“NASCI PRA
SER DERCY”
ou
(ACHO QUE VI A DERCY NO PALCO.
VI SIM, ORA SE VI!)
ou
(MERECIDÍSSIMO
TRIBUTO,
FEITO COM
TOTAL
COMPETÊNCIA.)
Quando
esta crítica for publicada, infelizmente, o espetáculo aqui analisado já não
estará em cartaz, porque veio para cumprir apenas três sessões, num final de
semana, dentro da “Festa do Humor Carioca”, no Teatro Prio. Graças aos DEUSES
DO TEATRO e ao convite do meu amigo Caio Bucker, curador do
daquele espaço, pude assistir a esta OBRA-PRIMA da COMÉDIA, que fez um
grande sucesso, no ano passado, em São Paulo, desde sua estreia, em 13 de
janeiro, e já esteve, também, por um único fim de semana, em terra carioca,
quando eu estava em viagem, fora do país. Nas duas vezes em que estive na
capital paulista, no ano passado, também não consegui assistir ao monólogo, por
incompatibilidade de agenda. Os cariocas merecem uma temporada longa de “NASCI PRA SER DERCY”, pelo que não deixarei
de torcer; e para muito em breve. Além da capital paulista, o solo já foi apresentado em
outras praças do interior de São Paulo e em cidades de outros estados, sempre com
lotações esgotadas, total sucesso de público e de crítica.
SINOPSE:
A peça começa com uma atriz, Vera
Finarelli (GRACE GIANOUKAS)
entrando num estúdio de gravação, a fim de fazer teste para o papel de Dercy Gonçalves em um
filme sobre a vida desse ícone da COMÉDIA.
Conforme vai dando suas falas, Vera se revolta contra o roteiro que
lhe fora enviado, cheio de estereótipos e desvios da verdade.
A aspirante ao papel de
protagonista vai, aos poucos, e numa escala crescente, mostrando, e provando, a
um ser - uma voz, de MIGUEL FALABELLA
–, a qual se esconde por trás de uma câmera e vai conduzindo o que ele chama de
um “autoteste”,
quão errado estava o roteirista quanto à imagem de Dercy Gonçalves.
A mãe da personagem era
grande fã de Dercy, e sua cabeleireira, e, por isso, Vera cresceu conhecendo, “de
perto”, mas não tanto, porque nunca a encontrara pessoalmente, o
verdadeiro ser humano, nascido Dolores Gonçalves Costa, e sendo influenciada pelo exemplo dessa artista icônica.
Vera, então, transformando-se em Dercy, começa a mostrar quem, realmente, foi essa mulher à frente de seu tempo.
Por meio de um brilhante texto “desengordurado”
e fruto de uma minuciosa pesquisa, de um jovem dramaturgo, KIKO RIESER, que também assina a direção
da peça, o público - creio que na sua grande maioria -, acostumado a uma imagem
distorcida de Dercy, criada e alimentada pela grande mídia, vai tomando
conhecimento dos mais significativos momentos da sua vida. É uma linda, comovente e
merecida homenagem à artista, uma das maiores atrizes do século XX.
Após um ano de sua estreia, o espetáculo, muito merecidamente, acumula
indicações a prêmios, já com uma conquista para KIKO, na categoria “Melhor Dramaturgia Original”, num
deles, em São Paulo. E muitos outros mais ainda hão de vir.
Dercy Gonçalves (23/06/1907–18/07/2008),
nome artístico de Dolores Gonçalves Costa, faleceu há 15 anos e meio, aos 101
anos, “sem que jamais tenha havido, nos palcos brasileiros, uma peça que a
homenageasse”, até que o jovem KIKO
RIESER resolveu fazer-lhe justiça.
Até então, com o mesmo foco deste, considero de igual qualidade, como o seu
trabalho, a cuidadosa produção de uma minissérie, produzida pela TV
Globo, em 2012, “Dercy de Verdade”, em quatro
capítulos, baseada no livro “Dercy
de Cabo a Rabo”, de autoria de Maria Adelaide Amaral, que também
assinou o roteiro da produção.
(Foto: Fonte desconhecida.)
