O
INOPORTUNO
(UM DOS MELHORES TEXTOS
DO TEATRO DO ABSURDO.
ou
UMA BELA CUMPLICIDADE PROFISSIONAL EM
CENA.)
A primeira vez em
que fui apresentado ao Teatro do Absurdo,
e vi logo que havia sido amor à primeira vista, foi no final da década de 60 e início da de 70, mais
precisamente de 1969 a 1972, tempo
que durou a minha formação em Português-Inglês,
na Faculdade de Letras da UFRJ. Além
das disciplinas obrigatórias, tínhamos de escolher outras, “optativas”, nomenclatura da época, para completar um determinado
número de créditos. Não me lembro, exatamente, a quantidade que cumpri, só sei
que ultrapassei, em muito, o mínimo exigido e escolhi o italiano, como língua
instrumental, e todos os outros créditos estavam relacionados a cursos ligados
à literatura dramática.
Estudei
quase todos os clássicos autores do
Teatro Universal, inclusive os expoentes do Teatro do Absurdo: Eugène Ionesco (1909 - 1994), romeno,
radicado na França, a quem tive o
prazer de conhecer, após uma palestra sua, na nossa Faculdade; Samuel Beckett (1906 - 1989), irlandês; Arthur Adamov (1908
- 1970), russo (este bem menos); Fernando Arrabal (1932), espanhol; Jean Genet (1910 - 1986), francês; Edward Albee (1928 - 2016), norte-americano; e Harold Pinter (1930 - 2008), inglês, autor da peça aqui em análise.
O
Teatro do Absurdo é um termo criado
por um crítico teatral húngaro,
radicado na Inglaterra, Martin Esslin (1928 – 2002), ao apagar
das luzes da década de 1950 (Há quem
diga que foi em 1961, detalhe que
não importa.), para classificar peças
teatrais que, passado o trauma da Segunda
Grande Guerra Mundial, tratavam de temas ligados a desolação, solidão e incomunicabilidade do homem moderno,
por meio de traços estilísticos e temas que divergem, radicalmente, da dramaturgia tradicional realista. Com
tal termo, Esslin tentava sintetizar
uma definição que agrupasse as obras de dramaturgos de diversos países, as
quais, apesar de serem completamente diferentes, em suas formas, tinham, como
ponto central, o tratamento inusitado de aspectos inesperados da vida humana.
Não teve a pretensão de obter o rótulo de “um
novo movimento teatral”; menos, ainda, aspirou à denominação de um “gênero teatral”. É, apenas, uma classificação, que visa a colocar em
destaque uma das tendências teatrais mais importantes da segunda metade do século XX.
A
grande maioria dos estudiosos do Teatro
do Absurdo considera a peça “Esperando
Godot” (1949), de Beckett, como
sendo o marco dessa classificação. Ainda que fosse uma “novidade”, tal classificação
teatral reúne, “costumizando-os”, elementos já anteriormente explorados no TEATRO, vindos de várias fontes, como “os
mimodramas; a “commedia dell’arte"; os espetáculos de “music hall” e “vaudeville”;
a comédia de “nonsense”, com falas absurdas ou sem sentido; os movimentos
artísticos de vanguarda do início do século XX, como o expressionismo e,
principalmente, o dadaísmo e o surrealismo; a literatura de grandes nomes, como
o irlandês James Joyce (1882 - 1941) e o tcheco Franz Kafka (1883 - 1924); o
cinema do inglês Charles Chaplin (1889 - 1977), dos norte-americanos Buster
Keaton (1895 - 1966), Oliver Hardy (1892 - 1957) e Stan Laurel (1890 - 1965) e
dos irmãos Marx; e o TEATRO de nomes como o de Alfred Jarry (1873 - 1907),
dramaturgo francês, autor do clássico “Ubu-Rei”. Uma salada mista, como
bem se vê, um amálgama geral. (Enciclopédia
Itaú-Cultural, com adaptações.).
Um dos
aspectos mais interessantes e divertidos do Teatro do Absurdo é o fato de conseguir a união da comicidade ao trágico
sentimento de desolação e de perda de referências do homem moderno,
traumatizado por guerras e tanta destruição. O patético ocupa o trono e o espectador ri e não sabe por quê; ou, talvez, até, o saiba.
Deixado de
lado o preâmbulo, passemos a fazer comentários acerca de “O INOPORTUNO” (“The Caretaker”,
no original, cuja tradução literal
seria “O Zelador”), montagem em cartaz no Teatro dos Quatro (VER SERVIÇO.).
