SE
EU FOSSE IRACEMA
(UM
GRITO DE SOCORRO.
ou
UMA
JUSTA DENÚNCIA.
ou
VOCÊ,
ADASSA MARTINS, É IRACEMA.)
Infelizmente, só pude assistir a
este espetáculo na penúltima semana da curta temporada, no Teatro do SESC Tijuca, motivo pelo qual não deu tempo de escrever
sobre ele, naquele momento, pois estava bastante atarefado, e só agora o faço,
com muita alegria, pelo que me foi dado ver e, ao mesmo tempo, com um pouco de
tristeza, pelo fato de a peça ter ficado tão pouco tempo em cartaz, uma vez que
merece ser vista por um grande público, para que se entenda como é possível
montar um grande espetáculo, de indiscutível qualidade, com poucos recursos, em
todos os sentidos.
Apoiado no “release” da peça, que me chegou às mãos por intermédio de BIANCA SENNA, assessora de imprensa, digo se tratar de um monólogo, com dramaturgia
de FERNANDO MARQUES, direção de FERNANDO NICOLAU, magistralmente interpretado por ADASSA MARTINS.
O espetáculo foi idealizado por FERNANDO NICOLAU e FERNANDO MARQUES e, nele, ADASSA
dá voz a diversos personagens, ligados à questão indígena.
A montagem, cujo processo demorou sete meses, é o primeiro
trabalho do COLETIVO 1COMUM,
movimento que pretende agrupar artistas de linguagens distintas, para promover
pesquisas cênicas em TEATRO, dança e
criar um diálogo com as artes visuais, em cuja área ADASSA MARTINS tem formação acadêmica.
Mãe e filho.
SINOPSE:
A peça tem início com a
figura do pajé, pessoa de extrema importância na tribo, que representa a
sabedoria, e que traz ADASSA
interpretando um texto, em guarani, inspirado no cacique Raoni, o qual participa do documentário “Belo Monte, Anúncio De Uma Guerra”, de André D’Elia. Em seguida, a atriz vive uma mulher bêbada, lendo os
primeiros quatro artigos da Constituição
de 1988.
E sucedem-se outros
personagens.
Após o prólogo, a
dramaturgia une mitos e ritos de passagem, não necessariamente de forma linear.
“Escolhemos
trabalhar o ciclo da vida: a origem do mundo, a infância, a adolescência, a
fase adulta, na figura da mulher, e o ancião, na figura do pajé, chegando ao
fim do mundo”, explica o diretor.
Alguns trechos foram
traduzidos para o guarani pelo cineasta indígena Alberto Álvares. Para dar voz a alguns personagens, ADASSA desenvolveu uma interlíngua: “Ouvi
os pajés e diversos índios, falando, em documentários, e percebi os fonemas
mais presentes. A ideia é criar uma fusão do português com uma língua indígena”,
conclui a atriz.
A cor da minha pele
difere da do branco,
mas a cor do sangue é
igual.
A ideia para a construção do espetáculo surgiu com uma carta, escrita
pelos índios guarani kaiwoá, em 2012,
a qual despertou o interesse do ator e diretor FERNANDO NICOLAU para a condição
indígena no país. No texto, pediam que sua morte fosse decretada, em vez de
tirarem sua terra. Sensibilizado, convidou o dramaturgo FERNANDO MARQUES para um mergulho numa profunda pesquisa. Juntos,
iniciaram o processo de criação do monólogo.
A peça não tem
a intenção de levantar uma bandeira e, sim, a de provocar uma reflexão. Branco, mestiço, índio, ocidental. É
possível coexistir? Abordando a questão indígena no Brasil, a montagem
examina a questão da possibilidade de convivência das diferenças.
“As
contradições estão presentes em diversos relatos e textos documentais que
usamos na concepção”, explica o diretor.
“O FERNANDO
apresenta o projeto de forma tão apaixonada, que me senti honrada pela
possibilidade de falar sobre este assunto. Olhamos tão pouco para os índios,
parece que ficaram em 1.500” ,
destaca ADASSA.
“SE EU FOSSE IRACEMA” teve, como
inspiração e referência, os seguintes filmes: “Índio Cidadão?”, de Rodrigo
Siqueira; “Belo Monte, Anúncio De Uma
Guerra” e “A Lei Da Água”, ambos
de André D’Elia. Recém-lançado no
Brasil, o livro francês “A Queda do Céu
– Palavras De Um Xamã Yanomâmi”, de Davi
Kopenawa e Bruce Albert,
também foi uma importante referência, tanto para o autor quanto para o diretor.
Obras de Darcy Ribeiro, Alberto Mussa, Betty Mindlin e Manuela
Carneiro da Cunha também fizeram parte do processo de pesquisa, assim como
encontros e entrevistas com estudiosos.
O espetáculo
se resume em 60 minutos de pura beleza e emoção, durante os quais o público se
sente completamente atraído pelo trabalho da atriz, como num transe coletivo, e,
mesmo durante as falas, a da primeira cena, principalmente, que é um pouco
longa, mas, de maneira alguma, longe de ser cansativa, sem entender o significado
das palavras, ditas numa língua completamente estranha, sente a emoção e a força
do que elas representam, o que há de lamento e denúncia nelas, em função da
brilhante interpretação de ADASSA.
