“VESTIDO DE NOIVA”
ou
(NADA É TÃO
“TRANSGRESSOR”,
QUE NÃO POSSA
SE TORNAR
MAIS AINDA.”)
Desde quando me entendo como um ser pensante e apaixonado
pela arte de representar, venho construindo e alimentando uma relação de “amor e ódio”
com NELSON RODRIGUES, amplamente
incensado, por muita gente, como um “gênio” e afins, mas que, para mim,
jamais foi enxergado como tal, ainda que eu aprecie algumas de suas obras;
poucas. Nunca tive a menor vergonha, constrangimento ou medo de “ser
cancelado” por minha posição. Para compensar - Seria necessário? –
afirmo, peremptoriamente, que sou um declarado fã de sua escrita como
cronista. Da vasta produção teatral, composta por 17 peças, agrupadas, por seus estudiosos em “peças psicológicas” ("A Mulher sem Pecado", 1941; "Vestido de Noiva", 1943; "Valsa Nº 6", 1951; "Viúva, porém Honesta", 1957; e "Anti-Nelson Rodrigues", 1974), “peças
míticas” ("Álbum de Família", 1946; "Anjo Negro", 1947; "Senhora dos Afogados", 1947; e "Doroteia", 1949.)
e “tragédias
cariocas” ("A Falecida", 1953; "Perdoa-me por me Traíres", 1957; "Os Sete Gatinhos", 1958; "Boca de ouro", 1959; "O Beijo no Asfalto", 1960; "Bonitinha, mas Ordinária", 1962; "Toda Nudez Será Castigada", 1965;
e "A Serpente", 1978.) só aplaudo, e por
elas me interesso, as que estão destacadas em vermelho.
Basta uma acurada pesquisa nos noticiários dos órgão de imprensa
de 1943,
para se ter uma ideia do que representou, e até hoje representa, no panorama cultural brasileiro, a peça aqui
comentada, “VESTIDO DE NOIVA”,
quase que considerada, por unanimidade, a OBRA-PRIMA do dramaturgo, bem como saber
e entender como ela foi recebida, quando de sua estreia no Theatro Municipal do Rio de
Janeiro, para uma plateia de 2205 espectadores, na noite de 28 de
dezembro de 1943, sob a direção de Zbigniew
Marian Ziembiński, mais conhecido apenas
como Ziembinski, ator e diretor polonês, naturalizado brasileiro, apontado como um dos fundadores do moderno TEATRO
BRASILEIRO, exatamente por essa montagem. O velho Zimba, como,
carinhosamente, o chamávamos, foi a primeira pessoa a me ensinar as primeiras
noções de interpretação, motivo de muita honra para mim. Foi um grande privilégio tê-lo como MESTRE.
Sua leitura do texto de NELSON RODRIGUES
levou-o a equacionar os vários planos propostos pelo dramaturgo, que contrastam
entre o imaginário, o sonho e a realidade, de forma
brilhante, aliada à cenografia de Tomás Santa Rosa, descrita em três planos espaciais
diferentes. O espetáculo foi apresentado por um grupo amador, “Os
Comediantes”.
Segundo
o jornalista Augusto Rodrigues, irmão de NELSON, “O primeiro
dos três atos transcorreu diante de uma plateia perplexa – houve poucas palmas ao
final. O autor mantinha-se escondido no camarote, transido de timidez, numa
expectativa dilacerante, temendo que o público não entendesse nada. Terminado o
segundo ato, os aplausos foram ainda mais escassos. Mas, ao
final do espetáculo, após uma pausa, que, a NELSON, deve ter parecido interminável,
explodiram as palmas em todo o Theatro. Foi uma unanimidade”.
SINOPSE:
Depois de discutir com a irmã, Lúcia,
a personagem principal desta trama, Alaíde, originária da alta classe
média carioca, foi atropelada por um automóvel em alta velocidade, nas
proximidades do Relógio da Glória, no Rio de Janeiro, e, no hospital, em
estado de choque, relembra momentos de seus 25 anos de vida,
misturando-os ao puro delírio.
