ANGELS
IN
AMERICA:
PARTE 1: O MILÊNIO
SE APROXIMA
e
PARTE 2: PERESTROIKA
Sim,
é ousado! Sim, é impactante! Sim, é imprescindível! Sim, é
atual! Sim, é utilíssimo! Sim, é muito bem encenado! Sim,
estava fazendo falta, no cenário teatral carioca, algo como “ANGELS
IN AMERICA”, espetáculo que está em cartaz, para, infelizmente, uma
temporada muito curta, no Teatro Riachuelo Rio de Janeiro (VER SERVIÇO).
Trata-se de um “épico gay norte-americano, um dos maiores sucessos
teatrais do planeta nos anos 90, vencedor dos prêmios Tony Award, Drama Desk
Award e Pulitzer Prize, considerado, por muitos estudiosos, como o texto
teatral mais importante dos últimos 50 anos”. Texto escrito, em 1992,
pelo dramaturgo e roteirista norte-americano TONY KUSHNER,
cuja lista de produção dramatúrgica é extensíssima, a peça, por
ser demasiadamente longa, é dividida em duas partes: a primeira
recebeu, no original, o título de “MILLENNIUM
APPROACHES” (“O MILÊNIO SE APROXIMA”, na montagem aqui analisada) e
a segunda, “PERESTROIKA”, título mantido na versão brasileira.
Esta
montagem recebeu o cuidadoso tratamento do diretor PAULO DE
MORAES. Para mim, bateu como a mais recente obra-prima apresentada
pela ARMAZÉM COMPANHIA DE TEATRO, sempre nos surpreendendo, com
trabalhos que vêm marcando sua trajetória, de três décadas, e grande
colaboração para que o TEATRO BRASILEIRO se imponha e seja respeitado,
pelos daqui e pelos estrangeiros. Não é à toa que a COMPANHIA já
participou, a convite, de festivais e apresentações em vários países, levando o
nosso nome e mostrando a pujança do nosso TEATRO.
A
ARMAZÉM foi fundada em Londrina, em 1987, e, ao apagar da
luzes dos anos 90 (1998), coincidentemente (?), quase à entrada de um
novo milênio, a COMPANHIA se transferiu para o Rio de Janeiro,
onde mantém uma sede fixa, na antiga Fundição Progresso, na Lapa,
local no qual ocupa um espaço, para a apresentação de suas peças, das
quais lanço luz sobre “Alice Através do Espelho”, “Casca de Noz”,
“A Caminho de Casa”, “Toda Nudez Será Castigada”, “Mãe Coragem
e Seus Filhos”, “Inveja dos Anjos”, “Hamlet”, “A Marca da
Água” e “O Dia em que Sam Morreu”, principalmente, sem obedecer à
cronologia.
Por ser dividido em duas partes, o espetáculo é um
díptico, conjunto de duas obras que se completam, e está sendo encenado,
pela primeira vez, no Brasil, em sua versão integral (A primeira
parte, “O MILÊNIO SE APROXIMA”, foi montada, em São Paulo, em 1995.),
com 5 horas de duração, apresentada em dois formatos: como duas
peças autônomas, que podem ser vistas em dias alternados, e como uma grande
peça, com as duas partes encenadas juntas, contando com um intervalo entre
elas. Uma sugestão: assisti às duas partes no mesmo dia e acho que é o
melhor que se faz, para que não se perca o clima do final da primeira, o que
será muito difícil recuperar, em outro dia, para o início da segunda. Não é
nenhum sacrifício, pra quem aprecia o bom TEATRO. O tempo passa, sem que o
percebamos; fluem, na mesma velocidade, os tempos cronológico e psicológico.
O espetáculo teve sua estreia nacional, em maio
de 2019, em São Paulo, no Teatro Antunes Filho, e, logo, se
tornou uma das maiores atrações da temporada teatral paulista do primeiro
semestre, grande sucesso de público e de crítica. No Rio de Janeiro, a montagem
pode ser vista nas seguintes opções: Parte I: O Milênio, às 6ªs feiras, às
20h, e sábados, às 17h; Parte II: Perestroika, aos sábados, às 20h e domingos,
às 18h. As duas partes somam aproximadamente 5 horas de duração.
