segunda-feira, 23 de outubro de 2023

 

“QUANDO O DISCURSO

AUTORIZA A BARBÁRIE”

ou

(COM A CHANCELA,

O AVAL, DO ESTADO.)

ou

(“A MINHA VOZ

CONTINUA A MESMA”,

MAS A BARBÁRIE...

...IDEM.)

 

 



 

         Fazia bastante tempo que eu, morador do Rio de Janeiro, já ouvia falar, sempre muito bem, de uma Companhia de TEATRO, fundada, e em exercício, na maior favela (Odeio o tal do “politicamente correto” “comunidade”.) de São Paulo e uma das maiores do Brasil, Heliópolis, localizada na zona oeste da capital paulista, com, aproximadamente 1 milhão de metros quadrados, a 8 km do centro, com mais de 200 mil habitantes. Minha rica experiência com grupos de TEATRO oriundos de favelas, no Rio de Janeiro (Vidigal, Maré, Complexo do Alemão e Rocinha) sempre foi a melhor possível. Acredito, e muito, no potencial artístico e criativo dessa gente que “rala” tanto, para conseguir sobreviver e que procura, na ARTE, mais propriamente no TEATRO, uma válvula de escape, para muitas coisas, principalmente fazer denúncias contra toda a sorte de preconceito, violência e “cancelamento” que sofrem, quer tenha sido pela exploração e dizimação dos indígenas, quer pelo perverso uso mão escrava, pela perseguição da Polícia, ou, ainda, pela exploração das riquezas naturais a qualquer custo e da repressão na ditadura militar.






No ano passado, vislumbrei a oportunidade pela qual tanto ansiava, de conhecer o trabalho da Companhia de Teatro Heliópolis, muito interessado em assistir à peça “Cárcere ou Porque as Mulheres Viram Búfalas”, que já me atraía pelo título e pela sinopse, a qual tanto sucesso fez na capital paulista, com alguns prêmios conquistados, posteriormente, porém, em duas das vezes quando visitei São Paulo, em 2022, durante o período em que a peça esteve em cartaz, não consegui conciliar a minha agenda com a deles e, infelizmente, não pude assistir ao espetáculo. Quiseram, porém, os DEUSES DO TEATRO, dos quais sou um “fã” e devoto inveterado, e agradecido, que a peça fizesse parte, este ano, da programação do “31º Festival de Curitiba”, o qual acompanhei, “in loco”, do primeiro ao último dia. Lá, sim, conheci “Cárcere...”, apaixonei-me pela peça, escrevi uma crítica (Eis o “link”:  https://oteatromerepresenta.blogspot.com/2023/05/carc-ere-ou-porque-as-mulheres-viram.html) e já fiquei ansioso por conhecer a montagem seguinte do grupo, “Quando o Discurso Autoriza a Barbárie”, já em andamento, naquele momento, espetáculo sobre o qual estou escrevendo, tomando por base o que os meus olhos viram, meus ouvidos ouviram, minhas mãos aplaudiram e o conteúdo do “release” que, gentilmente, me foi enviado por MIGUEL ROCHA, fundador da Companhia e diretor desta encenação.

 







 SINOPSE:


“QUANDO O DISCURSO AUTORIZA A BARBÁRIE” é uma montagem calcada nas ações corporais, nos movimentos coreográficos e na música, para discutir as barbáries praticadas pelo Estado, desde a colonização até os dias atuais.

A montagem coloca em cena fragmentos de períodos históricos do Brasil que elucidam as barbáries praticadas pelo Estado, “justificadas” e naturalizadas pelo discurso político, nas mais diferentes esferas públicas, e que continuam sendo direcionadas aos mesmos corpos. 

 


 





         Abrindo um dicionário e procurando o verbete “necessário”, encontro cerca de uma dezena de sinônimos, entretanto não vejo nenhum outro vocábulo mais oportuno para classificar o espetáculo, em termos de importância, para uma real leitura da história deste país. O motivo da minha busca ao “pai dos burros” (“Sua bênção, meu pai!” Momento descontração.) foi tentar não me valer de “necessário”, adjetivo usado, à farta, por um amigo, sempre que gosta de um espetáculo de TEATRO a que assiste. Mas fazer o que, se “QUANDO O DISCURSO AUTORIZA A BARBÁRIE” é, realmente, “NECESSÁRIO”?





