GUIA
AFETIVO
DA
PERIFERIA
(O DURO CAMINHO
DE SANTA CRUZ A
IPANEMA
ou
COMO SOBREVIVI,
NA ADVERSIDADE,
E SOU FELIZ.)
Muitas peças de TEATRO são adaptações de livros.
Nem todos rendem um bom resultado, principalmente quando os dramaturgos não são
os seus próprios escritores. Não é o caso de “GUIA AFETIVO DE PERIFERIA”, baseado no livro
homônimo de MARCUS FAUSTINI, sua primeira publicação, adaptado, para os
palcos, pelo próprio autor.
Capa do livro.
O espetáculo cumpriu uma,
infelizmente, curtíssima temporada, porém de grande sucesso, no Teatro
Serrador, encerrada no dia 9 próximo passado, porém merecia ficar muito tempo em
cartaz, para que muito mais pessoas tivessem a oportunidade de assistir a um
dos melhores espetáculos, até agora, encenados, no Rio de Janeiro, neste ano de
2016.
Felizmente, ainda que seja muito pouco, a peça fará mais três
apresentações, no Teatro Café Pequeno, nos dias 29 e 30 de abril e 1º de maio
próximos. Fiquem atentos!
O jovem exibe o seu troféu.
SINOPSE:
Misturando texto
e projeções, o espetáculo revela as memórias de um jovem rapaz da periferia
do Rio de Janeiro e suas
experiências pela cidade, entre os anos 80 e 90.
No palco, esse jovem conta a sua
história, escrevendo um livro. As imagens, as baganas de pensamento e
quinquilharias ocupam seu quarto - seu mundo.
Ele encena, sozinho, suas memórias,
prazerosamente, e se provoca, de forma irônica, refletindo sobre suas mazelas e
as possibilidades que lhe são oferecidas, enfocando o trabalho, o amor e a
arte.
João Pedro Zappa.
Desde que foi
lançado, em 2009, o livro “Guia Afetivo da Periferia” passou a
ser considerado, por consagrados críticos literários, como um marco da
literatura da periferia no Brasil, servindo de estudo para diversos trabalhos
acadêmicos e artigos.
Não há como
negar que, no texto, há dois protagonistas, que, praticamente, se
fundem num só: o jovem rapaz, que
não tem nome, como a representar milhares e milhares de pessoas, anônimas, como
ele, e o Rio de Janeiro. Ambos
dialogam, o tempo inteiro, utilizando uma linguagem comum aos dois, a linguagem
do coração.
A história é contada em primeira pessoa, uma vez
que, por se tratar de uma “autobiografia”, o autor do texto se
coloca como personagem da própria obra, revelando uma radiografia da cidade, o
seu cotidiano, ao qual se adapta o cotidiano do personagem, como quando fala do
grande sacrifício para se deslocar de casa ao trabalho, e vice-versa, uma saga
para heróis, vivida, diariamente, por milhares de outras pessoas.
Filho de migrantes
nordestinos, FAUSTINI nasceu e
passou a infância na Baixada Fluminense,
mudando-se, depois, para o distante bairro de Santa Cruz, onde viveu na Comunidade
do Cesarão. Na peça, há relatos, também, de fatos passados em outros bairros
periféricos, lugares como Madureira,
Engenho de Dentro, Paquetá, Favela da Maré e Jacarezinho,
além, é claro, do Centro, de Laranjeiras, do Flamengo e da cobiçada e misteriosa Ipanema.
Por vários motivos, o espetáculo me emocionou muito, arrancando-me
risos e lágrimas, porquanto me identifiquei com ele, da primeira à última fala,
do acender do primeiro “spotlight” ao “black-out” final, já que também fui
nascido e criado no subúrbio, não tão distante do Centro, e conheci bem o dia a
dia da periferia, ainda muito jovem, trabalhando, como professor, em escolas de
Campo Grande, Bangu, Senador Camará, São Gonçalo...
Também, como aluno do antigo Conservatório Nacional de Teatro (atual UNI-RIO), que funcionava no prédio onde funcionara a UNE, na Praia do Flamengo, ao ver a peça, vesti
o figurino do personagem, quando ele falava da aventura de sair, tarde da
noite, da Escola de Teatro Martins Pena,
para chegar, só na madrugada do outro dia, a casa, como acontecia comigo,
caminhando, sozinho e solitário, do Flamengo até o Passeio Público, desviando-me de prostitutas e travestis, sempre a oferecer seus "préstimos", lutando contra o sono e o cansaço; ele, no trem; eu, no ônibus.