Fazendo
uso do “release”, enviado por NEY MOTTA (CONTEMPORÂNEA
COMUNICAÇÃO), “‘ANGELS IN AMERICA’ se passa na década de 1980, em
Nova York, durante a chamada ‘Era Reagan’ e quando a AIDS assolava a cidade,
como uma espécie de epidemia. Mas Nova Yorque, aqui, pode ser qualquer um desses
lugares densamente povoados, lotados, onde é fácil pensar que a pessoa ao seu
lado, no metrô ou no elevador, ou mesmo na cama, pode estar do outro lado do
mundo. Há uma pressa, uma urgência,
nesse ir e vir constante, da grande cidade, que parece não permitir o tempo
estendido de se conectar ao outro. Mas, apesar e por conta disso, as
personagens arrebatadas de TONY KUSHNER – cheias de dor, medo e uma frágil
esperança – tentam fazer contato dentro deste abismo”.
SINOPSE:
Deus abandonou o paraíso.
Na terra – mais especificamente na cidade de Nova Iorque
– um novo profeta está para surgir.
O ano é 1985, o milênio se aproxima
rapidamente, e PRIOR WALTER (JOPA MORAES) é o profeta que se erguerá dos
destroços deste terrível século. Mas ele tem problemas maiores. Com apenas
trinta anos, acaba de ser diagnosticado com AIDS. Seu namorado, LOUIS
IRONSON (LUIZ FELIPE LEPREVOST), é incapaz de lidar com a progressão dos
sintomas. O vômito, as feridas, a doença o apavoram de tal modo, que ele decide
se mudar e deixa PRIOR. Sozinho, no apartamento, PRIOR – o
profeta – tem sonhos febris, quando ouve uma voz angelical, que chama por ele.
Paralelo a isso, o famoso advogado ROY COHN
(SÉRGIO MACHADO) – uma figura que, realmente, existiu, – também recebe, de
seu médico, a notícia de que está com AIDS. Perverso e ultraconservador,
esconde sua homossexualidade e sua doença. Por mais temido e influente que seja
em todo o país, é a primeira vez que COHN se depara com algo que não
pode controlar. O todo poderoso se vê fraco.
O pupilo de ROY, JOE PITT (RICARDO MARTINS),
é mórmon e trabalha no Tribunal de Apelação, como chefe de gabinete há
cinco anos. ROY oferece a ele um cargo importante, no Departamento de
Justiça, em Washington, para que JOE o beneficie em um
processo, que visa expulsar COHN da Ordem dos Advogados. JOE
se vê dividido entre a carreira e seus princípios éticos. Além disso, seu
casamento com HARPER (LISA EIRAS) não vai nada bem. A criação religiosa
fez com que JOE nunca assumisse sua homossexualidade e, para aplacar a
depressão da relação, HARPER ingere quantidades enormes de Valium,
buscando refúgio em suas alucinações. Num momento de crise, JOE liga
para a mãe, HANNAH (PATRÍCIA SELONK), e conta a ela que é “gay”.
HANNAH o repreende, veementemente, durante a ligação, mas, dias depois,
vende a casa, em Salt Lake City, onde morava, e chega a Nova Yorque,
para descobrir que o filho sumiu. Ele deixa HARPER, para viver com LOUIS
– que trabalha no tribunal, como digitador – a sexualidade que sempre reprimiu.
JOE – advogado, mórmon, republicano – personifica a América que
LOUIS abomina, mas um improvável elo se forma entre eles, uma paixão
sexual e poderosa.
PRIOR está desolado, sem alguém do seu lado. Perdeu muitos amigos para a
AIDS, nos últimos tempos e teme ser o próximo. No auge da doença e da
febre, um ANJO desce dos céus e aparece em seu quarto. O ANJO (MARCOS
MARTINS) é, de certa forma, assustador. Ele explica que o movimento da
espécie humana – sua incapacidade de se manter parada, de não se misturar – seria
a causa dos males do mundo e do desaparecimento de Deus.
PRIOR é o escolhido, para restabelecer a paz, cessando todos os
movimentos migratórios da humanidade. Ele faz de tudo para rejeitar sua
profecia, torna-se, progressivamente, mórbido e amargurado, causando
preocupação em seu amigo BELIZE (THIAGO CATARINO), que tenta ajudá-lo a
lidar com a rejeição de LOUIS e a cuidar da saúde debilitada.
BELIZE é enfermeiro e trabalha no turno da noite no hospital em que ROY
é internado. Negro, “gay” e “ex-drag queen”,
conhece bem as feridas profundas causadas pelo avanço da política e do
pensamento neoliberal defendidos por ROY COHN.