         Dando seguimento à sua linha de trabalho e produção, a Companhia de Teatro Heliópolis lançou-se a este novo trabalho a partir de uma pesquisa, completa, apurada e detalhada, sobre como o Estado brasileiro, há mais de cinco séculos, desde o início da (DES)colonização portuguesa até o atual cenário político-social, vem “autorizando a barbárie e seus atravessamentos, justificando privilégios, hierarquias e opressões”. Com isso, os artistas da Companhia, tinham em mente “investigar as origens da violência social”, na certeza de que isso “implica compreender como a história se repete: primeiro, como tragédia; depois, como farsa, conforme Karl Marx já assinalara”.





         Naturalmente, quem se propôs a essa iniciativa é consciente de que, como num disco de vinil, há dois lados, A e B, sendo que o A, de tanto ser reproduzido, já está gasto a ponto de quase “furar”, ao passo que, de B, pouco conhecimento se tem, por interesses, quase sempre, escusos. Conhecemos – ou, pelo menos, deveríamos (Ou não?!) - uma versão da História do Brasil, sempre contada sob a ótica de um opressor ou, no mínimo, de um privilegiado. E todos sabemos que, por trás dessa “história oficial”, que não passa de “oficiosa”, muito lixo é varrido para baixo do tapete. E “la nave va...”. Mas, tardiamente, chegou a hora de se passar uma borracha sobre a mentira e trazer a lume a verdade, por mais que ela nos machuque e possa nos provocar, até mesmo uma sensação de culpa, que nos leve a uma expiação.






         O que se vê retratado neste espetáculo, num espaço cênico, é a mais pura verdade; procedimentos e ações que, disfarçadas de “benesses”, não passam de um “conjunto de visualidades e enunciados que sustenta a violência estatal e institucional no Brasil contemporâneo”. Nada das mazelas que nos afligem hoje surgiu do nada, de um estalar mágico de dedos. Tudo vem acontecendo, ao longo de mais de 500 anos, numa progressão geométrica devastadora, que precisa ser interrompida, com a maior urgência. Não é fácil e, também, não será da noite para o dia que uma reação contrária, por parte da sociedade brasileira, logrará êxito total, mas precisa ser logo posta em prática e alimentada, cada vez mais. E a Companhia de Teatro Heliópolis aqui está para “somar alguns tijolos a essa construção”.





         MIGUEL ROCHA, à frente de todos os envolvidos neste lindo e importantíssimo projeto, como encenador, traz a proposta de um espetáculo híbrido, agasalhado por uma “pesquisa ético-estética”, apoiada no “desdobramento de imagens-síntese, em que os corpos das atrizes e dos atores em diálogo com o próprio espaço cênico e suas materialidades compõem o eixo dramatúrgico principal”. Não há, propriamente dita, uma dramaturgia verbal, para narrar os acontecimentos. Neste trabalho, todos os fatos não contados a partir de uma linguagem plástica, na qual é explorada a linguagem corporal do elenco. Seus componentes “constroem partituras com ações corporais e jogo relacional, que potencializa a simbologia da violência, considerando que apenas a palavra pode já não ser elemento suficiente para expor o discurso de forma contundente”. Estamos diante da já comprovada, e boa, tese de que “uma imagem poder falar mais do que mil palavras”, creio que o grande diferencial desta peça.





         Todo o potencial “iconográfico”, o conjunto de “signos imagísticos” ocupa o espaço que, numa montagem tradicional de TEATRO, seria preenchido por signos linguísticos, e é reforçado por uma robustez que lhe agregam valores, representada por um correto desenho de luz, criado por GUILHERME BONFANTI, variando em cores e intensidades, de acordo com a conveniência de mostrar menos detalhes, meio encobertos por sombras, para estimular, quero crer, a imaginação e o senso de observação do espectador, e exibir a exuberância ou escancarar algumas situações, quando isto merece ser destacado.