Caos.
Só não passei, como foi o caso dele, pelas experiências de
“empregos” como o de Papai Noel, no Carrefour de São Gonçalo, e atendente, em
lanchonete de cemitério, até chegar a entregador de lentes de contato da
Bausch-Lomb, culminando com o “nirvana” de “office boy” do Banco do Brasil,
motivo de grande orgulho para a família, que desejava, para ele, apenas “o
bem”, “um bom emprego”, não “esse negócio de teatro, que não dá camisa a
ninguém”.
O texto é escrito com tal naturalismo,
com tanta verdade, apoiando-se em detalhes inimagináveis, e interpretado, de
forma magistral, por JOÃO PEDRO ZAPPA,
que embarcamos na história, como se tudo aquilo ali fosse a própria realidade
do ator, como se o personagem e o JOÃO
fossem uma entidade. Ele usa a periferia como um forte referencial, o maior de
todos, para um autodescobrimento, um
crescer como homem. As referências periféricas e as centrais se somam, para
forjar um cidadão.
Algumas poucas
lembranças, presentes no texto,
fizeram parte, também, do meu passado, da minha história, e, certamente, de
muitos que assistiram ao espetáculo, como o sacolé de
Nescau; o guaraná Convenção, muito mais barato (e, por isso mesmo, de péssima
qualidade) que as marcas famosas, e o cachorro-quente, que também atende pela “alcunha”
de “podrão”, estes dois últimos, encontrados na Praça do Curral Falso, em Santa
Cruz); o picolé Dragão Chinês; o Gamadinho; o amendoim Nakaiama, que, tantas
vezes, distraiu o meu estômago; a carne de sol frita da Galega, na Maré; o
conhaque barato, nos botecos da Cruz Vermelha; o Angu do Gomes (comi muito), na
madrugada da Praça XV; e passeios pela Rua do Lavradio, sua preferida. A minha
era a Rua do Ouvidor; hoje, a minha preferência coincide com a dele.
Não conhecendo, ainda, o livro – espero fazê-lo muito em breve – confesso que, mesmo tendo lido um
breve comentário sobre a peça, antes de ter assistido a ela, não sabia bem o
que me esperava. Pelo título, interessantíssimo e muito próprio, diga-se de
passagem, pensei que o texto se
propusesse a mostrar um guia (não para orientar turistas) de locais que
tivessem importância pessoal para alguém, a partir do adjetivo “afetivo”, que lhe é agregado. Sim, é quase
isso, mas não é bem isso. O vocábulo “guia”
está bem empregado, mas o adjetivo “afetivo”
está mais ainda, uma vez que o que conta, na verdade, é a relação afetiva do
personagem com determinados locais, nem sempre, pontos turísticos ou pitorescos
da Cidade (ex)Maravilhosa, a partir
das lembranças de bons ou maus momentos, vividos em cada um dos pontos citados.
Como um animal enjaulado.
“(...) Assim, passei a mapear o centro do
Rio de Janeiro, de acordo com as minhas possibilidades de sobrevivência.
Invariavelmente, comia em pé, numa padaria da Rua da Carioca, que oferecia um
prato feito, num prato de sobremesa. Era a ‘minirrapidinha’. Você podia colocar
tudo o que coubesse naquele prato.(...)”.
Dois olhares para uma mesma (grande) cena.
O texto é ágil, muito bem escrito, em linguagem simples e próxima à
realidade da maioria dos falantes da nossa língua, e não segue nenhuma
cronologia temporal. O personagem ganha o direito de se expressar de forma
livre, espontânea, à medida que as cenas vêm à sua memória, uma puxando a outra,
envolvendo questões ligadas à política, à educação, à religião (da sua
família), falando da paixão, da experiência do primeiro beijo...
Para escrever seu livro/peça, FAUSTINI, além de ter utilizado sua
memória afetiva, apelou para anotações antigas, fotos, objetos pessoais, ainda
guardados, pequenos textos, escritos em cadernos amarelados pelo tempo,
gravações e outros recursos de arquivo físico.