Isolado e enfraquecido, ROY recebe a visita de
uma velha conhecida, o fantasma de ETHEL ROSENBERG (PATRÍCIA SELONK),
que fora condenada à cadeira elétrica, nos anos 50, graças à influência
do advogado na época do macarthismo, política que pregava o controle e a
imposição de penalidades contra aqueles que tivessem algum envolvimento com
“atividades antiamericanas”, os “comunistas”. Uma caça às bruxas.
O que fazer diante de um sofrimento arrasador? Como
sobreviver a uma época monstruosa? É preciso parar ou devemos manter as nossas
vidas em constante movimento?
A extensa sinopse – e não poderia ser de outra
forma – deixa clara a complexidade do enredo, bem como a necessidade de
o espectador se manter bem atento às ações, para que compreenda a trama, não
perca nenhum detalhe e possa fazer as suas reflexões, a partir de analogias.
Ainda que passada no final do século XX, “ANGELS
IN AMERICA”, uma “peça especial”, pode ser considerada muito atual,
por conta do “colapso em que o mundo se encontra hoje”,
provocando reflexões acerca da visão de mundo do Ocidente, por parte de
seus habitantes, sobre religiões, política, relações afetivas, abandono, sexo,
medo da morte, covardia, crueldade, História... “Há um sentido de
devastação se alastrando por toda a peça. Mas o resultado cênico é um movimento
constante, personagens se fazendo vivos por estarem em movimento. Embora haja
um cheiro de realidade permanente, a nossa montagem não é nada realista. Usamos
um espaço nu, aberto. E, pairando sobre esse espaço aberto, um grande teto
branco, uma espécie de asa geométrica, como um anjo pairando sobre a história.
Fora isso, usamos pouquíssimos elementos em cena, para que os corpos dos atores
sejam determinantes para a narrativa, e a imaginação do público seja cúmplice e
finalizadora do acontecimento estético”, comenta o diretor PAULO
DE MORAES.
Enganam-se aqueles que pensam que a peça, tão
somente, gira em torno da epidemia de AIDS, inicialmente chamada de “câncer
gay”, o “castigo de Deus, para os sodomitas”, surgida, com grande
ênfase, em Nova Iorque, na década de 80, muito embora a doença e
todos os estragos e prejuízos, físicos e morais, contidos no bojo de suas
consequências sirvam de pontapé inicial, de eixo, para que o autor
tecesse uma trama que, no meu entender, representa um dos melhores exemplos de arquitetura
dramatúrgica que conheço, centrada em três polos, por assim dizer,
que se entrelaçam, de forma orgânica, muito bem ajustada: alguém, PRIOR
WALTER descobre que tem AIDS e é deixado pelo namorado, LOUIS;
o, agora, ex-namorado, então, se envolve com um advogado, JOE, que é
mórmon e casado com uma mulher deprimida, em função de um casamento fracassado,
HARPER, e viciada em Valium; JOE trabalha para um famoso,
perverso, inescrupuloso e conservador advogado, ROY COHN, que também
recebe a notícia de que está com AIDS. E como tudo isso se junta e para
quê?
O autor do texto apropria-se da epidemia
de AIDS e a utiliza, como mote, para fazer desfilar polêmicas discussões,
conflitos ligados a vários assuntos, como homofobia; questões raciais,
incluindo imigração; liberdade sexual; preconceitos religiosos; efeitos danosos
causados pelas drogas; nacionalismo exacerbado, ufanismo patriótico; sentimento
de perda, abandono, traição e solidão; há espaço, até, para que se discutam as
mudanças climáticas, na Big Apple do anos 80, e, obviamente, no mundo
inteiro, causadas pelo aumento do “progresso” (emissão de gases tóxicos,
rompimento na camada e ozônio e aquecimento global, por exemplo), que
persistem, até hoje, a olhos vistos, percebidos e sentidos pela comunidade
terráquea, menos pelo atual presidente norte-americano e seus seguidores.
Não tenho a menor ideia de como tenha sido a mais recente
montagem da Broadway, estreada em 2017, entretanto sei,
por amigos que viram as duas, que elas são bastante distintas, a começar pelo
enxugamento do tempo. A original durava cerca de sete horas; aqui, gira
em torno de cinco, o que, na visão dos privilegiados que assistiram às duas,
em nada compromete a narrativa ou torna a nossa inferior àquela, no que
acredito piamente.
