JOGO
DE
DAMAS
(UM MOTIVO CERTO
PARA SE IR AO TEATRO.
ou
QUEM É DEPENDENTE DE QUEM?
ou
UM JOGO DE PODER ALTERNANTE.)
Sair de casa, para assistir a um espetáculo produzido
e montado pela companhia AMOK TEATRO é garantia de
satisfação. Jamais assisti a uma montagem, com a marca deles, que não
merecesse, no mínimo, a classificação de “boa”. É, quase sempre, de “muito
boa” para cima. Na maioria das vezes, “ótima” e, não raro, “obra-prima”.
A peça em cartaz, e motivo desta crítica, “JOGO
DE DAMAS”, está sendo encenada, em curta temporada, no Mezanino do SESC
Copacabana (VER SERVIÇO.), um “ensaio sobre a solidão”, abrindo
o caminho para uma nova proposta do grupo, um "Ciclo das Mulheres",
após uma “Trilogia da Guerra", com “O Dragão”, “Kabul”
e “Histórias de Família”, e o projeto "África em Nós",
com as emblemáticas e premiadas montagens de “Salina – A Última
Vértebra” e “Os Cadernos de Kindzu”.
Sem nenhum oportunismo, mas, sim, agregando força a uma
luta da mulher, em busca de seu valor e reconhecimento, na sociedade, os
interesses da companhia se voltam, no momento, para explorar o universo feminino,
começando por um texto próprio, de um dos fundadores da AMOK,
STEPHANE BRODT, fruto de uma “pesquisa, iniciada em 2018, pelos
atores STEPHANE BRODT e GUSTAVO DAMASCENO, sobre os personagens femininos do
“Ricardo III”, de Shakespeare. Um estudo sobre mulheres solitárias, repletas de
medos e rancores, enquanto o mundo agoniza ao redor. Para a montagem do “JOGO
DE DAMAS”, os atores confrontaram esse estudo à obra “Fim de Jogo” de Samuel
Beckett”.
Como já fui ao SESC Copacabana com o conhecimento
do teor em negrito, acima, confesso que minha curiosidade era muito grande,
para entender as duas relações, “os personagens femininos do ‘Ricardo
III’” e a ligação com a peça de Beckett, mas bastaram os
primeiros dez ou quinze minutos de encenação, para que eu pudesse
entender a proposta, muito interessante, diga-se de passagem, e, melhor ainda, excepcionalmente
executada, principalmente pelos dois atores, STEPHANE BRODT e GUSTAVO
DAMASCENO.
SINOPSE:
A solidão é o pano
de fundo desta peça.
O espetáculo
coloca, em cena, duas velhas senhoras, envolvidas em um complexo jogo de
relações.
Mulheres
assustadas e solitárias, em um mundo apocalíptico.
EMMA (GUSTAVO
DAMASCENO) e CLARA (STEPHANE BRODT) são idosas reclusas.
que sofrem com a escassez de alimentos, remédios, sonhos e ideais, embora o motivo
disso, propositalmente, não fique claro na peça. E nem é preciso.
Suas vidas estão
recolhidas em um espaço fechado, onde se alimenta um jogo intenso de amor,
dominação e medo.
O exercício do
poder pelo poder anula o oprimido e, também, o opressor, já que ambos estão no
mesmo barco.
O Teatro do Absurdo, do qual Beckett é um de
seus maiores e mais importantes representantes, é uma “escola” que reúne, em
sua essência, dramaturgos que, sabidamente, produziram seus textos depois
da Segunda Grande Guerra Mundial, voltando-se mais, e não sem motivos,
para temas como a destruição de valores morais e crenças ancestrais e a solidão dos homens, a qual aniquila qualquer ser humano, dois aspectos que incomodavam
bastante os autores da época, uma realidade que mostrava a condição
humana de uma forma incompreensível e sem perspectiva. Inaceitável, enfim, uma
condição de quase nulidade total para um humanoide. Quebra-se, dessa forma, a
estrutura regular da família, até então tão presente nas obras teatrais,
e passa-se à abordagem de temas inóspitos, incomodativos, que tiram o
espectador de sua zona de conforto, a qual, na realidade, já não existia mais,
como era, e precisava ser reconstruída, resgatada, redimensionada. Como
acontece no espetáculo aqui analisado, entram em campo temas
provocativos e que promovem reflexão, como os conflitos nas relações
interpessoais, o isolamento humano e a inevitável espera da morte. No caso de “JOGO
DE DAMAS”, as duas personagens agem de forma totalmente oposta ao
que diz a letra de Raul Seixas, na canção “Ouro de Tolo”: “Eu
é que não me sento / No trono de um apartamento / Com a boca escancarada /
Cheia de dentes / Esperando a morte chegar”. É, exatamente, assim que
elas se comportam. E parecem aceitar o fim, passivamente, sem lutar contra ele.