Quando falou de sua primeira
incursão ao Centro, descortinou-se,
claramente, na minha mente, a minha primeira experiência de deslocamento,
sozinho, aos 12 anos de idade, no velho 340
(Castelo-Vila da Penha), do subúrbio à Rua Sete de Setembro, para resolver
um problema para o meu pai, já que não havia ninguém que pudesse fazê-lo. Como
me senti importante naquele dia! E que medo de fracassar!
Atualmente, FAUSTINI é colunista do jornal “O Globo”, mas também é formado em direção de teatro pela Escola Martins Pena. Durante os anos
90, dirigiu peças elogiadas, como “Capitu”
e “A Hora da Estrela”, quando,
também, ministrou oficinas de teatro no Cesarão.
No início da primeira década do atual século, seu enorme interesse pela cultura
popular, da periferia, fê-lo enveredar pelo cinema, assinando excelentes
documentários, como “Chão de estrelas”
(2002) e “Carnaval, Bexiga, Funk e Sombrinha”
(2006). Fundou, ainda, a Escola
Livre de Teatro, em Santa Cruz,
inaugurou a Escola Livre de Cinema,
em Nova Iguaçu, e, em 2011,
a Escola Livre da
Palavra, na Lapa. As
experiências de FAUSTINI com a
cultura da periferia e as discussões levantadas a partir dela estão presentes
na peça “GUIA AFETIVO DA PERIFERIA”.
Que brasileiro digno do nosso respeito e orgulho é MARCUS FAUSTINI!
Eu só preciso de um palco.
Terminada a
peça, não me restou outra impressão, senão a de que não poderia ter sido outro
ator, que não JOÃO PEDRO ZAPPA, a
encarnar o jovem personagem. JOÃO é
um dos melhores atores de sua geração, já tendo provado isso em tantos outros
espetáculos, apesar de jovem e de uma carreira, relativamente, curta. Sua
atuação em “A Importância de Ser
Perfeito”, dirigida, genialmente, por Daniel
Herz, dividindo o palco com nomes consagrados do Teatro Brasileiro, já
deixava bem clara sua vocação para o estrelato, no melhor sentido da palavra.
No preparo para a peça, o chamado "laboratório", JOÃO percorreu
alguns locais, durante o processo criativo, e, assim como o personagem,
descobriu pontos da cidade que não conhecia, fazendo o trajeto contrário,
partindo da Zona Sul para a Zona Norte, deparando-se com espaços estranhos à sua realidade, como praças,
barcas, ônibus, camelôs e estação de trem, percebendo as peculiaridades,
semelhanças e diferenças com os locais que costuma frequentar.
Sua
atuação é brilhante, comovente, convincente. Desperta um afeto no espectador,
cria uma total empatia com o público, que, longe de despertar piedade, o que
sentimos é uma grande vontade de abraçá-lo e dar-lhe um afetuoso beijo; de avô,
de pai, de irmão, de amigo...
A direção do espetáculo, também da
responsabilidade de MARCUS FAUSTINI,
é ótima. Fazendo uso de sua experiência no cinema, acertou em cheio, quando
entremeia as ações ao vivo com trechos de filmes, inclusive algumas cenas do
seu, já citado, “Carnaval, Bexiga, Funk
e Sombrinha”, revelando partes das memórias e afetos de diversos pontos da
cidade. Essas projeções, além de interessantes e de excelente qualidade
artística, ajudam o ator a recuperar um pouco de fôlego, já que é muito exigido,
fisicamente, em cena. Louvo sua coragem de fazer o espetáculo, no dia em que
assisti a ele, com um deslocamento, se não estou enganado, de uma das clavículas,
dando conta do recado, sem demonstrar nem esboçar dor ou maior sacrifício ou desconforto físico.
Para o autor e diretor do espetáculo, é fundamental mostrar e aproximar as
relações existentes no território carioca na cena do teatro da cidade. “A
peça é o meu afeto pelo Rio, sou fruto dele da mesma forma que o personagem”,
afirma FAUSTINI.
A ideia de
fazer a peça para um reduzido público, que se acomoda no palco do teatro, a uma
pequena distância do ator, é fantástica. Cria uma intimidade e cumplicidade com
o personagem, o qual parece conversar com cada um dos espectadores, expondo,
sem nenhum pudor, as suas intimidades.