A peça é, sem a menor dúvida, política, no sentido
mais amplo do adjetivo, e acusatória, e isso fica bem claro, no texto,
que mostra o desejo do autor de lançar um olhar crítico para o governo
conservador e elitista do, então, presidente Ronald Reagan, cujo segundo
mandato foi marcado, principalmente, por assuntos internacionais, tais
como o término da Guerra Fria, o bombardeio da Líbia e a revelação do Caso Irã Contras, além de ter apoiado os movimentos anticomunistas
em todo o mundo. Como bom conservador, orgulhava-se de ter restaurado “o
orgulho e da moral norte-americana”.
Com
relação à epidemia de AIDS, durante os dois governos, seus críticos
afirmam que ele a “permitiu”,
não se importando ou não se dando conta do grau de periculosidade do mal,
ignorando-o. Teria sido “uma omissão grave”,
por homofobia e/ou ignorância. Ao que tudo indica, por seus rígidos e
conservadores princípios, REAGAN parecia fazer coro com os que viam, na AIDS,
“a vingança da natureza contra os ‘gays’”, como chegou a dizer,
numa declaração, o seu porta-voz. Perversamente, “a
doença era perfeita para sua visão de mundo homofóbica e foi utilizada, por ele,
para atender a sua base eleitoral
cristã-fundamentalista-conservadora-de-direita e seus preconceitos e aversões a
homossexuais”. Segundo fontes da época, e isso está registrado, “apesar,
mês após mês, do aumento assustador das taxas de infecção e do pedido de
pesquisadores e profissionais, de todos os níveis da área de saúde, para
fornecer dinheiro para a pesquisa da doença, o governo Reagan reagiu com
indiferença”. Esse comportamento, totalmente
incompatível com o cargo que ocupava, chega a ser assustador. Quando, em 1º
de fevereiro de 1983, já haviam sido registrados 1.025 casos de AIDS,
e, pelo menos, 394 mortos, somente nos EUA, Reagan
permaneceu calado e assim continuou se comportando, quando, cerca de um ano
mais tarde, o Centro Americano de Controle e Prevenção de Epidemias
relatava 4.177 doentes de AIDS e 1.807 mortos. O silêncio de Reagan
era o mesmo que silenciava a vida dos infectados. Nem quando o consagrado ator
e galã de Hollywood Rock Hudson morreu de AIDS, provocando uma
comoção mundial, Reagan se abalou ou fez algum pronunciamento. “Em
1985, o congressista democrata Henry Waxman escreveu, no Washington Post, que ‘é
surpreendente que o presidente fique calado, apesar de 6.000 americanos
morrerem, e que ele possa ignorar a existência de uma epidemia. Talvez seus
conselheiros estejam convencidos de que ele não tem escolha, porque a Nova
Direita juntou fundos justamente através de um sentimento anti-gay’”.
“A
administração Reagan – diretamente questionada sobre o tema em 1982 – levou
tudo para o ridículo, para a piada. Enquanto isso, o Centro Americano de
Controle e Prevenção de Epidemias tinha pouquíssimos recursos disponíveis para
lutar, efetivamente, contra a propagação da doença nos EUA. E faltava, também,
um plano geral de controle da epidemia. Somente no final do seu segundo mandato
– maio de 1987 – Reagan deu suas primeiras palavras sobre o tema, na 3ª
Conferência Internacional sobre AIDS, em Washington. Naquele momento, 36.058
cidadãos americanos já haviam sido diagnosticados com AIDS e 20.849 já tinham
morrido em decorrência do vírus HIV. A doença já havia se espalhado para 113
países e matara mais de 50.000 pessoas”.
“Demorou
13 anos até que o, então, presidente dos EUA, Bill Clinton, declarou a AIDS
como um ‘inimigo de Estado’ dos EUA. ‘A epidemia podia derrubar governos, criar
caos na economia mundial e provocar conflitos étnicos’, assim explicou Clinton
sua decisão. Seu governo disponibilizou amplos fundos para a pesquisa e
prevenção da AIDS. Mas, de certa forma, já era, naquele momento, tarde demais,
uma vez que o correr de anos a fio de recusa deliberada do governo americano,
sob o comando de Reagan, em reconhecer seu perigo para a população, facilitou a
propagação da epidemia de forma significativa”.
