AUTOBIOGRAFIA AUTORIZADA
(DOCES LEMBRANÇAS
DE UM PASSADO; OU MELHOR, DE DOIS: O DELE E O MEU.)
Que coisa linda! Emocionante!
Visceral!
Um homem, um grande
ator, uma “celebridade global”, resolve subir ao palco e se expor, da forma
mais lírica, delicada, suave, pura, verdadeira, com uma total humildade, para
comemorar 40 anos de excelentes serviços prestados ao TEATRO BRASILEIRO.
Falo de PAULO BETTI, que reuniu seus escritos
em artigos semanais para o “Jornal
Cruzeiro do Sul”, de Sorocaba, durante sua adolescência, suas memórias,
tudo o que guardou de sua infância e escreveu um roteiro (Nem considero uma
peça de teatro, em forma de monólogo; é uma conversa com o público), para
contar sua trajetória de 62 anos de idade; ou melhor, ele só vai até, mais ou
menos, um terço dela. Na verdade, o
espetáculo vinha sendo costurado há muito tempo, pois, entre 1980 e 1992, o
ator escreveu, compulsivamente, em cadernos, além dos já citados textos do
jornal de Sorocaba, espaço que encerrou em 2010.
Voltando à infância,
em frente à velha casa em que viveu.
É impressionante a forma como o ator vai conduzindo uma conversa com a plateia, em cerca de 90
minutos, ou mais ou menos (Sei lá!), que bem poderiam se transformar em 900, por
não faltar assunto e de tão agradável que é ouvi-lo, falando, com detalhes,
dele e de sua família, não faltando, também, espaço para amigos e outras
pessoas que, de uma forma ou de outra, representaram ou, ainda, representam
muito na sua vida.
O espetáculo é de um lirismo, de
uma beleza, de uma pureza incomuns. Um
espetáculo sensorial!!!
Difícil é acreditar que, tendo nascido numa família muito humilde,
muito pobre mesmo, de camponeses, plantadores de cana, imigrantes italianos, no
interior paulista, filho de uma mãe analfabeta (Adelaide) e de um pai esquizofrênico (Ernesto), que mal assinava o nome e que, por tantas vezes, teve de
ser internado, por conta do mal que o acometia, filho temporão, o décimo
quinto, dez anos mais novo que o, até então, caçula dos outros 14 irmãos
(somente sete sobreviveram e, hoje, são, apenas, PAULO e mais três irmãos, um homem, de 72 anos, sapateiro, e duas
irmãs, donas de casa), é quase impossível crer que aquele rapaz, que teve o
privilégio e a oportunidade de estudar numa boa escola, pudesse, vivendo num
ambiente tão hostil e desfavorável ao semear da cultura, embora impregnado de
muito amor, tenha-se voltado para o TEATRO,
que ele, provavelmente, nem conhecia “in loco”, ter escolhido o palco como
território de sua profissão, a qual vem, cada vez mais, exercendo com
competência e generosidade.
Um
gigante em cena.
Rafard é o nome de sua
cidade natal, porém mudou-se, com a numerosa família, ainda na infância, para Sorocaba, onde morou até os 20 anos, de
onde só saiu, já rapaz, para São Paulo,
onde estudou TEATRO, na Escola de Arte Dramática (EAD), da USP, até atingir o merecido estrelato.
É exatamente nesse ponto que a história termina, uma vez que o objetivo
do ator/autor/diretor não é falar do PAULO
BETTI, mas sim do PAULO SÉRGIO. Narciso
não foi convidado para essa festa.
Nesse encontro de TEATRO,
que é mais que uma simples peça, o espectador entra em contato com passagens da
vida de PAULO, que vão do universo
rural de sua infância e adolescência até sua experiência como professor na
Unicamp.
É bom que fique bem claro que os 40 anos de profissão do ator serviram,
apenas, como pretexto para que o espetáculo fosse encenado agora, mas sua
brilhante carreira profissional não é o foco do espetáculo. Só há um momento, se não me equivoco, em que
ele fala, mais diretamente, sobre o assunto, quando, ainda amador, em Sorocaba,
fez parte do elenco de uma montagem de O
Pagador de Promessas, do genial e saudoso Dias Gomes.
PAULO não interpreta um
personagem; ou, por outra, PAULO É PAULO,
embora, em algumas passagens, viva, por brevíssimos momentos, o pai, a mãe, a avó
e alguns outros personagens que cruzaram seu caminho ao longo da vida.
Naturalidade ao
“representar”.
Alguns detalhes que merecem destaque na peça:
1) Parece que os artistas já “jogaram a toalha”, com relação a
solicitar (quase implorar) que pessoas sem educação e respeito a quem está no
palco desliguem seus celulares, durante o espetáculo, nem fiquem trocando
mensagens, pois o som e a luz atrapalham quem está atuando e os vizinhos de
poltrona. PAULO, numa tentativa criativa de evitar esse incômodo, antes do
início do espetáculo, brinca com o público, numa gravação em “off”,
incentivando-os a usar suas geringonças, sem constrangimento, apenas
alertando-os para o fato de que, a cada vez que isso acontecer, ele
interromperá o trabalho. Mas o pior é
que algumas pessoas, que, por pouco, escaparam de ter nascido sob a forma de
outro animal, acreditam no que ele diz, ou se fazem de desentendidos, e fazem
uso de seus aparelhos. Mas o ator, como
um cavalheiro, não interrompeu a peça.
2) O cenário, de MANA BERNARDES, assim como o figurino, de LETÍCIA PONZI, são “clean”,
predominando o branco, o que confere ao espetáculo um ambiente asséptico,
lembrando pureza e ingenuidade. O cenário é muito leve, todo
confeccionado com uma espécie de papel fino, branco, com o detalhe da réplica
da fachada da casinha em que PAULO nasceu,
montada com painéis recortados, sobrepostos, a uma pequena distância, uns dos
outros, com porta e janela; uma riqueza de detalhe. Ao lado esquerdo do palco, há um varal, com
roupas dependuradas, o quintal da casa.
