilmente, reconhecidos na peça.
Também aprendi, e constatei, no espetáculo, que FARNESE, com sua arte, transformava em
objetos concretos, plasticamente “ordenados”, num caos que lhe
brotava da alma, a marca de dor e sofrimento inerente a todos os seres humanos.
O incalculável número de bonecas ou, simplesmente, pedaços delas, utilizados em
grande parte de suas obras, abandonadas e destruídas, recolhidas pelo artista,
poderiam representar “a fragilidade dos corpos humanos, fadados à
morte e ao desaparecimento(...)” (Fonte
não captada.)
Nascido em Araguari,
Minas Gerais, em 1926, e falecido, aos 70 anos, no Rio de Janeiro, em 1996,
FARNESE foi pintor, escultor, desenhista, gravador e ilustrador.
Entre 1945 e 1948, estudou desenho
com Guignard, em Belo Horizonte.
Em 1948, com o objetivo de buscar
tratamento para uma tuberculose,
viu-se na situação de se mudar para o Rio
de Janeiro, mais propriamente, para a cidade serrana de Correias, próxima a Petrópolis. No Rio, depois de curado, após dois anos de tratamento num sanatório,
nome que se dava aos hospitais onde era tratada aquela doença, trabalhou, como ilustrador, para vários jornais e
revistas, como o Suplemento
Literário do Diário
de Notícias, o Correio da Manhã,
o Jornal de Letras e as
revistas Rio Magazine, Sombra, O Cruzeiro, Revista Branca e Manchete.
Em 1959, começou a estudar gravura, no Ateliê do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM - RJ), aperfeiçoando-se em gravura em metal.
Em 1964, começou a criar obras com materiais descartados, coletados
nas praias e nos aterros. Posteriormente, passou a utilizar armários,
oratórios, gamelas e ex-votos,
adquiridos em antiquários e depósitos de materiais usados. Fotografias antigas
também estão presentes em sua obra.
Desde 1967, utilizou resina de poliéster,
envolvendo materiais perecíveis. No Salão
Nacional de Arte Moderna de 1970, recebeu, como prêmio, uma viagem ao
exterior, tendo ido para a Espanha,
onde instalou um estúdio em Barcelona,
cidade em que permaneceu até 1975.
FARNESE DE ANDRADE pode ser considerado um grande artista plástico eclético,
principalmente por suas gravuras abstratas, trabalhando com formas regulares e
cores fortes, e pelos trabalhos desenvolvidos, tendo, como matéria-prima, o que
pode ser considerado lixo reciclável. Produziu duas séries de desenhos
notáveis: “Eróticos” e “Obsessivos”.
Em 1993, recebeu o Prêmio Roquette Pinto dos Melhores de 1992, pela exposição “Objetos”, na Galeria Anna Maria Niemeyer.
Sobre o espetáculo,
em si, acho muito própria a sua categorização como um “espetáculo-instalação”, e não um “monólogo”, como pode parecer aos olhos dos espectadores menos
atentos. Não! Não se trata de um monólogo,
visto que, da primeira à ultima cena, há um “diálogo” constante do ator VANDRÉ
SILVEIRA, em brilhante interpretação,
com todos os objetos que fazem parte da magnífica instalação, a qual serve como cenário,
também surgida da criatividade de VANDRÉ.
De alguma forma, a
peça comemora os 70 anos de chegada
de FARNESE ao Rio de Janeiro, como já mencionado, em 1948. Se vivo fosse, já teria ultrapassado os 90 anos de idade.
O espetáculo não é
uma estreia, visto que vem sendo apresentado, com grande sucesso, de público e
de crítica, há seis anos, em outros espaços, e “...busca
mostrar a vida deste grande artista brasileiro, muito reconhecido em sua época,
mas, infortunadamente, esquecido com o tempo.”, como diz o “release” da peça, enviado por FERNANDA
MIRANDA (DOIS PONTOS ASSESSORIA).
Prossegue o “release”: “A peça fala sobre a
vida e a obra do artista plástico mineiro, levando o espectador a mergulhar nos
pensamentos e no momento de criação do artista.”. E como o espectador é levado a isso,
envolvendo-se, emocionalmente, com o que percebe ao seu redor!
SINOPSE:
O universo do artista plástico
mineiro FARNESE DE ANDRADE é tema do espetáculo-instalação “FARNESE DE SAUDADE”.
O premiado monólogo é idealizado
pelo ator VANDRÉ SILVEIRA, que também assina a
dramaturgia e a instalação cênica.
Como uma manifestação do artista,
VANDRÉ narra suas experiências em
primeira pessoa e é também objeto-criatura de FARNESE.
É
VANDRÉ SILVEIRA quem afirma: “Estar no palco, como FARNESE DE
ANDRADE, é muito mais que interpretar um personagem; é como encarnar este
artista, viver as emoções que ele viveu, na vida, ao criar suas obras, e
transparecer essa ebulição para a plateia. Que eles vejam o grande artista que
ele foi, e sempre será, apesar de sua popularidade ter-se esvaído, com o tempo,
após seu falecimento”.