Tudo o que pouco sabem do mundo exterior entra por uma pequena abertura,
resultado de um vidro quebrado, numa janela lateral. É CLARA quem vê e
vai informando à outra, mais presa ainda, numa cadeira de rodas.
Para
quem conhece a peça de Beckett, de 1957, é fácil reconhecer
os pontos em comum que há entre os dois textos, entretanto aqueles que
não tiveram a oportunidade de serem apresentados àquele clássico da dramaturgia
universal, “Fim de Jogo”, ou “Fim de Partida”, como, também,
é conhecida, em português, a peça, também conseguem acompanhar,
facilmente, o desenrolar da narrativa.
Em Beckett, o velho Hamm está cego e
paralítico e vive numa cadeira de rodas, assim como, aqui, temos EMMA
(GUSTAVO DAMASCENO), nas mesmas, ou quase, condições. Lá, quem cuida de Hamm
é Clov; aqui é CLARA, uma serviçal, frequentemente ofendida e
maltratada pela patroa, ambas interdependentes.
Se,
em "Fim de Jogo", o espetador também consegue sentir, na
própria pele, o desconforto ao qual os personagens estão submetidos,
confinados num abrigo, metaforicamente, enlatados, enquanto vão trocando
ideias, desfilando diálogos herméticos sobre a condição humana, a solidão e a relação
um tanto bélica que estabelecem mutuamente, muito mais partindo de Hamm,
aqui, não acontece nada muito diferente. A belicosidade maior, que predomina, vem
de EMMA. O público também fica incomodado com a vida enclausurada
daquelas duas “damas”. Um quê de claustrofóbico cria um clima de
desalento.
Como
o texto de Beckett, o de BRODT pode ser considerado
universal e atual, uma vez que tratar de conflitos humanos e problemas éticos é
algo que acompanha o homem, desde seus primórdios, e o seguirá até o “fim de
jogo” de cada um ser humano.
As duas personagens,
brilhantemente interpretadas, por DAMASCENO e BRODT, se
apresentam como dois fragmentos de ruínas, dois pesos mortos, uma existindo
para garantir a existência da outra, conclusão a que são obrigadas a chegar;
único ponto, talvez, comum às duas.
Um detalhe muito
interessante, com relação à composição das personagens, extraído do “release”,
enviado por FLÁVIA TENÓRIO (LEAD COMUNICAÇÃO): “Aqui, os atores
aprofundaram o estudo sobre a velhice e a morte, inspirados em suas próprias
mães: duas velhas mulheres que enfrentam as dificuldades da senilidade com suas
dores, medos e solidão. O universo de Beckett foi atravessado por essa
abordagem e o ‘Fim de Jogo’ tornou-se um ‘Jogo de Damas’”. Há de se atentar
para a ambiguidade que existe no vocábulo “damas”. “’JOGO DE
DAMAS’ é um ensaio sobre a solidão e o enigma da condição humana, face à
finitude do corpo, do mundo e da vida. Sobre o medo da morte e a morte dos
sonhos. Os diretores convidam o público a debruçar-se sobre essas questões, a
partir dos vínculos e das relações de intimidade, movidos por uma espécie de
nostalgia do humano. Uma homenagem dos filhos para suas mães.”.
A par de dois magistrais e exemplares trabalhos de interpretação,
ou por trás disso, há uma bela direção, de STEPHANE BRODT, com a
luxuosa supervisão de ANA TEIXEIRA, o que já garante, em muito, o
sucesso de qualquer montagem da AMOK. Não houve a intenção de, por meio
de um profundo visagismo e trabalho de maquiagem, transformar dois homens em
mulheres. Isso não tem a menor importância. O espectador enxerga duas mulheres
naquela transformação híbrida, com destaque para as vozes e as posturas dos
dois atores, principalmente STEPHEN BRODT, obrigado a caminhar
lentamente e curvado, arrastando os pés, em todos os seus deslocamentos.
Somem-se a isso o conjunto cenário / figurino,
também assinados por BRODT e ANA TEIXEIRA; a iluminação, de RENATO MACHADO;
e a música, de ARVO PÄRT.
A cenografia ocupa pouca dimensão, no amplo espaço
cênico, que pode dar a impressão de falta de isolamento; mas não é o espaço
ocupado o que conta; é a falta de condições para ultrapassá-lo e se libertar,
sair pelo mundo. Embora, relativamente, grande, a morada das duas torna-se um
cubículo, por se tratar de um microcosmo, intencional, criado por elas, a
despeito, repito, de não se saber por que ali estão, naquele estado. Mais
próximo ao público, uma cadeira de rodas, uma janela, solta no ar, e um
porta-retratos, pendurado por um fio, com uma foto enigmática, além de uma espécie de mesinha de serviço. Ao fundo, alguns
elementos que parecem compor uma cozinha. A distância entre esta e a cadeira é
bem grande, uma representação do distanciamento entra as duas personagens,
o quão incompatível é aquela relação, “mistura” de água e óleo.
