terça-feira, 12 de abril de 2016


MYRNA
SOU EU
 
 
 
(CONSULTÓRIO SENTIMENTAL
DE NELSON RODRIGUES
 
ou
 
“NÃO SE PODE AMAR E SER FELIZ
AO MESMO TEMPO” – MYRNA.)
 
 
 
“NÃO SE PODE AMAR E SER FELIZ AO MESMO TEMPO”.
 
Ninguém teria a menor dúvida de que a frase acima só poderia ter sido cunhada por NELSON RODRIGUES. É parte do título de um de seus livros, reunindo quarenta e três crônicas sobre cartas que lhe eram enviadas, ou melhor, endereçadas a MYRNA, pseudônimo do escritor, a grande maioria escrita por mulheres, embora alguns poucos homens também fossem seus missivistas. Em busca de seus conselhos, estavam as jandiras, juanitas, lúcias, kátias, elviras, marias das dores, stellas, antonietas, margaridas, elenas e tantas outras, que subscreviam as cartas, publicadas na coluna diária “MYRNA ESCREVE”, do jornal Diário da Noite (RJ), em 1949, durante seis meses, de março a outubro.
 
MYRNA respondia a cartas, que tratavam, maciçamente, de relações amorosas mal resolvidas, dando conselhos os mais estapafúrdios possíveis. O espetáculo, baseado nessas crônicas, tem como tema o maior de todos os sentimentos, ao mesmo tempo o mais complicado com o qual se possa lidar: o AMOR. Difícil é acreditar que os remetentes pudessem levar a sério as bizarras “orientações” da “conselheira sentimental”.
 
            Não foi a primeira vez que NELSON fez uso do recurso de se esconder por trás de um pseudônimo feminino, para escrever em jornais. Anteriormente, já havia alcançado assombrosa notoriedade, na pele de Suzana Flag, autora de folhetins de grande sucesso, publicados em O Jornal, órgão de imprensa de grande circulação no Rio de Janeiro de então.
 
 
 
 A personagem responde a ouvintes no programa de rádio
MYRNA também debochava de seus “ouvintes”.
 
 
Para o lançamento da coluna “MYRNA ESCREVE”, foi feito um amplo e inteligente trabalho de “marketing”, para a época, que girava em torno do mistério sobre a sua identidade. Sem imagens, evidentemente. Seria ela loura, morena, ruiva, negra; europeia, asiática, africana, nordestina; bonita, feia; alta, baixa; gorda, magra; jovem, velha, balzaquiana...? Como se isso tivesse alguma importância, para quem estava à procura de “conselhos”, para ser feliz.
 
Ainda que o grande escritor Ruy Castro, especialista em “escrever sobre a vida dos outros” e autor do livro “O Anjo Pornográfico”, biografia de NELSON RODRIGUES, afirme que as cartas eram verdadeiras, o fato de elas não terem sido preservadas, se, realmente, existiram, mais o fabuloso talento criativo de NELSON nos credenciam a dizer que tudo poderia ter sido, meramente, obra de ficção. Acredito nas duas teorias.
 
Na peça, que chegou ao Rio com a marca do sucesso, depois de três anos em cartaz, em São Paulo, em seis temporadas, em 2013, tendo, ainda, viajado pelo interior paulista, em 2014 e 2015, ELIAS ANDREATO, que também dirige o espetáculo, teve a brilhante ideia, ainda que não inédita, de, ao fazer a adaptação e o roteiro para o palco, transpor MYRNA, das páginas do jornal para um programa de rádio, do gênero “Fala, Que Eu Te Escuto”.
 
Num cenário tão simples quanto muito interessante – um estúdio de rádio – a personagem lê cartas, fazendo pequenas pausas, para tecer rápidos ou longos comentários “alfinetantes” (perdão, pelo neologismo) sobre os problemas dos remetentes, alguns dos quais preferindo ficar no anonimato total ou, também, escondendo-se por trás de um nome fictício, para, em seguida, terminada a leitura, desenvolver suas teorias sobre o amor e os relacionamentos, teorias das quais “até Deus duvida”.
 
 
 
 
 
 
            Ninguém perderia seu tempo, para escrever a MYRNA, apenas para dizer-lhe o quanto está feliz, com sua vida amorosa em dia e em prática. Não! Os que se “arriscam” a um conselho dela são pessoas que padecem do amor não correspondido, da insegurança no como saber amar, da incerteza de ter encontrado sua outra metade da laranja, na mesma dose de acidez e doçura correspondente à sua própria metade... É uma gente que conhece a dor-de-cotovelo, que foi abandonada, até na porta da igreja; gente que sente ciúmes, ama, excessiva e compulsivamente. Ou não.
 