Com direção de ARY COSLOV e contando com a atuação
de DANIEL DANTAS, ANDRÉ JUNQUEIRA e WELL AGUIAR, idealizador do
projeto, o espetáculo homenageia
o autor do texto, HAROLD PINTER, no ano que marca dez anos de sua morte.
SINOPSE:
MICK
(WELL AGUIAR) divide um apartamento com seu irmão mais velho, ASTON (ANDRÉ JUNQUEIRA).
Este traz, para dentro de casa, DAVIES (DANIEL DANTAS), um velho,
supostamente um mendigo, um sem-teto, a quem resgatou, numa briga, em um bar.
Com pena do homem, ASTON lhe oferece a casa, como abrigo,
até que ele se recupere, fisicamente, e consiga organizar seus documentos, então extraviados, para dar curso a seu caminho.
Ao longo da trama, obrigados a
conviver mais próximos do que desejariam, os interesses, mentiras e conflitos
vão se revelando e provocando mudanças no comportamento dos personagens, os quais navegam entre amor e ódio, pena e repulsa,
solidão e tristeza.
Tendo
estreado em Londres, em 1960, seu sexto trabalho, dos
principais, para o TEATRO e a TV, foi esta peça que abriu, para PINTER,
as portas do caminho para o reconhecimento e a notoriedade, talvez pelo fato de
se tratar de um riquíssimo “estudo psicológico
da confluência de poder, lealdade, inocência e corrupção entre dois irmãos e um
vagabundo”. Prato cheio para qualquer
psicanalista, que não temesse se contaminar pelas “loucuras” dos três.
A ação se passa numa casa, apresentada como um ambiente
totalmente caótico, inóspito, à beira da comparação com um lixão com cobertura
(Acho que não seria exagero.), no oeste de Londres,
e envolve três personagens
curiosíssimos e, por demais, “exóticos”.
Um deles é MICK (WELL
AGUIAR), quase trinta anos, ambicioso, às vezes violento e mal-humorado,
“aspirante a decorador ou já se considerando um”. Não consegue esconder sua
enorme insatisfação com a presença e, pior ainda, o convívio com o “inoportuno”, ali, sob seus
protestos, o que fica mais patente no início da peça, menos incisivo, com o
passar do tempo, porém nunca desaparecendo, por completo.
ASTON (ANDRÉ
JUNQUEIRA), irmão de MICK,
trinta e poucos anos, quando mais novo, recebeu terapia de choque elétrico, que
o deixou, permanentemente, com lesões cerebrais. Esforça-se, para apaziguar DAVIES, que vive reclamando de tudo, o retrato do sujeito inconveniente e
sem-noção, mesmo na condição de agregado. ASTON
parece estar procurando, desesperadamente, uma conexão no lugar errado e com as
pessoas erradas, um quase “estranho no ninho”, talvez mais, até, que o “inoportuno”. Seu principal obstáculo é sua incapacidade de se comunicar. Ele é mal interpretado pelo irmão, tornando-se completamente
isolado em sua existência, o que o faz ter mais em comum com o “hóspede”. Sua atitude bem-humorada o torna vulnerável à exploração. Seu diálogo é escasso e, muitas vezes, uma resposta direta a
algo que MICK ou DAVIES disseram. Ele sonha,
compulsivamente, em construir um galpão, no quintal, o que representaria, para ele, segurança
e todas as coisas que sua vida não tem: realização e estrutura. Equivaleria a uma esperança para o futuro.
DAVIES (DANIEL DANTAS)
é um homem velho, cuja idade é difícil de ser precisada, uma vez que seu estado
de abandono, maltrapilho, descuidado, ajuda a camuflar quem, realmente, ele
era. Trata-se de um uma incógnita em toda a peça. Nunca se sabe se o que está falando, revelando aos dois “anfitriões”
e, indiretamente, ao público, é, ou não, verdade. Antes de revelar sua verdadeira
identidade, como MAC DAVIES, o “inoportuno” se apresentara a ASTON como Bernard Jenkis. O que passa, claramente, é que inventa a história
de sua vida, mentindo ou evitando alguns detalhes, para ocultar toda a verdade
sobre si mesmo. Falácias? Em nome de que,
exatamente. Ditas com convicção ou fruto de perturbação mental? Parece
que ele procurar criar versões de sua vida, e detalhes, diferentes, para cada um
dos irmãos, de modo a conseguir impressionar, influenciar ou manipular os dois,
de acordo com seus interesses. Em muitos momentos, o espectador nota que tudo o
que diz é premeditado e visa a uma conquista, a um ganho. Em outros, tudo
parece devaneios. Ser uma espécie de “maria-vai-com-as-outras”, sem abandonar
seus resmungos e protestos, é uma estratégia de sobrevivência muito bem
aplicada por DAVIES, que não poupa
críticas negativas ao “abrigo”, achando-o confuso e mal conservado, observação, aliás, muito pertinente.