A memória dos embates travados com a
irmã, sua rival no amor de Pedro – o homem com quem Alaíde
se casou -, e as fantasias alimentadas, a partir da leitura do diário de Madame
Clessi, uma figura enigmática, prostituta elegante, morta em 1905,
assassinada por um namorado, estudante de 17 anos, constituem o argumento desta obra, sem
dúvida alguma, bastante folhetinesco.
As alucinações de Alaíde
comportam um plano, engendrado por Lúcia e Pedro, para matá-la, e a
lembrança do que havia lido num diário deixado por Madame Clessi, na casa
onde a prostituta morava.
Lembranças e alucinações se
materializam, fragmentariamente, sobre a cena, enquanto, no plano da realidade,
Alaíde
agoniza na mesa de operações, em meio a seus sonhos inconscientes e desejos
inconfensáveis, contando com Clessi, na busca pela reconfiguração
de sua própria identidade.
Estaria, de verdade, o público de 80
anos atrás preparado para entender a peça, por conta de sua complexa
arquitetura dramatúrgica? E a plateia de hoje? Será que as cerca de 150
pessoas que vêm assistindo, a cada sessão, à montagem alvo desta crítica,
no Teatro
II do CCBB – RJ, estariam? Entendem o que veem no
palco? Tenho lá minhas dúvidas, entretanto sou testemunha de um depoimento
lindo, ouvido no elevador, após eu ter assistido ao espetáculo, no último dia
21: “Não entendi nada da história. Tudo muito confuso! Mas gostei do
Teatro.”. Certamente, aquela espectadora estava se referindo à encenação,
à proposta que nos traz o Grupo Oficcina Multimédia (GOA), de Belo
Horizonte. Acredito que muita gente – muita mesmo – deva ter a mesma
opinião daquela espectadora. E é muito natural que assim seja, uma vez que o
texto é, realmente, bastante complexo, hermético demais, para ser compreendido com
fluidez. Acrescente-se um fato curioso, que pode estar afeto a isso.
Nascido em 1949, não fui, obviamente, testemunha ocular da estreia
nacional da peça, mas, ao longo da minha vida, tive a oportunidade de assistir
a umas quatro ou cinco montagens do texto, contando com esta, e, em cada uma
delas, sempre noto um desejo, ou, pelo menos, uma “preocupação”, por parte
de quem as dirige, de ser mais original e criativo que Ziembinski. No mínimo, diferente.
E não vejo
isso, absolutamente, como algo negativo; muito pelo contrário. Acredito,
piamente, que montar esta peça seja um grande desafio para todos os diretores
que se propuserem a fazê-lo. E não é tarefa para ser encarada por qualquer um.
Há de ser para quem tem muito talento, criatividade e uma boa bagagem
profissional que o gabarite a tal feito, como é o caso de IONE DE MEDEIROS.
Ione de Medeiros.
(Foto: Fábbio Guimarães.)
Se, no subtítulo desta crítica, escrevi que “NADA É TÃO ‘TRANSGRESSOR’,
QUE NÃO POSSA SE TORNAR MAIS AINDA.”, vejo-me na obrigação de
justificá-lo. A concepção de espetáculo que IONE DE MEDEIROS houve por bem aplicar nesta encenação é
potencialmente arrojada, o que acaba podendo gerar mais confusão nas mentes dos
espectadores. E, aqui, mais uma vez, faço questão de realçar que só
vejo mérito nessa opção. Não importa se a pessoa não tenha conseguido
decodificar uma história linear, a que estamos todos acostumados, com começo,
meio e fim definidos, entretanto o reconhecimento da beleza e da originalidade
do espetáculo e o profissionalismo de todos os envolvidos no projeto não passam
despercebidos. Jamais passarão.