Não
há a menor restrição a ser feita quanto ao trabalho de VANDRÉ, como ator; ao contrário, todos os
aplausos devem ser dirigidos a ele, por sua belíssima e emocionante interpretação
intimista, “minimalista”, orgânica e visceral. A prova maior disso foram os
inúmeros prêmios que conquistou, até agora, como o de Melhor Ator, no Festival
Home Theatre 2014. Além disso, o espetáculo também mereceu destaque
pelo magnífico cenário-instalação: Prêmio de Melhor Cenário, no 2º Prêmio Questão de Crítica; indicado ao 25º Prêmio Shell – Rio de Janeiro, na categoria Melhor Cenário. Mais laureada, ainda, foi a
montagem, ao ter sido indicada ao Prêmio
Questão de Crítica, na Categoria
Especial, pela pesquisa do projeto, e selecionado, como
participante do evento Plataforma
Rio 2012, sem falar nos destaques, como um dos
melhores espetáculos em cartaz, recomendado por renomadas
revistas cariocas.
Para
o cenário-instalação, certamente 50% do espetáculo, VANDRÉ projetou uma imensa gaiola de
ferro, no formato de uma cruz, como parte de uma referência
à religiosidade mineira e, mais propriamente, à de FARNESE. A gaiola delimita o espaço
da encenação, embora, no último terço do espetáculo, o ator abandone o
confinamento e passe a utilizar três caixas de
areia, à frente da gaiola, sobre as quais executa sua interpretação, nas
cenas finais, elas como referência à grande paixão de um mineiro pelo mar, de
onde ele recolheu tanto material, para as suas obras, nas praias do Flamengo e de Botafogo, no Rio de Janeiro.
Dentro
dessa gaiola, o que se vê é um amontoado de peças e objetos curiosos, até
bizarros, de grande apelo visual, presentes em seu universo, todos signos que
reportam à vida do artista, principalmente os anos vividos em Minas Gerais, abarcando a infância
e a juventude, até os 22 anos. Esses objetos vão sendo,
aos poucos “organizados”, pelo personagem, à medida que suas lembranças vão tomando
conta dele.
(Foto particular: Alexandre Pomazali.)
Com
relação à estrutura do texto
(narrativa em primeira pessoa), é fantástica a sua construção.
Tudo vai sendo contado por VANDRÉ / FARNESE e há momentos em que o
público se confunde, não sabendo mais onde termina a presença de um e surge a
de outro, tal é a perfeição do nível interpretativo do ator. O texto vai fluindo normalmente, com o personagem falando, principalmente, de
sua infância e juventude, quando, repetidamente, a qualquer momento, uma
memória o tira da zona de conforto, incomodado por tristes e dolorosas
recordações, e ele externa o desejo de purgar algo, parecendo entrar num
transe, num ritual, representado por uns breves trancos, que executa com o
corpo, passando a dizer extensos textos em latim, uma mistura de preces e cânticos
religiosos, católicos, enquanto o ator, agitado, não para de andar, dentro da
gaiola, oprimido pelo acanhado espaço, destinando novas posições a alguns objetos.
Teria chegado ao ponto de desenvolver problemas mentais? Existiria, nele, uma,
apenas, aparente saúde psíquica?
Para
terminar a análise da atuação de VANDRÉ, não poderia omitir seu
excelente trabalho de corpo, já tão elogiado por mim, quando interpretou o protagonista de “O Homem
Elefante”, espetáculo que, para mim, o consagrou como ator. Também merecem
destaques o timbre e a firmeza de sua voz, que valorizam o personagem.
CELINA SODRÉ imprime, em seu trabalho de direção, seu vasto conhecimento das teorias de Stanislavski e Grotowski, extraindo, do ator, o já
referido excelente rendimento, além de, junto com ele, ao que me parece, ter
chegado a brilhantes soluções para as cenas.
O
desenho de luz, proposto e executado por RENATO MACHADO, faz uso de pouca iluminação, em
harmonia com o tom da peça, sendo utilizados, apenas, poucos refletores, de luz
não muito intensa, e vários “mini-spots”, muitos dos quais manuseados e
direcionados a alguns objetos de cena, pelo próprio ator, representando o desejo
do personagem de enfatizar momentos significantes de sua vida.
O
figurino, também de CELINA SODRÉ, é simples, porém bastante significativo e
emblemático, com destaque para uma dualidade, uma certa ambiguidade, que pode
ser decodificada de mais de uma forma, quero crer, representada pela pintura da
parte da frente de um paletó, nas costas do que o ator usa, durante todo o espetáculo, além de outra, de um grande
coração (o órgão, não o símbolo), também nas costas. Exercite sua imaginação!