DAVIES precisa de um par de sapatos,
para poder ir a Sidcup, na tentativa
de recuperar seus documentos, que, por lá, ficaram. Um par de sapatos. Era só
disso que ele precisava. Essa insistência, uma verdadeira fixação, uma obsessão, em conseguir
um me reportou ao clássico texto de Plínio Marcos, “Dois Perdidos Numa Noite Suja”, em que um par de sapatos era o que
bastava para que Tonho pudesse ir à
procura de um emprego. Por bastante tempo, essa analogia me chamou a atenção,
na peça. Algo tão simples, tão,
aparentemente, insignificante, pode fazer toda a diferença na vida de uma
pessoa. Por meio de DAVIES, PINTER enfatiza o problema da
segregação racial, uma vez que aquele vivia implicando com os vizinhos negros,
imputando-lhes culpas e acusações.
Nada melhor, para
iniciar os comentários sobre a peça do
que dizer que ela ocupa um lugar de destaque na minha relação dos melhores espetáculos deste ano de 2018, apresentados no Rio de Janeiro, começando por dizer que
achei muito interessante e objetiva a condensação dos três atos originais num
só. Nunca li o texto na sua íntegra original,
porém creio que ALEXANDRE TENÓRIO
foi muito feliz, tanto na ideia
quanto na tradução, mantendo tudo o
que há de mais importante e expressivo no original.
Assistir à encenação
de um texto de PINTER dirigido por ARY COSLOV já é garantia de que
estaremos nos deliciando com uma excelente montagem,
se considerarmos quão dedicado e conhecedor da obra e do universo pinteresco é COSLOV,
o que já provou com prêmios, conquistados por outras montagens de obras do
consagrado dramaturgo. Das mais
recentes, “A Estufa” é um dos bons
exemplos. ARY tem, nas mãos, o peso
exato para construir as cenas e trabalhar, com o elenco, a elasticidade na composição de cada personagem. Não há, em seus trabalhos de direção, espaço para gorduras; nada de
excessos. Aqui, são três pessoas desorientadas, confusas, indecisas, falaciosas,
ardilosas, até certo ponto, que estabelecem, entre si, jogos que visam a saber
quem é quem e de que lado cada um está naquela esdrúxula situação. Explorando,
com maestria, o elemento cômico e o humor negro, abundantes, no texto, ARY COSLOV encontra o melhor caminho para serem questionados
valores como confiança e cumplicidade, supostamente existentes entre as pessoas
obrigadas a conviver diariamente, como numa sociedade. Aquele espaço confinado,
de convivência a três, representa um microcosmo do universo que habitamos. Trata-se de mais um dos preciosos trabalhos
de direção de COSLOV.
Quanto ao elenco,
é preciso dizer o quanto ele agrada, pela harmonia alcançada pelo trio de ótimos
atores, dentre os quais existe,
tecnicamente falando, um protagonista,
já expresso no próprio título da peça, que é DAVIES, “O INOPORTUNO”,
entretanto a coadjuvação dos dois
outros colegas de cena de DANIEL DANTAS
é da maior importância no suporte ao trabalho deste.
DANIEL
esbanja talento, que vem pondo em prática, e exibindo, à farta, há 43 anos, desde que se iniciou na
carreira de ator, em 1975, no emblemático
grupo “Asdrúbal Trouxe o Trombone”,
na peça “O Inspetor Geral”. De lá para cá, o ator só emplacou sucessos, extensivos à TV e ao cinema, e merece
os melhores elogios pela composição de seu DAVIES,
um personagem de difícil representação, uma vez que qualquer exagero poderia
levar ao seu ridículo, o que, absolutamente, não ocorre em cena. DANIEL DANTAS faz parte da galeria dos
melhores atores brasileiros.
ANDRÉ JUNQUEIRA
é um ator versátil, que transita do drama à comédia, passando por musicais, com
facilidade e competência. Como ASTON,
ele dá seu recado discretamente, sabendo, no entanto, chamar a si um foco maior
de luz, toda vez que o personagem
tem a incumbência de conduzir a cena e dizer coisas que remetem a reflexões
mais profundas, embora, à primeira vista, não passem de uma suposta “bobagem”. Muito bom o seu trabalho!