ELISEU WEIDI nos brinda com uma cenografia bastante impactante, num contraste muito surpreendente e singular, capaz de, até mesmo, causar algum choque aos olhos de algumas pessoas de corações mais “fracos”. Ao fundo, uma exuberante típica floresta tropical, com muito verde e cores vivas, montada com muitas plantas enormes, acomodadas em vasos gigantescos, por trás da qual se pode perceber a presença de uma figura humana, abaixada, uma mulher, em trajes de filha de santo, como que pronta a "abrir os caminhos", para o início do espetáculo. Na frente, ao rés do chão (Não há um palco tradicional, num plano acima da plateia.), no espaço que corresponderia ao proscênio, alguns ataúdes, abertos, onde repousam alguns atores, como se mortos estivessem. Há, ainda, espalhadas pelo espaço cênico, vária mudas de plantas utilizadas na culinária brasileira e em cultos de religiões de matriz africana, que os atores, logo no início, se ocupam em transferir de um lugar a outro. Alguns elementos cenográficos entram em cena, a fim de ajudar na composição de “sets” para determinadas cenas, e são retirados, logo após a sua conclusão. A plateia, ao adentrar o espaço em que é encenada a peça, fica curiosa para ler as dezenas de plaquinhas, espalhadas pelo chão, como nomes de pessoas que foram mortas pela barbárie e pela pandemia de Covid-19, que não deixa de também ser um tipo de, principalmente pela postura GENOCIDA praticada pelo (DES)governo federal de então. Curiosamente, sentei-me bem diante da placa que trazia o nome do ator PAULO GUISTAVO, o qual cunhou a frase O humor salva, transforma, alivia, cura, traz esperança para a vida da gente.”, muito embora, nesta peça, não haja do que se rir.









         SAMARA COSTA criou muitas peças do figurino, bem diversas e totalmente harmônicas, em relação aos personagens que as vestem. Não me pareceu rico, do ponto de vista relativo ao seu custo, entretanto uma vasta riqueza de detalhes curiosos e criativos há neles.





         Outro elemento de fundamental importância, nesta montagem, é a parte musical. Quase toda a encenação é sublinhada por um trilha sonora original, composta a várias mãos (VER FICHA TÉCNICA.), que são excelentes “embalagens” para as cenas. As canções são apresentadas em gravações prévias e, também, executadas, ao vivo, pelos ecléticos músicos ALISSON AMADOR e JENNIFER CARDOSO. PERI PANE e OTÁVIO ORTEGA, assinam como responsáveis por essa trilha. PERI ainda responde pela correta direção musical do espetáculo.      




         Na proposta de “hibridismo” que envolve esta encenação, MIGUEL ROCHA, de forma bem inteligente e profícua, valeu-se de outros recursos de mídia, diversas formas de linguagem, para contar a história de um povo massacrado pela “bênção” do ESTADO à sua condição de um “ser sobrevivente das barbáries contra ele cometidas”, até mesmo como um grande “patrocinador” delas. Têm total relevância, neste trabalho, vídeos e áudios “gravados para compor a dramaturgia”, assim como todo o trabalho de expressão corporal, dança e máscaras faciais, desenvolvido pelo elenco, o diretor, ÉRIKA MOURA (direção de movimento e Ideokinesis) e SAYÔ PEREIRA e FLÁVIA SCHEYE (dança).

 

 




 FICHA TÉCNICA:

Concepção e Encenação: Miguel Rocha

Provocação Dramatúrgica: Alexandre Mate

Provocação Cênica e Texto para Programa: Maria Fernanda Vomero


Elenco: Álex Mendes, Anderson Sales, Dalma Régia, Davi Guimarães, Fernanda Faran, Isabelle Rocha e Walmir Bess

 

Músicos (ao vivo): Alisson Amador e Jennifer Cardoso

 

Direção de Movimento e Estudo da Ideokinesis: Érika Moura

Direção Musical: Peri Pane

Trilha Sonora: Peri Pane e Otávio Ortega

Cenografia: Eliseu Weidi

Figurino: Samara Costa

Assistência de Figurino: Paula Knop

Iluminação: Guilherme Bonfanti

Assistência de Iluminação: Giorgia Tolaini

Preparação vocal: Bel Borges e Edileuza Ribeiro

Dança: Sayô Pereira e Flávia Scheye

Organização de Roteiro e Edição de Vídeo: Gabriel Fausztino

Animação: Teidy Nakao

Sonoplastia e Operação de Som: Lucas Bressanin

Operação de luz: Nicholas Matheus

Operação de vídeo: Allysson do Nascimento

Canções originais: “Invento” (Eunice Arruda e Peri Pane), “Canto de Despedida” (Lucina e Peri Pane), “Liquidação Total” (Peri Pane), “Sobre os Ossos” (Marion Hesser e Peri Pane), “Coro” (Edileuza Ribeiro)