O figurino é composto por uma
calça gelo e uma camisa branca, que compõem muito bem o ator/personagem, o qual
se apresenta descalço (pé no chão, de volta às origens).
Detalhe do belo
cenário.
3) Logo na primeira cena, PAULO
acende uma vela, cuja chama permanecerá ativa até o final do espetáculo, como
sinal de reverência aos antepassados, numa espécie, também, de um rito, pedindo
licença a eles para remexer nas gavetas da família. É uma cena muito tocante.
4) Um detalhe enriquecedor do espetáculo, sem o qual metade dele seria
perdido, diz respeito às muitas projeções que são feitas durante todo o
espetáculo: ambientes, fotos muito antigas, documentos...
A magia do cinema
para o menino Paulo.
5) A cada nome de alguém mencionado, PAULO se propõe a dizer, compulsivamente, o significado daquele
antropônimo. Parece um detalhe simples e
inexpressivo, mas não o é. Alguns têm
uma relação muito grande entre particularidades da personalidade daqueles que
foram batizados com este ou aquele nome e suas etimologias. É um detalhe bastante interessante.
6) Das coisas que mais me comoveram em cena foi ver um homem de 62 anos
brincando, como eu também brinquei na minha infância. PAULO,
de forma exímia (eu não acertava nunca), joga, literalmente, pião, recolhe-o
com a fieira e deixa que ele termine de girar na palma de sua mão. Meus olhos marejaram, de fascínio e emoção. Em outro momento, ele “roda arquinho” (Não
sei como se chama essa brincadeira, mas era uma das minhas preferidas, e quem
me lê há de reconhecê-la, ou, simplesmente, conhecê-la numa das fotos logo
abaixo.). Duas cenas muito marcantes.
7) É muito oportuna a cena em que o ator desce à plateia e convida uma
senhora para dançar com ele, relembrando uma fase de sua vida. Em seguida, retorna ao palco, após
cumprimentar alguns espectadores, com um fraterno aperto de mão. Um ato singelo e respeitoso de agradecimento
a quem foi ao teatro prestigiar e conhecer seu lindo trabalho.
8) São interessantes os momentos em que o ator utiliza um modelo antigo
de microfone, para “transmitir” momentos dos jogos da Copa do Mundo de 1958, o
que me fez dar um grande mergulho no meu passado. Eu tinha 9 anos; ele, 6. Mas vivemos a mesma experiência. O rádio foi muito marcante nas nossas
infâncias...
Nas ondas do
rádio...
9) Outra cena em que me projetei nele foi quando narra como auxiliava,
de maneira muito desajeitada, a avó, na matança de porcos. Na minha casa, também isso acontecia, para a
ceia de 31 de dezembro (Naquela época, não se falava em “réveillon”), mas eu
não era o auxiliar; ficava apenas do papel do menino curioso (um pleonasmo),
olhando, escondido, aquela barbárie, que logo seria esquecida, quando saboreava
tudo o que fora aproveitado daquele mamífero bunodonte, artiodáctilo, de
aparência tão ruim e de nome tão complicado, mas de sabor tão apreciável.
10) Também são muito boas as piadas inseridas no texto, com relação a
fatos ou pessoas da atualidade, como no momento em que Paulo se considera mais
bonito que seu colega de profissão Thiago Lacerda.
11) Não poderia deixar de ressaltar a criativa ideia do título do
espetáculo: AUTOBIOGRAFIA AUTORIZADA. Como se fosse possível ser de outra forma...
Recomendo, de coração e bastante emocionado, este espetáculo, em que um
homem se despe de sua importância no universo artístico e faz questão de
mostrar o seu lado humano, a sua luta para transpor os obstáculos de uma vida
dura, o que o faz, certamente, valorizar, muito mais, a bonança do momento
presente. Como eu.
Fiquei profundamente tocado pelo espetáculo, pois eu e PAULO temos muitos pontos em comum e,
ouvindo, atenta e emocionadamente, o que ia dizendo, eu fazia uma viagem ao meu
passado, e aquilo me reportava às minhas memórias.
Agradeço muito a você, PAULO
BETTI, pela alegria que me proporcionou naquela chuvosa noite de domingo,
22 de marco de 2015.
Deitado ao lado do
punhal utilizado na matança dos porcos.
FICHA TÉCNICA:
Texto e Interpretação: Paulo Betti
Direção: Paulo Betti e Rafael Ponzi
Elenco: Paulo Betti
Cenário: Mana Bernardes
Figurino: Leticia Ponzi
Iluminação: Dani Sanchez e Luiz Paulo Neném
Direção de Movimento: Miriam Weitzman
Programação Visual: Mana Bernardes
Trilha Sonora: Pedro Bernardes
Fotografia: Mauro Kury
Assistente de Direção: Juliana Betti
Assessoria de Imprensa: Daniella Cavalcanti
Administração Financeira: Andréia Fernandes / Lya Baptista
Direção de Produção: José Luiz Coutinho e Wagner Pacheco
SERVIÇO:
Temporada: de 19 de março a 10 de maio
Local: Centro Cultural Correios (Rua Visconde de Itaboraí, 20 – Centro)
Informações: (21) 2253-1580
Horário: de quinta-feira a domingo, às 19h
Ingresso: R$20,00
Duração: 60 minutos
Gênero: drama
Capacidade: 200 lugares
Classificação: 12 anos
Bilheteria: quarta a domingo, das 16h às 19h
(FOTOS: MAURO KURY)
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