Os
quatro atores e as duas atrizes do elenco -
CAMILA FELIX, HENRIQUE TORRES MOURÃO, JONNATHA HORTA FORTES, JÚNIO DE CARVALHO, PRISCILA NATANY e VICTOR
VELLOSO (por ordem alfabética) –
não vivem personagens únicos, revezando-se, ora em papéis de seu mesmo sexo ou
homens vivendo personagens femininas, numa proposta de duos e trios. Ademais,
como um fator que faz a trama ser colocada de forma mais intrincada,
labiríntica, a diretora, fazendo uso de uma técnica a que chamo de “espelhamento”,
por desconhecimento de outro termo técnico mais apropriado a ele, põe em cena
as duas atrizes vivendo a mesma personagem, com um detalhe curiosíssimo e
bastante intrigante: CAMILA FELIX e PRISCILA NATANY são extremamente
parecidas, fisicamente, incluindo o corte de cabelo, a ponto de eu achar que
fossem gêmeas. Tudo me leva a concluir que o trabalho de visagismo tenha sido
intencional, nesse sentido. Ainda que eu considere muito bom o trabalho do
sexteto, meus aplausos mais prolongados e efusivos vão para essas duas magníficas atrizes,
as quais ainda foram muito bem treinadas para realizar movimentos harmônicos e
totalmente sincronizados, como se cada uma estivesse posicionada à frente de um
espelho.
Pelo
fato de lidar com a realidade do inconsciente e com uma total desordem
cronológica, a peça oferece, a quem a dirige, uma gama de possibilidades de se
deixar desafiar na construção de uma dinâmica de montagem a qual, ainda que complexa,
também se constitui num outro desafio, para o público, na tentativa de este conseguir atingir um nível de cognição das distintas camadas de acontecimentos, do ponto
de vista temporal e espacial, sendo obrigado a sair de sua zona de conforto.
Neste espetáculo, o público passa da passiva posição de um espectador dos fatos
a uma ativa participação, na busca da decifração de enigmas e mistérios.
A
dramaturgia original da obra é preservada, porém a encenação conta com
elementos do universo tecnológico, muito bem marcada pela presença de um
narrador, em vídeo, auxiliando, na junção dos pontos, a conduzir a história.
Ele é uma espécie de “dono” de um “quebra-cabeça”. A
propósito, todo o material projetado, durante os 90 minutos de duração do
espetáculo é de estupenda qualidade. Vejo-me na obrigação de dizer que todo o
aparato tecnológico utilizado nesta encenação, além de apurada qualidade,
reforça o trabalho artístico, propriamente dito. Não há uma única falha nas
entradas e interrupções das imagens e gravações. Mérito para quem criou o material e para os técnicos que operam luz e som.
A
cenografia,
uma concepção de IONE DE MEDEIROS, também
é surpreendente e serve muito bem, a cada cena, a partir de uma intensa e
frenética mobilidade das peças que a compõem: macas, montadas sobre rodinhas, e
cadeiras, basicamente. É, ainda, IONE
a responsável pelo excelente conjunto de figurinos da peça.
Praticamente,
tudo, nesta montagem, merece destaque, é digno de aplausos. A iluminação
não fica de fora. BRUNO CEREZOLI
criou um desenho de luz que “flerta” com o onírico e, também,
cria zonas de sombras, em contraste com áreas muito bem iluminadas, gerando
belas imagens plásticas. A trilha sonora, concebida, a quatro
mãos, por FRANCISCO CESAR e IONE DE MEDEIROS, tem papel
fundamental na criação de criar diferentes climas para as cenas.
CAMILA FELIX, HENRIQUE TORRES MOURÃO, JONNATHA HORTA FORTES, JÚNIO DE CARVALHO, PRISCILA NATANY e VICTOR
VELLOSO (por ordem alfabética)
fazem parte do fabuloso (NELSON RODRIGUES utilizava, à farta,
o adjetivo “fabuloso”.) elenco da peça, todos atuando afinadamente, o que não me impede de destacar o trabalho das duas atrizes. O
sexteto sabe como explorar seu potencial interpretativo, quer pelo que dizem,
quer pelo que expressam corporalmente. Aqui, cabe espaço para um aplauso a JONNATHA HORTA FORTES, por seu trabalho
de preparação
corporal.