O
comportamento de Reagan, com relação ao flagelo da AIDS, põe em
destaque o drama particular de homossexuais, principalmente, vivendo a rápida
disseminação da doença, inserido numa “atmosfera moralista e conservadora
na política dos Estados Unidos, em meados dos anos 1980, moldando a
sociabilidade do país. É um ambiente no qual o vírus, visto, inicialmente, como
‘castigo divino à sodomia praticada pelos gays’, encontrou condições não apenas
biológicas, mas também sociais para se proliferar”.
Chamando a atenção para o fato de quão magnífico é o texto, passo a falar sobre os
demais elementos que, reunidos, geraram um dos melhores espetáculos deste
ano, até o presente momento, na temporada teatral carioca de 2019.
Sobre
a direção, de PAULO DE MORAIS, considero bem criativa e dinâmica,
principalmente para um espetáculo de longa duração e de complexidade
textual, por concentrar, numa só narrativa, várias outras. PAULO
consegue arrumar as coisas, de modo a propiciar um conforto, para os
espectadores, no que diz respeito à compreensão da trama e à captação das
mensagens camufladas nas entrelinhas. Acho ótima a ideia de deixar as coxias à
mostra e manter alguns atores em cena, mesmo que dela não participem
diretamente, assim como um constante movimento de entradas e saídas dos personagens.
O diretor utiliza, nesta montagem, uma estética personalíssima,
marca registrada de suas montagens, extraindo o máximo de cada ator,
partindo de um relacionamento profissional de um bom tempo, o que o leva a
conhecer os limites de cada um, procurando, porém, que estes se dilatem.
Na opção por utilizar um mínimo de elementos
cenográficos, um grande ponto alto, nesta encenação, num palco de
grandes proporções, PAULO DE MORAES e CARLA BERRI, responsáveis
pela cenografia, provocam e estimulam o espectador a “ver” bem mais do
que está concretamente visível, em cena. As locações são sugeridas,
praticamente, e cada um enxerga o que quer. Basicamente, de forma física,
ocupam o espaço cênico dois extensos bancos de madeira, alguns ventiladores, uma
plataforma móvel e um colchão. No teto, uma grande tela, para receber
projeções. Há, ainda, alguns pequenos objetos de cena que pontuam uma ou outra
cena, nada de tão significativo, porém indispensáveis ao momento.
São palavras do diretor/cenógrafo: “A cenografia sempre foi determinante para
mim e virou uma característica forte do Armazém. Mas a peça tem uma quantidade
enorme de locações. Nas montagens da Broadway, em que os cenários se alternam,
ela chega a quase sete horas de duração. Então, optamos pelo jogo entre os
atores e a imaginação do público, para criar estes ambientes, nos despojamos de
recursos cênicos e de composição, para privilegiar esta relação que está na
base do teatro”. Penso ter sido essa intenção de muito bom gosto e plena de
inteligência criativa.
Com
relação aos figurinos, assinados por CAROL LOBATO, considero-os
bem ajustados aos personagens, de muito bom gosto, discretos, que não “aparecem”,
provocativamente, de forma correta, servindo, porém, com muito acerto, para a
caracterização de cada um, insertos na época em que se passa a trama.
MANECO
QUINDERÉ criou um desenho de luz bastante a serviço de
cada cena e ambientação. Não abusa de cores e intensidade luminosa, como pede o
universo da peça, e isso tem uma grande importância, para fazer com que
a plateia compre a ideia do espetáculo e se deixe envolver com o que vê
e ouve no palco, iluminado por um mestre no ofício.
Precisa,
eficiente e muito coerente é a trilha sonora original, composta por RICCO
VIANA, com estímulos musicais que valorizam cada cena em que a música
se faz presente.
Mais
uma vez, rendo-me ao belo trabalho de videografismo, impecável, criado
pelos irmãos RICO e RICARDO VILAROUCA, com predominância de
imagens nova-iorquinas e anjos, do bem e “do mal”.
É
preciso muita resistência física, por parte dos atores, para enfrentar
tanto tempo em cena e com marcações que exigem muito de seu preparo físico. É
aí que entra, no trabalho, a luxuosa participação de PAULO MANTUANO, na preparação
corporal, tão fundamental, principalmente para os dias em que são
encenadas as duas partes, longas, ambas, e com um intervalo de 40 minutos,
apenas.