Não
há, na ficha técnica da peça, o nome de um
responsável pelo visagismo do personagem, mas, de
forma alguma, poderia omitir o nome de ANTÔNIO
SODRÉ SCHRELBER, que lá aparece, como responsável por uma pintura artística, feita na
testa do ator. SCHRELBER é um artista plástico, que, para todas as sessões, chega, com duas
horas de antecedência, ao Teatro
Poeirinha, a fim de reproduzir a dita pintura, inspirada em outra, feita
por um amigo de FARNESE, numa
colher, esta utilizada na fotografia da
arte gráfica do espetáculo.
Tal
colher guarda uma história muito interessante, repassada, a mim, pelo ator, que
merece ser contada. Quando VANDRÉ
estava envolvido no processo de pesquisa
para o espetáculo, conheceu Jô Frazão,
uma pesquisadora, que mergulhou, profundamente, na obra do artista falecido e
organizou o material, o qual possibilitou a publicação de livros sobre FARNESE, pela Cosac Naify,
uma editora brasileira,
que existiu até 2015. Jô presenteou VANDRÉ com a referida colher, na qual se vê o rosto do artista,
pintado pelo amigo que lhe dera o objeto, posteriormente recolhido pela
pesquisadora.
A
pintura, na testa, é uma reprodução daquela feita na colher e não está ali
localizada por acaso. Ocupa o lugar de um terceiro olho, revelando um lado
místico do artista, retratado na peça, facilmente captado, durante todo o
espetáculo.
A
intenção da pintura, na testa do ator, é como se fosse para ele apresentar, ao
público, o homenageado e “dar-lhe passagem”, servindo,
também, para mostrar o ator como um suporte para a obra de FARNESE, além de ser “uma questão de reverberação, como FARNESE
fazia, colocando objetos dentro de outros e pinturas, também, dentro de outras”,
como me disse, em particular, VANDRÉ
SILVEIRA. Além de representar FARNESE,
VANDRÉ empresta seu corpo para ser o
suporte, o esteio da obra daquele.
FICHA
TÉCNICA:
Atuação,
Dramaturgia e Instalação Cênica: Vandré Silveira
Direção: Celina
Sodré
Assistência
de Direção: Conrado Nilo e Tuini Bittencourt
Figurino:
Celina Sodré
Iluminação:
Renato Machado
Assistência
de Iluminação: Maurício Fuziyama
Operação
de Luz: Bruno Aragão
Fotos de
Divulgação: Victor Pollak
Fotos de
Cena: Rodrigo Castro
Design
Gráfico: Marcello Queiroz
Pintura
Artística na Testa: Antônio Sodré Schrelber
Cenotécnica:
Hélio Lopes Barcelos
Direção
de Produção: Caio Bucker
Produção
Executiva: Daniel Gofman
Produção
de Turnê: Ricardo Fernandes
Mídias
Digitais: Primetime Projetos Empreendedores
Administração:
Cissa Freitas e Francisco Júnior
Assessoria
Jurídica: Nazário & Werneck Advogados
Assessoria
de Imprensa: Dois Pontos Assessoria
Coprodução:
Lançamento Novo Produções
Realização:
Bucker Produções Artísticas e Vandré Silveira
SERVIÇO:
Temporada:
De 01 de março a 29 de abril de 2018
Local: Teatro Poeirinha
Endereço:
Rua São João Batista, 104 -
Botafogo – Rio de Janeiro
Telefone:
(21) 2537-8053
Dias e
Horários: De 5ª feira a sábado, às 21h; domingo, às 19h
Valor do Ingressos:
R$50,00 (inteira); R$25,00 (meia entrada); R$20,00 (Star Palco)
Classificação
Etária: 12 anos
Duração:
50 minutos
O mínimo que se pode dizer do espetáculo, além de que ele é ótimo, é que se trata de uma
montagem muito além de instigante, que foge aos padrões de encenação dramática
que estamos acostumados a ver e que consegue, em poucos minutos, atrair o
público para a cena, mantendo-o assim até o final.
Não se
ouve um único som na plateia, como manifestação natural de algum espectador.
Acho que até as habituais e, quase sempre, “indefectíveis” tosses conseguem ser
contidas, tal é o nível de atenção e interesse dos espectadores pelo trabalho
que estão tendo o privilégio de ver desenvolvido.
Para finalizar, destaco o interessante título do espetáculo, “FARNESE DE SAUDADE”, que “brinca” com
o nome do artista, FARNESE DE ANDRADE,
fazendo uso, mais que de uma rima, de uma palavra, que pode, e deve, ser aplicada
ao artista já desaparecido. O homem vai,
mas sua obra fica.
E VAMOS AO
TEATRO!!!
OCUPEMOS TODAS AS
SALAS DE ESPETÁCULO DO BRASIL!!!
(FOTOS: VICTOR POLLACK
e
RODRIGO CASTRO.)
GALERIA PARTICULAR:
(Foto: Alexandre Pomazali.)
(OBSERVAÇÃO: as fotos de cena em que o ator aparece de cabeça raspada
são de outras temporadas,
uma vez que não foram feitas, ainda, fotos desse tipo na atual.)
Nenhum comentário:
Postar um comentário