ESTAMIRA
– BEIRA DO MUNDO
(“MINHA MISSÃO É REVELAR A
VERDADE.”
– ESTAMIRA GOMES DE SOUZA
ou
“ESTAMIRA É UM ACERTO DE
CONTAS.”
- DANI BARROS.)
Eu
tinha uma dívida com DANI BARROS,
mas a pior dívida é a que temos conosco. Eu tinha uma, do “tamanho do mundo”, que me era cobrada, incessantemente, por mim
mesmo, sempre que o assunto “ESTAMIRA –
BEIRA DO MUNDO” vinha à tona.
É
que, tendo assistido à peça, quando de sua estreia, em 2011, no Teatro Laura Alvim,
duas vezes, na mesma semana, e, numa outra temporada, no Teatro do Leblon (Sala Tônia Carrero, infelizmente já fechada), eu
nunca havia escrito sobre um dos espetáculos mais impactantes a que assisti em
toda a minha vida. Aqui estou, para me redimir e aliviar o meu coração.
Dani Barros.
SINOPSE:
Estamira Gomes de Souza ou, simplesmente, ESTAMIRA (1941 / 2011), foi uma catadora de lixo, doente mental
crônica, com uma percepção do mundo surpreendente e devastadora.
ESTAMIRA morreu com 70 anos e DANI
BARROS a conheceu, no seu “habitat”, o meio do qual conseguia retirar o
mínimo para a sua mísera sobrevivência. Tão pobre de bens materiais; tão rica
de interioridade.
A peça é livremente
inspirada no filme “Estamira”, de Marcos Prado, documentário, lançado em
2005, que ganhou 23 prêmios nacionais e
internacionais e retrata a história de ESTAMIRA,
a profetisa do lixão, carregada de tragédia e humor, delirante e sábia,
atordoante e provocadora de reflexão.
A peça não só é um documentário sobre ESTAMIRA, mas também um depoimento
pessoal e artístico de DANI BARROS, que
reconheceu, na história da personagem da vida real, parte da sua experiência
pessoal.
O pano de fundo da história é o Lixão
do Jardim Gramacho (Duque de Caxias, Rio de Janeiro), porta pela qual
adentramos o universo de ESTAMIRA.
Lá são encontradas cartas, memórias, histórias que não conseguimos jogar
fora.
Mais do que uma adaptação, o projeto é também um depoimento
pessoal e artístico, fala sobre os que se encontram à margem da sociedade,
no meio do lixo do descaso e que são tratados como restos, na maior parte
da vida.
Estamira Gomes de Souza – a própria.
Revi a peça no último
domingo, quando se comemorava o Dia das
Mães, e estava certo de que, tão logo chegasse a casa, iniciaria esta
crítica. Faz hoje uma semana e, cada vez que me sentava, diante do computador,
para dar forma aos meus pensamentos, estes se embaralhavam, vinham-me, à mente,
as imagens e a voz se DANI, dando
vida (vida?) àquela mulher, agora personagem, a ponto de eu me confundir, sem
saber quem era quem. DANI BARROS é
ESTAMIRA e ESTAMIRA é DANI BARROS.
Foi uma sessão linda a
daquele dia, como todas as outras, mas com um tempero especial, porque, naquele
domingo, como já disse, eram homenageadas as mães, e DANI já não tem mais a sua, que, em comum com a personagem, também
sofria de distúrbios mentais e passou boa parte de sua vida internada e nas
mãos do “copiadores de receitas, que não
sabem nada”, chegando ao suicídio, com pouco mais de cinquenta anos. A emoção,
mais que nas outras vezes em que assisti à peça, era, notadamente,
potencializada.
Pude notar algumas diferenças, na evolução
do espetáculo, o que é muito natural, quando uma peça consegue atravessar anos
em cena, inclusive encontrando uma DANI
mais solta, até interagindo mais, de forma deliciosa, com a plateia, em
especial com uma senhora, na primeira fila, perto de mim, a qual entrou no
jogo, fazendo com que o espetáculo rendesse mais ainda.