Desfilam, ainda, pelo programa, os que abdicam do seu verdadeiro amor, para se casar com outrem, pelos mais diversos motivos, assim como quem sempre namorou homens bonitos e apaixonou-se por um feio. Há, ainda quem, após muitos anos de vida em comum, acaba, um belo dia, por descobrir que “o sonho acabou”, que não ama mais o marido, ou a esposa, e o que, hoje, para muito(a)s é resolvido com um simples “Foi bom enquanto durou. Vamos nos separar e reconstruir nossas vidas” virava, naquela época, o maior dos dramas, um pesadelo.
 
Também havia cartas em que alguém tinha a coragem de confessar, no ar, que amava dois homens ao mesmo tempo e as mulheres que sofriam, e não se perdoavam, como se a culpa fosse delas, por terem nascido muito feias.  E o homem que não abria mão de se casar com uma mulher virgem, que lhe fosse fiel “ad aeternum”? E os que reclamavam de suas mulheres, pelo fato de andarem desarrumadas, constantemente, em casa, mas que se enfeitavam, para sair ou quando recebiam convidados? E as várias reclamações, tanto de mulheres quanto de homens, na mesma proporção, sobre a indiferença que lhes era conferida pelos respectivos cônjuges: “Antes do casamento, me tratava de um jeito carinhoso; agora, mal olha pra mim.”?
 
 
 
 
 
 
            Para conquistar seu público, MYRNA alterna o tom dramático, com entonações românticas, de uma falsidade perceptível, não abrindo mão do humor sarcástico, da ironia e do tom fatalista. Ela teatraliza os seus comentários, age como uma radioatriz. Por vezes, abusa do autoritarismo: “Você vá ao encontro do seu marido!”. Faz questão de deixar bem claro que os problemas não são dela, que ela é uma pessoa “bem resolvida”: “Quem está em causa é você. Você sofre e basta.”.
 
            Um detalhe curioso, que notei e que serve, a meu juízo, para dar maior credibilidade à personagem, é o fato de, sempre que pode, fazer uso da primeira pessoa do plural, repetindo, como um mantra, “Nós, mulheres...”. Também serve para criar um clima de intimidade entre destinatária e remetentes.
 
 
 
 Myrna é um dos alteregos de Nelson Rodrigues
Acusadora.
 
 
MYRNA é uma personagem fascinante. Ao mesmo tempo em que simula saciar a sede de seus ouvintes, com um chumaço, embebido em fel, serve-lhes, logo em seguida, um generoso pote do mais doce e puro mel.
 
Sempre que tem oportunidade, e isto é sempre mesmo, em seus “conselhos”, MYRNA deixa bem clara a posição subalterna da mulher, cujo destino, segundo ela, é perdoar, sempre, principalmente os homens, não importando a quem: namorado, noivo, marido, filhos, netos, genros. São suas estas palavras: “Creio mesmo que, para a mulher, existe uma arte, uma sabedoria, realmente indispensáveis – a arte de não ver e a sabedoria de ignorar. Ao contrário do que se diz, vulgarmente, o melhor cego, ou cega, é aquela que não quer ver. Esta cegueira voluntária existe como autodefesa na vida da mulher”.
 
Precisamos de mais elementos para afirmar que MYRNA era uma grande inimiga das mulheres, com sua “sabedoria machista”? Para conferir: “Você é mulher, Juanita. E ai de nós! Para a mulher, é muito difícil conciliar o amor-próprio e o amor de um determinado homem”. E mais: “A personalidade da mulher só deve existir se não entrar em incompatibilidade com o esposo, pois personalidade é luxo da mulher que não gosta, que não tem nenhum homem, nenhum sentimento na sua vida. Chegado o amor, tudo muda. Que é o amor, para a mulher, senão uma abdicação contínua, um incessante abandono de suas características pessoais?”.
 
            A peça pode ser considerada, guardadas as devidas proporções e o propósito que levou à sua concepção, um tratado sócio-antropológico (Ou “antropo-sociológico”?), em que está em cheque a condição feminina, na sociedade, sob a ótica de quem, no fundo, renega a sua própria condição de fêmea, a personagem, firmando, talvez, o verdadeiro pensamento do autor, um homem.
 
 
 
 
 
 
            Conheçamos um pouco mais do pensamento de MYRNA:
 
 
 
“MYRNA SOU EU”
e MYRNA  é esta:
 
“Se cada um soubesse o que o outro faz dentro de quarto paredes, ninguém se cumprimentava”.
 