Seu belo trabalho de voz, aliado ao fantástico tratamento corporal e às suas
expressões faciais, o “falar pelos olhos”, todo o conjunto é responsável por um
dos melhores trabalhos de atriz que já tive a oportunidade de ver nos últimos
tempos.
Os olhos falam.
Sempre fui um grande admirador do talento de ADASSA, que está sempre emendando uma peça em outra, isso quando não
faz dois trabalhos simultaneamente, mas, com este, ela passa a fazer parte da
minha galeria das grandes atrizes brasileiras.
Um monólogo sempre dá, ao ator, a oportunidade de mostrar sua
versatilidade, como intérprete, e isso ADASSA
MARTINS provou que tem, para dar e vender, e o mostra nos sutis detalhes,
observados nas mudanças de um personagem para outro.
FERNANDO MARQUES foi muito
feliz na dramaturgia, pois o texto contempla fatos, constatações e
denúncias sobre o pouco, ou nenhum, caso que se atribui aos verdadeiros donos
da terra, aqueles que, ao longo de mais de 500 anos, viram, e ainda veem, sua
cultura sendo massacrada, exterminada, vilipendiada pela ganância do
conquistador, pela falta de sensibilidade do homem branco, dito membro de uma
civilização “culta e progressista”.
Há trechos, praticamente todos, de profunda beleza e, ao mesmo tempo,
que nos levam a uma reflexão, de causar muita tristeza. Porque não é ficção; está muito bem escrito, no papel; foi decorado por uma grande atriz; mas
representa a mais pura e triste realidade.
A simplicidade da peça, em termos técnicos, é diretamente proporcional à
sua grandeza, como espetáculo.
Não é preciso mais do que um tronco cortado por uma lâmina de vidro, no
centro do palco/arena, para que a atriz desenvolva o seu trabalho. Um cenário, de LICURGO CASEIRA, simples, original, lindo e, ao mesmo tempo,
funcional, assim como a iluminação,
trabalho do mesmo artista, que apresenta detalhes riquíssimos e da maior importância
nesta montagem, limitando o espaço cênico, com paredes de luz, e destacando
os olhos da atriz, numa das melhores sequências da peça, apenas para citar
alguns detalhes.
Não precisa mais do que
isto.
E o que dizer
do figurino, de LUIZA FRADIN, também responsável pela caracterização? Reproduzindo o “release”, o figurino “não faz um retrato carnavalesco da cultura
indígena”. De forma interessantíssima, ELISA
desenhou uma saia longa, de látex e borracha, material que vem da terra, na
Natureza, que proporciona, à atriz, um movimento livre, ao mesmo tempo em
faz emitir sons, em seus deslocamentos em cena, que parecem ajudar na, ou fazer
parte da, ótima trilha sonora original,
de JOÃO SCHMID, que também assina o desenho de som. Acima da cintura,
apenas um pequeno bustiê, de tecido fino e delicado, que a atriz usa apenas por
um tempo, e um belo adereço, um significativo colar.
Figurino.
Saí do Teatro II do SESC Tijuca, naquela noite de domingo, não encontrando
palavras que conseguissem expressar toda a minha emoção e agradecimento a todos
os envolvidos no projeto, digno de muitos prêmios.
FICHA TÉCNICA:
Dramaturgia:
Fernando Marques
Direção:
Fernando Nicolau
Assistência de Direção: LuCa Ayres
Elenco: Adassa Martins
Cenografia: Licurgo Caseira
Iluminação: Licurgo Caseira
Figurino:
Luiza Fradin
Caracterização: Luiza Fradin
Trilha
Sonora Original: João Schmid
Desenho de Som: João Schmid
Direção
de Arte e Projeto Gráfico: Fernando Nicolau
Escultura
do Busto: Bruno Dante
Fotografia:
João Júlio Mello (Imatra)
Direção
de Produção e Produção Executiva: Clarissa Menezes
Realização
e Produção: 1COMUM
Idealização:
Fernando Nicolau e Fernando Marques
Evocação!
Da zona norte para a zona sul, a fim de atender a uma outra fatia do público
que se interessa pelo bom TEATRO, felizmente,
está prevista a reestreia deste excelente espetáculo para o próximo dia 14 de maio, numa sala do Espaço Cultural Sérgio Porto.
Como o espetáculo é bastante intimista e só funciona em espaços que
comportem um número reduzido de pessoas, chamo a atenção para a necessidade de
reservar, com antecedência, o seu ingresso, para não correr o risco de perder
uma das melhores peças deste primeiro semestre de 2016, que se aproxima de seu
final.
A tristeza do pajé.
(FOTOS: JOÃO JÚLIO MELLO
– IMATRA.)
Com Adassa Martins – Foto: Marisa Sá.)
Fiquei encantada com a crítica, tomara que volte!
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