O elenco, digamos, fixo, da ARMAZÉM COMPANHIA
DE TEATRO é excelente. Fica melhor, ainda, quando, em determinadas montagens,
como esta, a COMPANHIA convida um ou mais atores. Melhor do que
isso, praticamente, impossível. Em cena, um octeto atua de uma forma tão
homogênea e visceral, que mesmo os personagens, aparentemente, de menor
relevância, ganham uma importância incomensurável, em função do grande
potencial dos atores que os representam, a maioria num só personagem,
havendo quem se reveze em mais de um. São homossexuais, judeus, negros,
mórmons, advogados, todos, direta ou indiretamente sob o terror da AIDS.
Torna-se difícil analisar, individualmente, o trabalho de
cada um dos oito, entretanto, procurando economizar palavras, escrever pouco e
dizer muito, chamo a atenção do magistral trabalho de PATRÍCIA SELONK,
que já diz a que veio logo na primeira cena, quando interpreta nada mais, nada
menos que um rabino, discursando num funeral. Ali, o público que, porventura,
ainda não conheça o potencial da ARMAZÉM COMPANHIA DE TEATRO já se
prepara para o melhor do melhor, o que, de verdade, acontece. Além desse personagem,
PATRÍCIA encarna HANNA PITT, a mãe mórmon do enrustido JOY,
e o fantasma de uma “comunista”, judia, ETHEL ROSEMBERG (Personagem não
fictício, na peça.), que volta, para assombrar a vida de ROY COHN (Também
existiu, na vida real.), o qual, como atuante na acusação, teria sido responsável
por tê-la levado, em 1953, à pena de morte, na cadeira elétrica, por
espionagem, durante a terrível e nefasta época do macarthismo. Três personagens
tão diferentes, interpretados por uma de nossas maiores atrizes de TEATRO.
Apesar de jovem, porém com bastante experiência na COMPANHIA,
como ator e dramaturgo, principalmente, JOPA MORAES se
revela em seu melhor trabalho, na pele de PRIOR WALTER, o atormentado
rapaz, que se desespera, diante do diagnóstico de AIDS, o que
representava, naquela época, a condenação à morte, muito diferente dos dias de
hoje, quando, graças aos avanços da ciência, é possível um soropositivo levar
uma vida normal, sob cuidados, evidentemente, como um ser produtivo e não temido,
na, e pela sociedade. Jopa mantém uma interpretação regular, durante todo o tempo, mas,
em determinadas cenas, destaca-se, entregando-se mais ao personagem, quando,
principalmente, se vê desamparado, com o abandono do amor de sua vida. O ator
consegue passar, com bastante verdade, a dúvida que se instaura na sua cabeça,
diante das tristes circunstâncias: seguir em frente ou não. Nas cenas em que o personagem
vive o delírio de visões com anjos, também é muito bom o seu trabalho.
Coube a LUÍS FELIPE LEPREVOST a interpretação de
um personagem de difícil construção, LOUIS IRONSON, cheio de contradições,
medos e, um pouco de hipocrisia. Por oportuno, passou-me, agora, pela cabeça,
que, por conta de tudo o que acontece na peça, se o espetáculo
tivesse de ter o título mudado, por qualquer motivo, e caso este devesse caber
numa única palavra, acho que o substantivo “HIPOCRISIA” resumiria tudo.
LEPREVOST também tem momentos de marcante e convincente interpretação.
Um dos melhores trabalhos nesta encenação fica por
conta de SÉRGIO MACHADO, que interpreta o advogado ROY COHN, que
o dramaturgo foi buscar na vida real. A postura do personagem,
revelada em suas ações e, mesmo, em algumas falas, encontra comparação com a
postura do atual (des)governo federal, fundamentalista de extrema direita,
homofóbico e anticomunista contumaz. Dessa analogia, querendo-se ou não, não se
pode fugir. O personagem, na vida real, foi um fiel assessor do temido e
cruel senador, inicialmente democrata e, depois, convertido aos republicanos, Joseph
McCarthy, promotor da “caças às bruxas”, nos anos 50. Nas
cenas em que, sob o terror da perseguição do fantasma da mulher vítima de sua perversidade,
o ator também se destaca. Talvez, para o personagem, que é a cara do
autoritarismo, do racismo e do conservadorismo, como escudo, para se “esconder
no armário”, mais doloroso do que estar condenado à morte e vergonhoso, perante
seus pares, é ter de passar seus últimos dias, em estado terminal e deplorável,
na dependência completa e sob os cuidados de um enfermeiro negro e, também “gay”,
interpretado, de forma brilhante, pelo ator THIAGO CATARINO, convidado
para esta montagem, um grande acerto da direção.