“ESTAMIRA
– BEIRA DO MUNDO” não é
daqueles espetáculos para serem vistos apenas uma vez nem daqueles que servem
para distrair, após um dia de trabalho cansativo. Ele faz pensar, ele provoca,
ele mexe com as emoções, ele vai buscar, lá no fundo de cada espectador, e
trazer para o palco, a poucos metros da atriz/personagem, a porção ESTAMIRA que há dentro de cada um de
nós.
Pela boca de DANI BARROS/ESTAMIRA, ouve-se um grito,
de socorro e de alerta, contra a negligência dos “governantes” para com a
loucura e a população em geral, principalmente a mais desfavorecida. A peça é
uma metáfora ampliada, uma alegoria, da precária e desassistida condição em que
vivem milhões de, ditos, “seres humanos”. O Lixão do Jardim Gramacho é a
metáfora do Brasil, e ESTAMIRA é a
metáfora dos brasileiros. Pelo menos, de uma considerável parte deles.
O espetáculo foi criado e idealizado por DANI BARROS
e BEATRIZ SAYAD, que também dirige a peça, e, desde sua estreia,
vem colecionando prêmios e indicações, além de ter figurado na lista dos dez melhores espetáculos na seleção do
jornal “O Globo”; entre as três melhores peças em cartaz, na
seleção da revista “Veja Rio”; e
entre os melhores espetáculos, na
seleção da revista “Bravo!”. Dentre os principais prêmios, DANI BARROS, como atriz, ganhou o “Questão de
Crítica”, o “Shell”, o “APTR” e o “APCA”. Já a peça foi indicada ao “Questão de Crítica”, como “espetáculo”,
e ao “APTR”, nas categorias “texto”, “espetáculo” e “produção”.
Passemos a comentar a ficha técnica do espetáculo.
A dramaturgia, que foi criada, a quatro mãos, por DANI BARROS e BEATRIZ SAYAD, consegue concentrar, em cerca de 85 minutos, todo o
universo da protagonista, alternando momentos de profunda tristeza e tensão com
falas que levam o público a dar boas gargalhadas, porque, pela boca de ESTAMIRA, são feitas críticas, é dito
aquilo que todos gostaríamos de dizer, mas somos “lúcidos” demais, para ter a
coragem de fazê-lo. Não há diálogos, mas o texto é construído dentro de uma
carpintaria própria dos monólogos, sem permitir um minuto sequer de lentidão ou
de qualquer coisa que não desperte interesse.
No dramaturgia, foram inseridos trechos de Ana Cristina César, Antonin
Artaud, Estamira Gomes de Souza,
Manoel de Barros, Michel Foucault e Nuno Ramos. Uma salada, a princípio, soando como improvável, porém
mais que concreta.
BEATRIZ
SAYAD também assina a direção da
peça, e a impressão que dá é a de, pelo fato de DANI ter participado da dramaturgia
e de estar, intimamente, ligada àquela situação, no que diz respeito ao seu
convívio com a problemática dos distúrbios da mente (parece-me - pode ser que
eu esteja errado) ter dado uma certa liberdade à atriz, para criar a personagem
e dar-lhe voz. Não parece que existem marcações rígidas a serem seguidas, a não
ser algumas, importantes na peça e que dependem de estar concentradas em pontos
onde a luz atue. Trabalho de duas grandes cúmplices e inquestionáveis artistas.
DANI
BARROS já era considerada, por mim, uma boa atriz, antes de ESTAMIRA. Aqui, ela conquistou,
completamente, o seu espaço, na galeria das nossas melhores atrizes, por sua
entrega total à personagem, por mesclar realidade e ficção, de forma tão sutil
e profunda, que nos dá a impressão de que estamos sendo ouvintes das lições de ESTAMIRA, passadas pela própria. Um dos mais brilhantes trabalhos de atriz
que já tive a oportunidade de ver, durante toda a minha vida de
“rato-de-teatro”.
