quinta-feira, 19 de março de 2015


UM PAI (PUZZLE)

 

 

 

 

(É PRECISO RASGAR O CORAÇÃO, PARA CICATRIZAR FERIDAS.)

 

 

 

 



 

 

 

 
            Texto extraído do programa da peça:
 
“Esta peça não é um romance ou uma (auto)biografia romanceada. 
Não tem nada de ficção. 
Nela não será encontrado nenhum detalhe inventado, a fim de embelezar a narração ou encorpar o texto. 
Meu objetivo foi outro: fazer surgir, na minha memória, tudo o que se passou de importante, de forte – trágico ou cômico – entre meu pai e eu. 
Falar do pai que Jaques Lacan foi para mim, e não do homem em geral; muito menos do psicanalista. 
Trata-se de uma obra puramente subjetiva, fundada tanto nas minhas lembranças daquela época quanto na visão que hoje tenho das coisas.”
 
(SIBYLLE LACAN.  Um Père.  Ed. Gallimard. 1997.)
 

 

 

 

 


Um belo espetáculo também do ponto de vista plástico.

 

 

            Um comovente, belo e tocante espetáculo é UM PAI (PUZZLE), em cartaz no Teatro II, do CCBB, Rio de Janeiro.

            BRAVO!”  É o mínimo que se poderia gritar, ao final da peça, mais de uma vez, entre demorados aplausos, de pé, como eu fiz, tomado de muita emoção, seguido por, praticamente, todos os que faziam parte dos convidados para aquela sessão especial.

            No palco, com poucos recursos cênicos, umas caixas (“pufes”) quadradas, pretas, e uma grande caixa de acrílico transparente, com água, ao fundo, usando um figurino discreto e sob uma luz magnífica, ANA BEATRIZ NOGUEIRA, mais uma vez, prova por que é considerada uma das melhores atrizes de sua geração.

            O primeiro contato que tive com o seu trabalho não foi no TEATRO, e sim no filme Vera, filmado em 1985 e lançado em 1987, o qual lhe rendeu o prêmio de Melhor Atriz, no Festival de Brasília (Troféu Candango), e o Urso de Prata, no Festival de Berlim.  Já foi o suficiente para que eu passasse a acompanhar sua rica trajetória de atriz.

O filme, dirigido e escrito por Sérgio Toledo, é baseado na vida de Anderson Herzer, autor do livro A QUEDA PARA O ALTO, que conta a história de Vera, uma interna da Febem, transexual e poeta, dos maus-tratos no internato ao suicídio, em 1982, passando pela fase em que saiu da FEBEM. pelas mãos do (então) deputado Eduardo Suplicy que, sensibilizado com seu talento, deu-lhe apoio e conseguiu-lhe emprego.

 

 

 

 


Bom gosto e elegância o tempo inteiro.

 

 

Segundo o ”release” fornecido pela produção do espetáculo, objeto destes comentários, há seis anos, a atriz teve o seu primeiro contato com o livro “Um pai” (“Un père – Puzzle”, no original), escrito por SIBYLLE LACAN, filha do famoso psicanalista francês Jacques Lacan. Como se fosse um “puzzle”, um simples jogo de quebra-cabeças, o texto, fragmentado, expõe as memórias de uma relação entre pai e filha.  São lembranças, alegres e tristes, de diferentes momentos da vida da escritora.  

Encantada com a obra, a atriz decidiu levar o depoimento comovente de SIBYLLE (1940 – 2013) para o teatro, interpretando a própria autora.

Escrito em uma única noite, o livro foi lançado na França, em 1994, e, depois, em diversos países, incluindo o Brasil.

“É um grito de amor. SIBYLLE é pura demanda não atendida.  ‘Sou o fruto do desespero; alguns dirão do desejo, mas, nesses, eu não acredito’.  Era assim que ela se autodefinia”, conta ANA BEATRIZ NOGUEIRA, que esperou, pacientemente, cinco anos, para adquirir os direitos da obra, que lhe foram concedidos pela própria autora, em 2013 – ano em que morreu, em Paris, aos 73 anos, de overdose de remédios.

“Ela não queria que inventássemos coisas para o texto. Podíamos cortar, mas não acrescentar informações”, explica a atriz, que convidou o cineasta EVALDO MOCARZEL para adaptar a obra para o TEATRO.

A direção de “UM PAI (PUZZLE)” ficou a cargo de dois amigos e parceiros de trabalhos anteriores, GUILHERME LEME GARCIA e VERA HOLTZ, entre os quais se percebe uma estreita simbiose, com a qual lucram os que têm o prazer de assistir a um belo trabalho de direção.

 

 

 




“Fragmentos” ("PUZZLE").

 

 

 

            É impossível que alguém não se veja representado por ANA/SIBYLLE, já que a temática/problemática da peça faz parte da vida de qualquer anônimo.  É universal e atemporal.  Todos já tiveram, ou ainda têm, pendengas afetivas a resolver com entes queridos ou amigos.  Faz parte da arte de viver.

            O texto é lindo, sensível, de uma delicadeza e sutileza invejáveis, de um lirismo ímpar, realçados pelo talento da atriz, que, mergulhada na emoção, sabe explorar, com variadas inflexões e pausas, milimetricamente dispostas ao longo da “conversa” com o público, tudo o que vai na alma da filha rejeitada, proscrita, indesejável: frustração, frustração, frustração...; dor, dor, dor...; vazio, vazio, vazio...; paixão, paixão, paixão...; mágoa, mágoa, mágoa...; ressentimento, ressentimento, ressentimento...