CATARINO interpreta dois personagens: um
alegórico, SR. MENTIRA, e um enfermeiro, BELIZE, que
trabalha no hospital em que ROY está internado. É amigo de PRIOR
WALTER, extremamente cáustico, sarcástico, como produto de tudo o que
sofreu na vida, principalmente, talvez, durante o tempo em que viveu como “drag
queen”. Mordaz e indiferente para com ROY, cumprindo, apenas, seu
ofício, ao contrário, dedica um sentimento de amparo, amizade e lealdade a
PRIOR, tentando aliviar o peso de suas dores físicas e, principalmente, interiores.
Encantou-me seu trabalho, que eu já admirava de outros anteriores, fora da
ARMAZÉM.
Quem, também, tem uma passagem bastante marcante, na peça,
é RICARDO MARTINS, interpretando o mórmon JOE PITT, que vive o
tormento de um casamento “de fachada”, sob o pavor de assumir sua
homossexualidade. Medo e vergonha. Vive, praticamente, sob a tutela do poderoso
e implacável ROY, de quem é Chefe de Gabinete, no Tribunal de
Apelação, seu “homem de confiança”, e, por esse motivo, anda na corda
bamba, sob o seu comando e suas ordens. O personagem, muito bem
interpretado, inspira, certa piedade, no público, gera uma empatia enorme,
principalmente em muita gente que vive em condições semelhantes às dele. A
partir do momento em que o personagem resolve revelar, à mãe, a sua
condição de “gay” e abandona a mulher, para viver com outro
homem, LOUIS, o ex-namorado “covarde” (Ou não?) de PRIOR,
o ator consegue passar, com extrema clareza, o alívio que aquelas duas
decisões representaram para o personagem, embora, vez por outra, aquelas
tomadas de decisão ainda o perturbassem.
LISA EIRAS interpreta a mulher do sofrido JOE.
Infeliz no casamento, não recebendo a devida atenção e o amor do marido, ela
vive em estado constante de depressão, mergulhada em Valium, um
benzodiazepínico, “indicado para alívio sintomático da ansiedade, tensão
e outras queixas somáticas ou psicológicas associadas com a síndrome da
ansiedade. Pode, também, ser útil como coadjuvante no tratamento da ansiedade
ou agitação associada a desordens psiquiátricas”. O medicamento serve
como uma muleta, um escudo, uma espécie de abrigo, de “vetor” de fuga para as
suas dores, quando acometida de alucinações. Não são tantas as suas aparições,
porém todas são bem marcantes.
O oitavo elemento do elenco, não menos importante,
é um personagem pertencente ao universo do chamado realismo
fantástico, na figura de um ANJO, vivido por MARCOS MARTINS. Ele
surge, na primeira parte, como uma espécie de arauto da morte, aquele
que vem anunciar, simbolicamente, com “O MILÊNIO SE APROXIMA”, de forma
apocalíptica, o fim de uma era, ameaçada pelo surgimento de uma nova “peste
negra”, um estigma mortal, a AIDS. Depois, na segunda parte do espetáculo,
“PERESTROIKA”, do russo, que pode ser traduzido por “reconstrução”
ou “reestruturação”, sua função é persuadir, ou ordenar, que PRIOR
WALTER, praticamente condenado à morte, ainda que o surgimento do AZT
trouxesse uma esperança de vida ou, no mínimo, de sobrevida, aos contaminados
pelo HIV, que o rapaz agisse como um profeta de uma nova postura humana,
já que alguma coisa estava fora da ordem, “fora da nova ordem mundial”.
Caberia a PRIOR a tarefa inglória de fazer com que a paz fosse,
novamente, restabelecida, voltássemos a placidez de um “pré-Adão e Eva”, com o
rompimento ou interrupção daquilo que se convencionou chamar de “movimentos
migratórios da humanidade”.