O figurino se resume a recatadas vestes longas, em
preto, como se vestiam as viúvas de antigamente. Viúvas de quem ou de quê?
Arrisco: delas mesmas ou da vida.
RENATO MACHADO criou uma iluminação que dá
bem o tom da ambientação, ajuda a criar a atmosfera de isolamento, com pouca
luz e muitas sombras.
Todas as montagens da AMOK são pontuadas
por música, sempre um elemento importantíssimo, em cada encenação.
Acho que me lembro de todas as canções e de todos os ritmos, em tudo o que vi,
feito pela companhia. Desta vez, foram buscar um compositor erudito
estoniano, ARVO PÄRT, que “trabalha com um estilo minimalista,
empregando a técnica de ‘tintinnabuli’ (do latim, 'pequenos sinos') e
repetições hipnóticas”. Essa informação, creio, é bastante instigante,
para se conhecer o espetáculo. O que posso dizer é que, sem a trilha
sonora, a montagem perderia bastante de sua qualidade. Por oportuno,
transcrevo o que seria o “set list”: “De Profundis” –
Estonian Philharmonic Chamber Choir / Toñu Kaljuste; “Fragile e Conciliante” –
Stuttgart Radio Symphony Orchestra / Andrey Boreyko; “Spiegel im Spiegel” –
Vladmir Spivakov e Sergey Bezrodny; “Für Alina” – Alexander Malter; “Missa
Syllabica” – Estonian Philharmonic Chamber Choir / Toñu Kaljuste; “Frates for
Strings and Percussion” - Estonian National Symphony Orchestra / Paavo Järvi”.
Isso, certamente, implicou um profundo e exaustivo trabalho de pesquisa, por
parte da direção.
FICHA TÉCNICA:
Texto: Stephane
Brodt, a partir da obra “Fim de Jogo” de Samuel Beckett
Elenco: Gustavo
Damasceno e Stephane Brodt
Direção: Ana
Teixeira e Stephane Brodt
Assistente de Direção:
Júlia Limp
Cenário e
Figurino: Ana Teixeira e Stephane Brodt
Iluminação: Renato
Machado
Música: Arvo Pärt
Edição de som:
Gabriel Petit
Operador de Luz:
João Gaspary
Operadora de
Som: Júlia Limp
Cenotécnico: Beto
de Almeida
Fotos: Daniel
Barbosa e Sabrina Paz
Projeto Gráfico:
Paulo Lima
Produção
executiva: Gabriel Garcia
Direção de
Produção: Amok Teatro
SERVIÇO:
Temporada: De 13/06
a 07/07 de 2018.
Local: SESC
Copacabana (Mezanino).
Endereço Rua
Domingos Ferreira, 160 – Copacabana – Rio de Janeiro – RJ.
Dias e Horários:
De 5ª feira a domingo, sempre às 20h.
Valor do Ingresso:
R$30,00 (inteira); R$15,00 (meia entrada); R$7,50 (associado SESC), e ingresso solidário,
no valor de meia entrada, mediante a doação de 1 kg de alimento, não perecível,
para o Projeto Mesa Brasil do Sesc RJ.
Informações: (21)
2547-0156.
Horário de
Funcionamento da Bilheteria: De 3ª a 6ª feira, das 9h às 20h; aos sábados,
domingos e feriados, das 12h às 20h.
Classificação Indicativa:
14 anos.
Duração: 75 minutos.
Lotação: 80
lugares.
Gênero: Drama.
“JOGO DE DAMAS” é uma das melhores pedidas, em TEATRO,
no momento, no Rio de Janeiro, o que me leva a recomendar, com o
maior empenho, o espetáculo, esperando que a curta temporada, de quatro
semanas, possa vir seguida de outras, pois a oportunidade de saborear uma montagem
da AMOK TEATRO não se tem a toda hora e é algo que não se deve
perder, em hipótese alguma.
E VAMOS AO TEATRO!!!
OCUPEMOS TODAS AS SALAS DE ESPETÁCULO
DO BRASIL!!!
A ARTE EDUCA E CONSTRÓI!!!
RESISTAMOS!!!
COMPARTILHEM ESTE TEXTO, PARA QUE, JUNTOS,
POSSAMOS DIVULGAR
O QUE HÁ DE MELHOR NO
TEATRO BRASILEIRO!!!
(FOTOS: DANIEL BARBOZA
e
SABRINA PAZ.)
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