DANI
usa e abusa do corpo e da voz, passando por posturas diferentes, visto que, vez
por outra, á a atriz que fala, abandonando, por um tempinho a personagem,
momentos em que também muda de voz. Há de se creditar um mérito a GEORGETTE
FADEL, responsável pela preparação de ator, e a LUCIANA OLIVEIRA, que, como
fonoaudióloga, assina a preparação vocal
da atriz. Dois belos trabalhos, que se complementam.
Quando
o público adentra o teatro, já se depara com a atriz, sentada, concentrando-se,
sem deixar de observar os movimentos das pessoas, que vão se acomodando,
lançando-lhes olhares enigmáticos - eu diria -, provocadores da nossa curiosidade.
O espetáculo começa, propriamente, quando DANI
inicia um processo de automaquigem, sujando-se com uma tinta preta, à medida que vai permitindo que a personagem assuma
o seu lugar.
Há uma cena muito impactante e que chega a incomodar e a preocupar
a plateia, momento em que a personagem “começa a passar mal”, dando a impressão
de que lhe falta o ar, acrescido de fortes dores, levando a atriz a se dirigir
à plateia, apoiando-se numa das paredes laterais, implorando que alguém a
socorra, perguntando se há um médico ali. “Vocês vão ficar aí, só olhando e
ninguém sabe o que fazer?”. Aí, a cabeça
do espectador “pira”, deixando-o ficar entre acreditar naquela “verdade”, e
manifestar algum socorro, ou deixar que o “faz de conta” chegue a um final, a
qualquer momento, naturalmente. Muitas vezes, algum espectador, ou mais de um,
se dirige à atriz, não para socorrê-la de um mal físico, mas com o objetivo de
confortá-la - a personagem -, aliviar-lhe o peso daquele sofrimento. É um
momento único, para mim, no TEATRO.
Unem-se, num afago, num abraço, em palavras, a realidade à ficção. Ou seriam
duas realidades ou duas ficções?
Luz.
O cenário,
assinado por AURORA DOS CAMPOS, com
a colaboração de DANI e BEATRIZ, é fascinante. Pensem num “lixão poético”, se é que tal imagem
possa se formar, na mente de quem não viu a peça.
No
centro do palco, apenas um tosco banco estofado, de três lugares, sujo e
manchado, uma minúscula mesinha, ao lado, tudo isso cercado por centenas de
sacos plásticos, cheios de ar, multicoloridos, talvez chegando ou ultrapassar a
casa do milhar. Um detalhe: nesse “caos
poético”, destaca-se uma garça, de louça, representando os animais que
costumam habitar os lixões, além dos urubus e ratos, não presentes em forma
cenográfica. Ventiladores, posicionados estrategicamente, quando acionados, num
determinado momento do espetáculo, provocam uma beleza estética ímpar, quando
as sacolas flutuam, ao sabor do vento, envolvendo, completamente a personagem,
algumas sendo levadas até a plateia. Ou seja, estamos todos no lixão, somos
todos vizinhos de ESTAMIRA.
Não há muita variação de luz, porque isso não se faz necessário, porém TOMÁS RIBAS, como sempre, faz um belo trabalho, na iluminação do espetáculo.
Cenário.
Quanto ao figurino,
de JULIANA NICOLAY, não poderia ser
mais adequado. Lembra o que é usado por pessoas com comprometimentos mentais e
catadores de detritos, com as quais nos deparamos, a toda hora, nas ruas da
cidade. Totalmente dentro do contexto da peça, compõe-se de duas camisetas sobrepostas,
a de cima cheia der aplicações de bugigangas, e uma bermuda surrada. Por cima
de tudo, uma capa de chuva, certamente, tudo garimpado no lixão.
Figurino.
Há, na peça,
uma ótima direção musical, a cargo
de FABIANO KRIEGER e LUCAS MARCIER, além do bom “design” de som, de ANDREA ZENI.