Quando eu tinha 17 anos, pensava do amor maravilhas. Depois, quando me apaixonei, descobri a mais estranha das verdades: não havia, entre o meu amor e a felicidade, a menor relação. Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo”.
 
“Você sabe qual é o tremendo erro da maioria absoluta das mulheres? Achar que o fato de amar implica, obrigatoriamente, a felicidade. Quem ama pensa que vai ser felicíssimo e estranha qualquer espécie de sofrimento. É exato que os amores têm seus êxtases, deslumbramentos, momentos perfeitos, musicais etc., Mas eu disse ‘momentos’, e não 24 horas de cada dia”.
 
“Quando uma mulher apaixonada se queixa, eu tenho vontade de fazer-lhe esta pergunta: Não lhe basta amar? Você quer, ainda por cima, ser feliz?"
 
“O destino, quando concede a graça inefável do amor, subtrai uma série de outras coisas. Antes de mais nada, o sossego”.
 
“Sofrer pela criatura amada não é um mal; é quase um bem. Você conhece tristezas mais lindas, mais inspiradoras, do que as tristezas do amor?”.
 
“Não há pior solidão do que estar mal-acompanhado”.
 
“Sofrimento, maior ou menor, é inseparável do amor. Impossível amar sem sofrer. E, quando não há motivos concretos, a pessoa os inventa”.
 
“Em amor, ninguém tem o direito de exigir nada”. O único direito que se tem é o de aceitar aquilo que a outra pessoa dá, de todo coração e com um máximo de espontaneidade”.
“Virtude assim, imoderada, passa a ser defeito, e defeito dos mais graves”.
“Falta a você o frêmito, o ímpeto, o fervor das enamoradas perfeitas”.
“A mulher pode se privar de pão; de amor, nunca!”.
Bonito é o homem de quem a gente gosta”.
            Acredite, Elvira. O amor é eterno. Só acaba quando não era amor”.
            Ah! Minha filha! Se os homens só namorassem a criatura amada, só namorassem em caso de amor, haveria no mundo uma meia dúzia de namorados”.
            Concebo o inferno como uma sala, confortável, tranquila e moderna, e, dentro dela, sentados, um homem e uma mulher, que não se gostam, e estão condenados a viver, perpetuamente, juntos”.
            Aceite meu conselho: deixe o pintinho no galinheiro. E, quando ele se transformar em galinha, faça uma boa canja e ofereça ao seu noivo, em uma tocante e simbólica homenagem. Este ato quererá dizer que jamais deixará que, entre vocês dois, se interponha qualquer espécie de pinto”.
“Imaginem se todos nós fôssemos, em amor, bastante lúcidos! Então, pensaríamos, minuciosamente, em tudo, no preço do feijão, do arroz, no custo de vida cada vez mais elevado, no colégio das crianças...”.
Mas não é com estes raciocínios que se faz a vida, que se perpetua a espécie humana! Daí porque, na hora do amor, precisamos ser um pouco irresponsáveis”.
 
"Uma mulher que, tendo dinheiro, vive com uma única combinação - ou duas - está se condenando a uma triste sorte amorosa".
 
"Pobre menina! Acredita que uma esposa possa se conservar irredutível diante do gosto e dos pedidos ou exigências do marido. Não, não pode, Antonieta!".
 
"Eu sei que existem mulheres irredutíveis, que jamais abdicaram. Mas essas não passam de frustradas. Tiveram um grande sentimento e fracassaram".
 
"Maria das Dores faz a seguinte pergunta: 'Devo andar bem-vestida dentro de casa, para meu marido? Ou não precisa?' Preliminarmente, devo observar o seguinte: nenhuma mulher tem o direito de formular semelhante pergunta!".
 
"O fato de você ter filhos, de cozinhar e de lavar as camisas do marido não a obriga a ser desinteressante, física e espiritualmente desinteressante".
 
"Ora, o pior de todos os infernos - se é que existem vários infernos - é o tédio".
 
"A maioria absoluta das mulheres pensa que é bonita. E vive, envelhece e morre nessa ilusão".
 
"Os amorosos que têm confiança não são amorosos. Quem ama desconfia, sempre”.
 
"O amor de uma mulher, quase sempre, faz mal à outra, sobretudo se esta não teve ou não tem um sentimento parecido. A coisa mais fácil e comum, no mundo, é uma amiga sugerir que acabemos com os nossos romances. Uma amiga é intransigente, feroz, agressiva. Opina: 'Eu não aturaria isso!' Aturaria, sim! Aturaria isso e coisas piores!".
 