Nascida em Santa
Maria Madalena, cidade do interior do Rio de Janeiro, Dolores foi criada pelo pai, Manuel,
um alfaiate, que era alcoólatra e lhe batia muito, e abandonada por sua mãe, Margarida, empregada doméstica, a qual largou os sete filhos e o marido, ao descobrir uma traição deste. Desde
muito jovem, Dolores já havia descoberto que “nascera para ser Dercy”
e que Madalena era um universo muito pequeno, para acomodar seu
imenso talento. Lá, a jovenzinha trabalhava na bilheteria de um cinema e ficava
a admirar as artistas que contracenavam nas telas, procurando imitá-las. Em
casa, seu pai sempre a castigava, com pancadas, quando a via se maquiando,
igual às mulheres famosas, e dizia estar criando uma filha “perdida”, que não
valeria nada e seria “mulher da vida”.
Isso a magoava profundamente e ela desejava, a cada dia, sair do inferno que
era viver em sua casa, fugir, para sempre, das surras e humilhações do pai e se
livrar da provinciana cidade que a xingava de “prostituta”, pois andava, pelas
ruas toda maquiada e proferindo
xingamentos.
Muito ao contrário da imagem de “devassa”, formada em torno
dela, Dercy se casou com Eugênio Pascoal, um ator de uma
companhia de TEATRO, com quem ela havia fugido de Madalena, aos 17
anos, porém se manteve virgem, após a união, por não ter conseguido
levar o ato adiante, por conta de ser tímida demais. Quem diria?! A
“puta” "que nem gostava de sexo", ainda que, sem emprego, tenha aceitado
trabalhar numa “casa de tolerância”, em São Paulo, com o objetivo de ganhar
dinheiro para custear o tratamento de tuberculose de Eugênio – uma mulher de
grande índole e generosidade -, porém, na hora do seu encontro com o primeiro
cliente, começou a chorar e contou-lhe toda a sua vida. Este, Valdemar,
se emocionou com seus relatos e lhe deu dinheiro, aconselhando-a a ir morar no Rio
de
Janeiro, onde, segundo ele, ela teria chance de virar uma grande estrela.
Na capital federal, Dercy descobriu estar tuberculosa,
possivelmente contagiada pelo marido, e ficou desesperada. Valdemar, que havia se
tornado um grande benfeitor, reapareceu na sua vida e a internou num sanatório,
pagando-le todas as despesas, pelo que ela lhe ficou imensamente grata. Com o
passar do tempo, viu-se apaixonada por ele, começando a namorá-lo, após a morte
de Pascoal.
A Valdemar,
Dercy
se entregou, apaixonadamente, tendo, na sua primeira noite de amor, engravidado.
Muito assustada, por estar grávida, pediu-lhe dinheiro, para a prática de um aborto,
mas este não aceitou isso e disse-lhe que cuidaria da menina, apesar de ser
casado e ter quatro filhos. O próximo passo foi montar uma casa para Dercy,
que teve sua filha, Maria Dercimar Gonçalves Senra, nascida dia 24 de
dezembro de 1934. Dercimar, mistura do nome do pai e
da mãe, faleceu no ano passado, aos 88 anos. Não aceitando a condição de
amante, Dercy pressionou o seu protetor a resolver a situação com a
esposa e assumi-la, oficialmente, porém, ante a indecisão de Valdemar,
Dercy
acabou por ter que criar a filha sozinha, dando-lhe a melhor educação, “para
que ela não passasse o que eu passei”, após Valdemar ter registrado a
menina e desaparecido.
Muitos homens passaram pela vida de Dercy e todos deixaram boas
recordações; e péssimas também. Para não me alongar mais ainda, vou parando por
aqui, quanto a esse particular. (OBSERVAÇÃO: As informações biográficas que
citei foram extraídas, com adaptações, da Wikipédia, a “enciclopédia livre”,
mas estão presentes em dezenas de fontes). Além de uma magnífica
atriz cômica, Dercy Gonçalves também
acumulou, em décadas de carreira artística, as funções de autora, diretora teatral, produtora teatral e cantora. Oriunda dos
espetáculos circenses, tornou-se uma das maiores estrelas do auge do “Teatro
de Revista”, na década de 1930 e da produção cinematográfica
brasileira, a partir da década de 1940. Foi reconhecida pelo “Guiness Book” como a atriz com
maior tempo de carreira na história mundial, totalizando 86 anos. Celebrada por suas
entrevistas irreverentes, bom humor e emprego constante de “palavrões”, foi uma das
maiores expoentes do TEATRO de improviso, no Brasil.