Também marcante, no espetáculo, é a cena, sublinhada por um lindo fado,
em gravação, cantado por Soraya Ravenle.
Além das duas temporadas anteriores, em teatros do Rio de Janeiro, o espetáculo foi apresentado em São Paulo, no SESC Pompéia, em vários festivais, por todo o Brasil, com uma segunda temporada paulista, no SESC Ipiranga, além de apresentações pontuais nos CAPSs (Centro de Atenção Psicossocial)
do Rio de Janeiro, em hospitais psiquiátricos, manicômio judiciário e em universidades, como s PUC do Rio de Janeiro e a UNIRIO.
A peça também marcou os palcos de Portugal
e Espanha, com a mesma receptividade
como sempre foi recebida no Brasil.
Agora,
todos ainda têm tempo de um encontro com ESTAMIRA,
no Teatro Poerira, até o dia 29 de maio (ver SERVIÇO), mas espero que outras
temporadas venham por aí, já que “ESTAMIRA
– BEIRA DO MUNDO” é atemporal e terá, sempre, um grande público interessado
em conhecê-la.
Vida longa a ESTAMIRA e a DANI BARROS!
Desconfiada.
Agressiva ou acusadora?
FICHA TÉCNICA:
Direção e dramaturgia: Beatriz Sayad
Atuação, dramaturgia e idealização: Dani Barros
Trechos de: Ana Cristina Cesar, Antonin Artaud, Estamira Gomes de
Souza, Manoel de Barros, Michel Foucault e Nuno Ramos
Luz: Tomás Ribas
Cenário: Aurora dos Campos, com colaboração de Beatriz Sayad e Dani
Barros
Figurino: Juliana Nicolay
Direção musical: Fabiano Krieger e Lucas Marcier
Design de Som: Andrea Zeni
Assistente de Direção: Marina Provenzzano
Preparação de Ator: Georgette Fadel
Preparação Vocal: Luciana Oliveira (fonoaudióloga)
Voz do fado: Soraya Ravenle
Preparador vocal (Soraya): Felipe Abreu
Técnico, Operador de Luz e Som, Contrarregra: Sandro Lima
Técnico e Operador de Luz: Walece Furtado
Microfonista: Allan Moniz
Boneca: Confeccionada por Getúlio Damado
Projeto Gráfico: Cubículo
Edição de Vídeo: Antonio Baines
Assistente de Cenografia: Camila Cristina
Costureira: Cleide Moreira
Colaborou para esta criação: Ana Achcar
Direção de Produção: Verônica Prates
Produção: Quintal Produções
Gerente de Projetos Quintal: Maitê Medeiros
Assistente de Produção Quintal: Thiago Miyamoto
Coordenação Geral do Projeto: Dani Barros
Realização: Momoenddas Produções Artísticas
SERVIÇO:
Temporada: De 31 de março a 29 de maio (2016).
Local: Teatro Poeira.
Endereço: Rua São João Batista, 104 – Botafogo – Rio de Janeiro.
Endereço: Rua São João Batista, 104 – Botafogo – Rio de Janeiro.
Capacidade: 162 lugares.
Duração: 85 minutos.
Informações: (21) 2537-8053.
Dias e Horários: De 5ª feira a sábado, às 21h; domingo, às 19h.
Valores dos Ingressos: 5ªs e 6ªs feiras = R$50,00 (meia-entrada =
R$25,00)
Sábados e domingos –
R$70,00 (meia-entrada = R$35,00)
Classificação Etária: 12 anos
Invadi o “lixão póético”, com Dani Barros.
(Foto particular.)
Com direito a efeito especial.
(Foto particular.)
Uma honra e grande alegria para mim.
(FOTOS:
BÁRBARA COPQUE,
FELIPE
ARAÚJO LIMA,
ADRIANO
HORTA, EMI HOSHI
e
LUÍS ALBERTO GONÇALVES – DIVULGAÇÃO.)
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