Considero um
dos pontos mais altos desta encenação, o magnífico cenário, criado por FERNANDO
MELO DA COSTA, em forma de um genial “caos”, como o universo do personagem,
reunindo, no palco, muitos arquivos de aço, de vários tamanhos, de onde o
personagem vai retirando suas memórias, em forma de objetos, além de muitas
caixas de som e aparelhos velhos e obsoletos, como um ventilador e uma máquina
de escrever, ambos azuis. Na parede do fundo, uma tela de cinema, na qual
trechos da lembranças do personagem são projetadas. “Todas essas quinquilharias ocupam seu
quarto e são organizadas, na sua cabeça, como uma espécie de filme futurista e
precário”, como está escrito no “release”
da peça, enviado por DIANA CAVALCANTI,
da RPM COMUNICAÇÃO.
Outro
elemento que contribui, sobremaneira, para a bela montagem é a luz, como sempre, impecável, do mestre AURÉLIO DE SIMONI.
O figurino inicial, um macacão azul, uniforme
do “office boy” do Banco do Brasil,
com direito a chachá e carteira profissional, assinada, no bolso, assinado por MARCUS
FAUSTINI, vai dando lugar a outras roupas, ao longo do espetáculo, mais
simples e confortáveis. Todas as variações são muito interessantes.
Saí do Teatro Serrador, naquela noite
de 6ª feira, depois de me deliciar com um rápido papo com o queridíssimo JOÃO,
na porta do teatro, enquanto ele aguardava a chegada do transporte que o levaria para um merecido descanso, em sua casa, e fui caminhando até a estação do metrô (Cinelândia), não muito distante do teatro, pensando na
letra de uma canção, de Vinícius de Moraes, que ganhou melodia de Chico
Buarque: “Gente Humilde”:
GENTE HUMILDE
(Vinícius de Moraes e
Chico Buarque)
Tem certos dias
Em que eu penso em minha gente
E sinto assim
Todo o meu peito se apertar
Porque parece
Que acontece de repente
Feito um desejo de eu viver
Sem me notar
Igual a como
Quando eu passo no subúrbio
Eu muito bem
Vindo de trem de algum lugar
E aí me dá
Como uma inveja dessa gente
Que vai em frente
Sem nem ter com quem contar
Em que eu penso em minha gente
E sinto assim
Todo o meu peito se apertar
Porque parece
Que acontece de repente
Feito um desejo de eu viver
Sem me notar
Igual a como
Quando eu passo no subúrbio
Eu muito bem
Vindo de trem de algum lugar
E aí me dá
Como uma inveja dessa gente
Que vai em frente
Sem nem ter com quem contar
São casas simples
Com cadeiras na calçada
E na fachada
Escrito em cima que é um “lar”
Pela varanda
Flores tristes e baldias
Como a alegria
Que não tem onde encostar
E aí me dá uma tristeza
No meu peito
Feito um despeito
De eu não ter como lutar
E eu que não creio
Peço a Deus por minha gente
É gente humilde
Que vontade de chorar
Com cadeiras na calçada
E na fachada
Escrito em cima que é um “lar”
Pela varanda
Flores tristes e baldias
Como a alegria
Que não tem onde encostar
E aí me dá uma tristeza
No meu peito
Feito um despeito
De eu não ter como lutar
E eu que não creio
Peço a Deus por minha gente
É gente humilde
Que vontade de chorar
E não fiquei
só na vontade. Chorei mesmo, por dentro, com vergonha de ser notado, sem saber
o porquê. Mas, de tristeza, tenho a certeza de que não era.
OBRIGADO, MARCUS FAUSTINI!
OBRIGADO, JOÃO PEDRO!
OBRIGADO!
MUITO, MUITO OBRIGADO!
FICHA TÉCNICA:
Textos (Adaptação) - do livro “Guia
Afetivo da Periferia”, de Marcus Faustini: Marcus Faustini
Direção: Marcus Faustini
Atuação: João Pedro Zappa
Cenografia: Fernando Mello da Costa
Iluminação: Aurélio de Simoni
Figurinos: Marcus Faustini
Assistentes de Direção: Douglas
Resende e Veruska Delfino
Estágio de Direção e Contrarregra:
Diego Migliorin
Direção dos Vídeos: Marcus Faustini
Edição dos Vídeos: Gregório Mariz
Trilha dos Vídeos: Eduardo Guedes e
Gregório Mariz
Assessoria de Imprensa: RPM
Comunicação
Com o querido João Pedro Zappa.
(FOTOS: LEO AVERSA.)
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