Não poderia ter sido
mais oportuna a ideia de homenagear a grande artista e, sobretudo, a corajosa
mulher, uma feminista “de carteirinha”, muito antes de
isso se tornar matéria de maior interesse. Desbocada e
defensora da mais profunda liberdade, era muito recatada em sua vida íntima, e
era preciso que isso ficasse bem claro, no texto da peça, como, realmente,
ficou. Dercy, de peito aberto, “sem lenço nem documento”, desafiava,
frontalmente, a censura imposta pela ignóbil ditadura militar, surgida com o GOLPE
de 64, embora se recusasse, terminantemente, a levantar bandeiras
políticas específicas, que não fossem a da irrestrita liberdade e do respeito a todas
as formas de existir. Exigia o respeito que lhe era devido, por sua
história de vida e seu trabalho. “Consagrou-se como
vedete do TEATRO de Revista, contudo sua maior contribuição ao nosso TEATRO se
deu, ao levar essa expertise para a comédia popular, que ela revolucionou
inteiramente, trazendo textos fundamentais para o Brasil e instaurando uma nova
forma de interpretar, que rompia com todos os padrões e inaugurava em nossos
palcos uma representação genuinamente brasileira.”. Aliás, de “romper padrões”, ela entendia
muito, a ponto de, aos 80 anos de idade, no carnaval de 1991,
ter desfilado, no topo de um carro da Escola de Samba Unidos do Viradouro,
com os seios à mostra, dentro do enredo que a homenageava: “Dercy Gonçalves, o Retrato de um Povo”.
Chegou o momento de falar sobre a dramaturgia da peça. Um autor tem
uma ideia, um propósito, para criar um texto teatral, porém precisa saber de
que maneira dará forma a um texto, que “gancho” poderá usar, para tornar
concreta uma história a ser representada sobre as tábuas. Pode até parecer,
para alguns, não muito original a ideia de colocar uma atriz indo à procura de
um teste para ser aprovada como protagonista de um filme e “bater de frente” com um
roteiro “fake” e, de forma muito prática, tentar convencer a produção
da película a reescrever um novo, abandonando os clichês e as inverdades sobre
a vida da personagem que iria representar nas telas. Eu, contudo, considero o
expediente empregado por KIKO RIESER
excelente, muito bem escrito e bastante valorizado pelo fato de o autor da peça
também ter assumido sua direção, e, obviamente, superdimensionado,
em termos de qualidade e perfeição, pela magistral interpretação de GRACE GIANOUKAS.
Kiko Rieser
(Foto: Autoria desconhecida.)
O que KIKO desejou fazer, e conseguiu, foi escrever um texto que buscasse unir o apelo popular e o carisma de Dercy, através de uma profunda pesquisa, mostrando a estupenda importância, muitas vezes ignorada, da atriz para o TEATRO BRASILEIRO e para a liberdade feminina, bem como sua inquestionável singularidade, sem preocupação de ficar engessado na cronologia dos fatos, trazendo a lume, de forma reforçada, lembranças da artista, aleatoriamente. É sempre importante lembrar que, no tempo de Dercy, para exercer a profissão, as atrizes eram obrigadas a se munir de uma carteirinha, a mesma com que se identificavam as prostitutas, e, também, que os movimentos feministas ainda eram incipientes. É obvio que, para mostrar uma Dercy, tão longeva, em todas as fases de sua vida, tanto particular como profissional, o autor teria que escrever um monólogo que duraria, certamente, mais algumas horas, o que, logicamente, o tornaria impraticável de ser montado. Ficaram de fora, por exemplo, as atividades de Dercy na televisão e nos filmes, que não foram pequenas nem desprezíveis, mas isso, de forma alguma, diminui o grande mérito da dramaturgia.