            O que doía forte, em SIBYLLE, além da ausência física do pai e de seu desinteresse por ela, era a consciência da sua inferioridade e a de seus dois irmãos, Caroline e Thibault, diante da sua meia-irmã, Judith, filha do segundo casamento de Lacan, a quem o pai se dedicava inteiramente, desprezando e ignorando os outros três.  Isso é revelado logo no início do texto: “Quando eu nasci, meu pai não estava mais conosco.  Até poderia dizer que, quando fui concebida, ele já estava em outro lugar (...).  Sou o fruto do desespero.  Alguns dirão que sou fruto do desejo, mas não creio nisso.”

            Quanto à questão do sentimento de inferioridade e, ao mesmo tempo, de admiração com relação a Judith, em outro trecho, revela SIBYLLE a insegurança ligada à predileção do pai por aquela: “Meu primeiro encontro com Judith me arrasou. Ela era tão amável, tão perfeita... e eu, tão desajeitada, tão inábil.  Ela era a socialidade, a descontração; eu, a camponesa do Danúbio...”.

            Monólogo é um tipo de espetáculo que afasta muita gente dos teatros.  São, genericamente, ligados à monotonia, o que, na maioria das vezes, não corresponde à verdade, como ocorre neste espetáculo. 

Ainda mais devido à temática, a peça tinha tudo para ser um “ranço” só, além de deixar a plateia deprimida.  Não, isso não ocorre.  Não há como o espectador deixar de se emocionar, de se envolver, com o drama de SIBYLLE, porém, tudo é dito de forma tão leve, num tom confessional de cumplicidade com o público, que os 60 minutos de ação passam num ritmo que faz com que o tempo cronológico se torne imperceptível e as pessoas deixem o teatro tristes, é verdade, compartilhando os sentimentos da protagonista, mas não deprimidas.

MANECO QUINDERÉ nos brinda com mais um de seus brilhantes trabalhos de iluminação, economizando na claridade, reservando-a para destacar ângulos da atriz, em determinadas falas de relevada importância, como na última cena, em que, de forma genial, a direção encontrou uma resolução para fazer com que SIBYLLE pudesse tocar a lápide de seu idolatrado pai (Ou seria o profissional?), ela que foi proibida de vê-lo em seu leito de morte e de ir ao seu velório. 

Pouparei os leitores de detalhes da cena, para não lhes roubar a singela e linda surpresa, único momento em que a filha rejeitada teve a “sua certeza” de que estava sendo ouvida pelo desnaturado pai: “Eu te amo.  Você é meu pai.  Você sabe.”.

            Ajustam-se, perfeitamente, à proposta do espetáculo o ótimo cenário, de MARCELO LIPIANI e o figurino, de MARCELO OLINTO.

 

 

 


Cenário.

 

 
            Foi ótima a escolha de ZÉLIA DUNCAN, para se encarregar da direção musical da peça, assim como da trilha sonora, esta com ANDRÉA ZENI.  O resultado é um belo trabalho de apoio ao texto.
           

 

 


Preparando para a cena final.

 

 

Para o mundo, Lacan era “O” cientista, psicanalista, genial profissional.  Para SIBYLLE, era apenas “UM”, pai.  Indefinido, volátil, herói virtual...

Nunca eu poderia imaginar que um homem como o festejado psicanalista pudesse ter feito tanto mal a uma criatura, sua filha legítima.  Será que ele tinha noção disso? 

E a gente pagando caro para ser analisado...

 

UM PAI (PUZZLE) é um dos bons espetáculos da atual safra, que merece ser visto, para deleite e aprendizado de como se faz um bom TEATRO neste país.

 

 

 

 
FICHA TÉCNICA:
 
Elenco: Ana Beatriz Nogueira
 
Texto: Sibylle Lacan
 
Adaptação: Evaldo Mocarzel
 
Tradução: Ângela Leite Lopes
 
Direção: Vera Holtz e Guilherme Leme Garcia Garcia 
 
Direção Musical: Zélia Duncan
 
Trilha Sonora: Zélia Duncan e Andrea Zeni  (A música “Les Tendre Dangereux Visage De L’amour” é tema original de Lucina, com acordeon, teclado e gravação de Léo Brandão e direção musical, voz e violão de Zélia Duncan)
 
Assistente de Trilha Sonora: Joyce Santiago
 
Iluminação: Maneco Quinderé
 
Cenário: Marcelo Lipiani
 
Figurino: Marcelo Olinto
 
Visagismo: Adriana Alves e Sheila Reis
 
Fotos: Marcelo Correa 
 
Direção de Produção: Sílvia Rezende
 
Realização: Trocadilhos 1000 (Ana Beatriz Nogueira)
 
Assessoria de Imprensa: Paula Catunda  e Fernanda Lacombe
 
 

 

 

 
SERVIÇO:
 
Temporada: Até 3/5/2015
 
Dia/Horário: sextas-feiras, sábados e domingos, às 19h30min
 
Local: Centro Cultural Banco do Brasil – Rio de Janeiro – Teatro II
 
Endereço: Rua Primeiro de Março, 66 – Centro – Rio de Janeiro (RJ)
 
Ingresso: R$10,00 (inteira) / R$5,00 (meia)
 
Duração do Espetáculo: 60 minutos
 
Gênero: Drama
 
Classificação: Não recomendado para menores de 14 anos
 

 

 

 

 


Enfim, eu te toco.

 

 

 

 

(FOTOS: MARCELO CORREA)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Um comentário:

  1. São 60 minutos de puro prazer, os quais são lindamente relatados em sua magnifica resenha! Parabéns duplo!

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