FICHA TÉCNICA:
Texto: Nelson Rodrigues
Direção: Ione de Medeiros
Assistência de Direção: Jonnatha Horta Fortes
Elenco (por ordem alfabética): Camila Felix, Henrique Torres Mourão,
Jonnatha Horta Fortes, Júnio de Carvalho, Priscila Natany e Victor Velloso
Elenco em vídeo: Alana Aquino, Heloisa Mandareli, Henrique Torres Mourão,
Hyu Oliveira, Jonnatha Horta Fortes e Thiago Meira
Concepção Cenográfica: Ione de Medeiros
Figurino: Ione de Medeiros
Assistência de Figurino: Jonnatha Horta Fortes
Criação de Luz: Bruno Cerezoli
Preparação Corporal: Jonnatha Horta Fortes
Coordenação de Montagem de Luz: Piccolo Teatro Meneio
Operação de Luz: Tahyssa Carvalho
Concepção de Trilha Sonora: Francisco Cesar e Ione de Medeiros
Mixagem e Finalização de Áudio: Henrique Staino - Sem Rumo Projetos Audiovisuais
Operação de Trilha Sonora: Eduardo Shiiti e Francisco Cesar
Vídeo - Concepção e Edição: Henrique Torres Mourão e Ione de Medeiros
Finalização de Vídeo: Daniel Silva
Citações no Vídeo: Performance “Ophelia”,
vídeo de Gabriela Greeb; “Ondina”,
performance de Luanna Jimenes, vídeo de Gabriela Greeb
Coreografia “Tango Queer” -
Tango Fem Buenos Aires (Nancy Ramírez y Yuko Artak)
Operação de Vídeo: Daniel Silva
Projeto Gráfico: Adriana Peliano
Fotografia: Netun Lima
Assistente de Fotografia: Yan Lessa Lema
Assessoria de Imprensa: Paula Catunda
Gerenciamento Financeiro e Prestação de Contas: Roberta Oliveira — MR
Consultoria
Produção Local RJ: Delas Cultural – Monique Vaillé
Assistente de Produção: Wil Thadeu
Apresentação e Patrocínio: Banco do Brasil
Realização: Governo Federal
SERVIÇO:
Temporada: De 11 de outubro a 05 de novembro de 2023.
Local: Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) Rio de Janeiro – Teatro
II.
Endereço: Rua Primeiro de Março, nº 66 – Centro (Candelária) – Rio de Janeiro.
Informações: (21)3808-2020 | ccbbrio@bb.com.br
Dias e Horários: De quarta-feira a sábado, às 19h; domingo, às 18h.
Valor dos Ingressos: R$30,00 (inteira) e R$ 15,00 (meia-entrada).
Estudantes, maiores de 65 anos e Clientes Ourocard pagam meia-entrada.
Ingressos na bilheteria física: De quarta a segunda-feira, das 9h às 21h
(exceto aos domingos, cujo encerramento é às 20h), e no
site bb.com.br/cultura
Capacidade do Teatro II: 153 lugares.
Classificação Etária: 14 anos.
Duração: 90 min.
Gênero: Drama.
Desnecessário é dizer o que representou, de negativo, a
pandemia de Covid-19, em todos os setores e sentidos, contudo, de certa
forma, ela também deixou fragmentos positivos e um deles, certamente, é esta
montagem de “VESTIDO DE NOIVA”,
partindo-se do princípio de que o espetáculo começou a tomar forma durante
aquele período, tendo o processo se intensificado, de forma remota, durante o tempo de isolamento. Graças a essa contingência, a diretora e o elenco foram
descobrindo possibilidades de erguer um espetáculo de TEATRO apoiado na tecnologia, a partir de seus telefones celulares,
sendo que muito do material gravado naquele momento acabou sendo aproveitado no
espetáculo, depois de pronto.
A
passagem do GOM pelo Rio de Janeiro marca quatro
comemorações: os 45 anos de atuação ininterrupta da companhia de TEATRO
mineira, 40 anos de direção artística de IONE DE MEDEIROS, 34 anos de atuação do CCBB
– RJ e 80 anos da primeira encenação de “VESTIDO DE NOIVA”. A peça aportou nesta EX-Cidade
Maravilhosa, depois de uma temporada de estreia, com sessões esgotadas,
na unidade do CCBB - BH, e outra, na unidade SP. Tão logo seja
encerrada a temporada carioca, a peça entrará em cartaz no CCBB – Brasília.
Recomendo, com o maior
empenho, esta produção.
FOTOS: NETUN LIMA
VAMOS AO TEATRO!
OCUPEMOS TODAS AS SALAS DE ESPETÁCULO DO BRASIL!
A ARTE EDUCA E CONSTRÓI, SEMPRE; E SALVA!
RESISTAMOS SEMPRE MAIS!
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