 
 
Myrna Sou Eu
 
 
 
            O trabalho de composição de personagem, do grande ator NÍLTON BICUDO é excelente, elogiável, sob todos os aspectos. Ele assume uma feminilidade tão natural, quer nas expressões corporais e faciais, quer na voz, que não deixa a menor dúvida de que estamos diante de uma mulher, sofisticada, que vive, a despeito de estar num programa de rádio, preocupada com a aparência, ajeitando o cabelo e retocando a maquiagem, vestida, com muito bom gosto, diga-se de passagem, por um belíssimo “tailleur”, assinado por FÁBIO NAMATAME.
 
 
 
Figurino impecável.
 
 
 
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Postura impecável.
 
 
 
            Com uma precisão cirúrgica, NÍLTON oscila entre o extremo da doçura ao máximo do exaspero, sem, jamais perder o tom da feminilidade. Poucas vezes, vi, em cena, um ator com uma dicção tão perfeita, dizendo um texto extremamente bem escrito, com um vocabulário refinado, sem ser pernóstico. Trabalho irretocável, perfeito, de um grande ator!
 
            O espetáculo poderia se tornar (Quem sabe?) monótono, por melhor que sejam o texto e a atuação de BICUDO, se não houvesse algumas pausas, uma inteligente ideia da direção, correspondentes aos intervalos para os comerciais. Estes existem, de verdade, sob a forma de curiosos e engraçados “jingles” da época, para a maioria dos quais eu fiz um silencioso coro, o que me faz, sem nenhum problema, entregar a minha idade.
 
            Também, para marcar os intervalos e algumas cenas do espetáculo, há uma boa trilha sonora original, composta por JONATAN HAROLD.
 
            O cenário, de ELIAS ANDREATO, como já foi mencionado, reproduz um estúdio de rádio, com um enorme painel, ao fundo; na verdade, um mosaico de anatigas propagandas, em imagens ampliadas. Duas enormes persianas, pendentes do teto, nas duas laterais. Ao centro, uma mesa, com um microfone, um telephone e alguns objetos de uso pessoal, da personagem, além, é claro, das cartas, meticulosamente arrumadas, umas sobre as outras, na ordem em que serão comentadas.
 
 
 
 
 

 
 
Também merecem crédito o ótimo visagismo de ALLEX ANTÔINIO e a iluminação, de ADRIANO TOSTA, que não apresenta muitas variações, porque não há necessidade disso.
 
 
 
 

FICHA TÉCNICA:
Texto: Nelson Rodrigues
Adaptação, Roteiro e Direção: Elias Andreato
Diretor Assistente: André Acioli
 
Interpretação: Nílton Bicudo
 
Trilha Sonora Composta: Jonatan Harold
Figurino: Fábio Namatame
Visagismo: Allex Antônio
Cenografia: Elias Andreato
Iluminação: Adriano Tosta
Fotos: João Caldas
Projeto Gráfico: Vicka Suarez
Produção: Solo Entretenimento
Assessoria de Imprensa: Lu Nabuco Assessoria em Comunicação 
 
 
Exasperando-se.
 
 
            Assim, MYRNA iniciava cada programa: “MYRNA sou eu. Entretanto, não é MYRNA quem está em causa. Quem está em causa é você. Sim, leitora que nunca vi. Eu lhe direi a verdade, só a verdade, presente e futura. E, se quiser saber quem é MYRNA, responderei: Apenas uma mulher.”.
 
            Assim termino eu estes comentários: Creio que o espetáculo fará, no Rio de Janeiro, uma bela carreira, por todos os cuidados que tiveram os envolvidos no projeto, nos quais incluo, também, ANDRÉ ACIOLI, que atuou na assistência de direção.
 
            Se está à procura de uma boa diversão, um bom espetáculo de TEATRO, não deixe de assistir a  “MYRNA SOU EU”!
 
 
Nílton (Myrna) Bicudo.
 
 
 

SERVIÇO:
Temporada: de 06 de abril a 25 de maio.
Local: Teatro Poeira - R. São João Batista, 104 – Botafogo – Rio de Janeiro.
Dias e Horários: Às 3ªs e 4ªs feiras, às 21h.
Duração: 70 minutos.
Classificação Etária: 12 anos. 
Valor dos Ingressos: R$ 50,00 (inteira) e R$ 25,00 (meia-entrada).
Vendas: ingresso.com e Bilheteria (de 3ª feira a sábado, das 15h às 21h, e domingo, das 15h às 19h.
Telefone da Bilheteria: (21) 2537-8053.
Clientes Porto Seguro + 1 acompanhante têm 50% de desconto.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
(FOTOS: JOÃO CALDAS.)

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