Participações: Catarina Nimbopy’rua, Edileuza Ribeiro e Tata Orokzala

Estúdio / Gravação de Trilha: Estúdio 100 Grilos, por Otávio Ortega

Assessoria de imprensa: Verbena Comunicação

Assessoria Jurídica: Martha Macrus de Sá

Fotografia: Rick Barneschi e Tiago Salgado

Direção de produção: Dalma Régia

Idealização e Produção: Companhia de Teatro Heliópolis

Realização: Sesc São Paulo

 

 


 



Para quem não teve a oportunidade de assistir ao espetáculo, uma ótima notícia: QUANDO O DISCURSO AUTORIZA A BARBÁRIE” está cumprindo uma segunda temporada, CURTÍSSIMA, no Teatro Maria José de Carvalho, sede da Companhia de Teatro Heliópolis no período de 19 a 29 deste mês de outubro, em sessões gratuitas.

 




 SERVIÇO: 

Temporada (CURTÍSSIMA): De 19 a 29 de outubro de 2023.

Local: Casa de Teatro Maria José de Carvalho.

Endereço: Rua Silva Bueno, nº 1.533 – Ipiranga - São Paulo / SP.

Telefone: (11)2060-0318.

Lotação: 80 lugares.

Dias e Horários: 5ªs e 6ªs feiras, e sábados, às 20h; domingos, às 19h.

Valor dos Ingressos: GRATUITOS – Retirada: uma hora antes das sessões.

Reservas “on-line”: www.sympla.com.br

Duração: 90 minutos.

Classificação Etária: 16 anos. 

Gênero: TEATRO Documental / Experimental.


 




         Para encerrar esta modesta apreciação crítica de um espetáculo que RECOMENDO, SEM PESTANEJAR, acho interessante acrescentar algumas informações e comentários:

1)   Não é todos os dias que temos a sorte de encontrar, muito bem encenada, uma peça de TEATRO que se propõe a montar fragmentos de diversos períodos históricos do Brasil, com o objetivo de levar as pessoas a refletir sobre um assunto tão sério, como a triste e irrefutável realidade concernente às barbáries e violências praticadas pelo Estado contra a população brasileira, desde os povos originários, passando pela população escravizada, vindas d’África, e chegando até os que são frutos de uma grande miscigenação, selvageria, brutalidade, incivilidade, bestialidade estas que não podem ficar impunes e, muito menos, serem repetidas.



2)    Com 13 trabalhos no repertório, a Companhia de Teatro Heliópolis é um grupo atuante, reconhecido nacionalmente, que realiza trabalho ininterrupto e consistente, desde o ano 2000. Em 2022, o espetáculo “Cárcere ou Porque as Mulheres Viram Búfalos” foi agraciado com os seguintes prêmios: APCA - categoria Dramaturgia, indicado, também, em Direção; Prêmio SHELL de TEATRO - categorias Dramaturgia e Música, indicado, também, em Direção; VI Prêmio Leda Maria Martins - categoria Ancestralidade; e, ainda, foi indicado, pela Folha de São Paulo, como um dos Melhores Espetáculos de 2022. O grupo, como artistas e, também, moradores da região, tem estabelecido diálogo vivo e dinâmico com o local onde atua.



3)   O SESC São Paulo, na pessoa de seu diretor regional, DANILO SANTOS DE MIRANDA, merece o maior respeito e todos os agradecimentos dos brasileiros, em especial dos paulistanos. DANILO, desde o início de sua gestão, transformou aquela instituição, criada por empresários do comércio de bens, serviços e turismo, com objetivo de proporcionar bem-estar e qualidade de vida aos trabalhadores e seus familiares, numa estupenda potência cultural, de causar inveja a outros países – aqui, só me interessa falar de TEATRO, mas DANILO é um grande fomentador de todos os tipos de ARTE - sempre aberto a patrocinar e apresentar trabalhos dos mais significativos do TEATRO dos nossos dias.



 

 

 

FOTOS: RICK BARNESCHI

e

TIAGO SALGADO

 

 

 

 

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