FICHA TÉCNICA:
Texto: Tony Kushner
Tradução: Maurício Arruda Mendonça
Direção: Paulo de Moraes
Elenco (em ordem alfabética: Jopa Moraes (Prior Walter), Lisa eiras (Harper Pitt), Luiz Felipe Leprevost (Louis Ironson), Marcos Martins (Anjo), Patrícia Selonk (Rabino, Hannah Pitt e Ethel Rosemberg), Ricardo Martins (Joe Pitt), Sérgio Machado (Roy Cohen) e Thiago Catarino (Belize e Sr. Mentira)
Cenografia: Paulo de Moraes e Carla Berri
Iluminação: Maneco Quinderé
Figurinos: Carol Lobato
Música Original: Ricco Viana
Videografismo: Rico Vilarouca e Renato Vilarouca
Preparação Corporal: Paulo Mantuano
Fotografia: Mauro Kury
Designer Gráfico: Daniel de Jesus
Assessoria de Imprensa: Ney Motta (Contemporânea
Comunicação)
Assistente de Produção: William Sousa
Produção Executiva: Flávia Menezes e Isabel Pacheco
Direção de Produção: Patrícia Selonk
Produção: Armazém Companhia de Teatro
SERVIÇO:
Temporada: De 05 a 28 de julho de 2019.
Local: Teatro Riachuelo – Rio de Janeiro.
Endereço: Rua do Passeio, nº 38 – Centro - Rio de
Janeiro (próximo à estação Metrô Cinelândia).
Telefone: (21) 3554-2934.
Dias e Horários: 6s feiras, às 20h: “Angels in
America Parte I – O Milênio se Aproxima”. Sábados, às 17h: “Angels in America
Parte I – O Milênio se Aproxima” e, às 20h, “Angels in America Parte II –
Perestroika”. Domingos, às 18h: “Angels in America Parte II – Perestroika”.
Valor dos ingressos: Plateia VIP: R$70,00 (inteira) e
R$35,00 (meia entrada); Plateia:R$70,00 (inteira) e R$35,00 (meia entrada); Balcão
Nobre: R$50,00 (inteira) e R$25,00 (meia entrada); Balcão Superior: fechado
Importante:
Para cada sessão, o ingresso será vendido de maneira independente. Quem quiser assistir
às duas partes, num sábado, terá de comprar dois ingressos: um, para a Parte I,
e outro, para a Parte II.
Vendas na bilheteria, pelo site Ingresso Rápido
(https://www.ingressorapido.com.br) e nas Lojas Riachuelo.
Lotação: 999 lugares, sendo 275, na Plateia Vip; 335, na Plateia; e 86, no Balcão Nobre.
Duração da Parte I: Aproximadamente 140 minutos.
Duração da Parte II: Aproximadamente 150 minutos.
Intervalo: Aos sábados, haverá intervalo de 40
minutos entre as Partes I e II.
Classificação Indicativa: 16 anos (Cenas de nudez,
simulação de sexo e palavrões.)
Gênero: Drama
“Muitas questões levantadas, no texto, seguem atuais,
como a estigmatização dos homossexuais ou a força do discurso religioso na
política. Mas a gente não pensou em nada disso, para montar o espetáculo; era
algo que queria fazer há muito tempo – conta MORAES. — Depois de comprar os
direitos, começamos a trabalhar em janeiro do ano passado. Em outubro, quando o
debate político estava mais acirrado, já estávamos marcando as cenas. Foi um
processo longo”. Ainda que assim tenha sido, nada nos
impede de encontrar muitos pontos em comum com a realidade atual, no Brasil
e no mundo. Basta prestar um pouco mais de atenção, por exemplo em algumas
falas, de todos os personagens, e, em especial, em algumas de ROY.
A peça, além de atualíssima, trata de temas universais.
“ANGELS IN AMERICA” merece a minha classificação
como OBRA-PRIMA e me leva a recomendar o espetáculo com todo o meu
empenho. Voltarei ao Teatro Riachuelo, na última semana, para mais
uma “maratona”, assistindo, novamente, às duas partes num só dia, que, volto a
dizer, é a melhor forma de se assistir ao espetáculo.
E VAMOS AO TEATRO!!!
OCUPEMOS TODAS AS SALAS
DE ESPETÁCULO DO BRASIL!!!
A ARTE EDUCA E
CONSTRÓI!!!
RESISTAMOS!!!
COMPARTILHEM ESTE
TEXTO,
PARA QUE, JUNTOS, POSSAMOS DIVULGAR
O QUE HÁ DE MELHOR NO
PARA QUE, JUNTOS, POSSAMOS DIVULGAR
O QUE HÁ DE MELHOR NO
(FOTOS: MAURO KURY.)
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