Agora, tenho que me policiar, para não escrever laudas sobre o trabalho de GRACE GIANOUKAS, uma das mais importantes atrizes brasileiras, cuja carreira venho acompanhando, há muito tempo, mais precisamente, desde 2001, quando, pela primeira vez, tive contato com o seu fazer teatral, no espetáculo “Terça Insana”, idealizado e coordenado por ela, que permaneceu em cartaz por 15 anos, com total aprovação do público e da crítica, e, se dependesse da vontade destes, estaria sendo apresentado até hoje. A propósito, bem que poderiam fazê-lo renascer. Fui espectador assíduo da “Terça” (Tenho os dois dvs do espetáculo.) e é impossível não me lembrar nem deixar de dar boas gargalhadas, pensando em algumas de suas personagens naquele espetáculo, como Aline Dorel, a drogada, por ansiolíticos; Cinderela, a traficante de drogas; e a Mulher Limão. Não tenho a menor dúvida de que todos os comediantes da atualidade beberam, à farta, do humor da “Terça” e a têm como referência, da mesma forma como tiveram, na figura de grandes mestres, além de Dercy, outros tantos talentos de sua época, como Oscarito, Grande Otelo, Costinha, Mazzaropi, Colé, Ronald Golias, Chico Anysio, Jô Soares, Agildo Ribeiro e Renato Aragão, por exemplo.
GRACE
GIANOUKAS é, indubitavelmente, uma das grandes damas do humor e da COMÉDIA
brasileira. Seu “timing” cômico é invejável. E com que precisão deixa de ser Vera
Finarelli para se transformar em Dercy Gonçalves, e vice-versa! Como
ninguém, ela sabe administrar uma sequência de caretas, explorando as máscaras
faciais, e modulando a voz, o que dispensa até um texto verbal. GRACE é a cara do humor e da COMÉDIA,
contudo, para a minha admiração, conseguiu me surpreender, uma vez que, da
mesma maneira como nos diverte, também nos emociona com a sua emoção, em
determinados momentos da peça, uma válvula de escape, um “suspiro”, para que
possamos dar descanso aos músculos da face. GRACE também é uma ótima atriz dramática. Mergulhou, de cabeça, na
construção da personagem, sem a preocupação de imitá-la, embora eu tenha visto,
no palco do Teatro Prio, uma “Dercy reencarnada”.
Tudo, com simplicidade, porém na medida certa, funciona nesta montagem, “cai como uma luva”: a voz, em “off”, de Miguel Falabella; a cenografia, de KLEBER MONTANHEIRO, um estúdio de gravação, com poucos, e fundamentais, elementos cênicos; o extravagante figurino, também assinado por MONTANHEIRO, marca registrada de Dercy; a bela luz pontual, de ALINE SANTINI; o acertadíssimo visagismo, de ELISEU CABRAL, que muito contribui para a caracterização externa da personagem; a trilha sonora e os arranjos, a cargo de MAU MACHADO; e os trabalhos, corporal e de voz, desenvolvidos por BRUNA LONGO e ANDRÉ CHECCHIA, respectivamente.
FICHA TÉCNICA:
Texto: Kiko Rieser
Direção: Kiko Rieser
Assistência de Direção: André Kirmayr
Cenário: Kleber Montanheiro
Figurino: Kleber Montanheiro
“NASCI PRA SER DERCY”
é um espetáculo que merece ser assistido pelo maior número possível de pessoas.
Ele tem a cara do verão carioca, porém a ciência o recomenda em qualquer
estação do ano; medicamento para curar a tristeza; e sem contraindicações.
FOTOS: HELOÍSA BORTZ
GALERIA PARTICULAR:
(FOTOS: JOÃO PEDRO BARTHOLO)
VAMOS AO TEATRO!
OCUPEMOS TODAS AS SALAS DE
ESPETÁCULO DO BRASIL!
A ARTE EDUCA E CONSTRÓI, SEMPRE; E SALVA!
RESISTAMOS SEMPRE MAIS!
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