Fazendo um excelente contraponto com o personagem de ANDRÉ, MICK caiu nas boas mãos de WELL
AGUIAR. É ótima a sua
interpretação para o não menos perturbado MICK, principalmente pela evolução
do personagem, no decorrer da trama.
WELL tem uma bela presença de palco
e explora muito bem o seu potencial de expressões corporais, ajustadas à
estrutura e às características de seu do personagem.
Suas mudanças de humor são muito marcantes pelo trabalho de voz. Uma interpretação que chama a atenção, nesta
montagem.
Dos elementos técnicos que dão suporte à montagem, o
que mais chama a atenção é o excelente cenário, idealizado por MARCOS
FLAKSMAN, um mestre na ambientação
cênica, criando o interior de uma casa que o que menos parece ser é uma casa.
Lembra mais um depósito de coisas velhas, inúteis, destruídas ou carcomidas
pelo tempo e o desleixo, traduzindo, por meio da visível decadência, o quanto
de caótico e opressor havia naquele pequeno, quase claustrofóbico, cômodo
decadente. São “roupas e caixas espalhadas, acumulação de objetos sem aparente
utilidade, eletrodomésticos que não funcionam, e duas velhas camas”,
tudo em grande quantidade e desarrumação.
Não menos importantes, porém, são os adequados figurinos, de KIKA LOPES, simples
e de aparência desgastada, o de DAVIES,
principalmente, além de atemporais, “uma vez que a montagem eliminou as
referências ao período pós-guerra contidas no texto”, e a luz, de PAULO CÉSAR MEDEIROS, assim como a boa trilha sonora, de ARY COSLOV, o qual tem por hábito se responsabilizar por essa parte, nas suas montagens, sempre acertando.
FICHA TÉCNICA:
Texto: Harold Pinter
Tradução: Alexandre Tenório
Direção: Ary Coslov
Assistência de Direção: Rodrigo Simões e Isabel Lobo
Elenco: Daniel Dantas (Davies), André Junqueira (Aston) e Well Aguiar
(Mick)
Cenário: Marcos Flaksman
Figurino: Kika Lopes
Iluminação: Paulo César Medeiros
Trilha Sonora: Ary Coslov
Fotos: Leo Ornelas
Design Gráfico: Alexandre Munner
Direção de Produção: André Junqueira
Produção Executiva: Well Aguiar
Produção: Adriana Gusmão
Promoção: Rede Globo e JB FM
Apoio: Hotel Everest
Realização: Enigma Eventos Filmes e Produções Artísticas
Assessoria de Imprensa: JSPontes Comunicação – João Pontes e Stella Stephany
SERVIÇO:
Temporada: De 16 de novembro a 23 de dezembro de 2018.
Local: Teatro dos Quatro – Shopping da Gávea.
Endereço: Rua Marquês de São Vicente, 52 / 2º piso – Gávea - Rio de Janeiro.
Telefone: (21) 2239-1095.
Dias e Horários: 6ª feira e sábado, às 21h; domingo, às 20h.
Valor dos Ingressos: R$80,00 e R$40,00 (meia entrada).
Horário de Funcionamento da Bilheteria: 2ª e 3ª feira, das 14h às 20h;
de 4ª feira a domingo, das 14h até o início da última sessão do dia.
Vendas “on-line”: www.ingressorapido.com.br
Capacidade: 402 espectadores.
Duração: 90 minutos.
Classificação Etária: 12anos.
Gênero: Drama-Comédia.
OBSERVAÇÃO: HAVERÁ UMA SESSÃO EXTRA, no dia 20 de dezembro (5ªf), no último final de semana da temporada.
Esta é a primeira montagem de “O INOPORTUNO”
que tenho a grata oportunidade de conhecer -
e gostaria de rever -, uma vez que, quando houve outra, em 1964, eu tinha apenas 14 anos e estava começando a me
encantar pelo universo dos palcos.
Aquela versão foi dirigida pelo inesquecível e genial Antônio Abujamra, e se tornou um grande sucesso de crítica naquele
ano.
O Teatro
do Absurdo divide, antagonicamente, as opiniões; é daquelas coisas que levam
as pessoas a amar ou a odiar, sem meio-termo. Faço parte do primeiro grupo,
como já disse, entretanto, especialmente na montagem ora analisada, mesmo com o domínio do caráter enigmático e
tenso das ações e falas dos personagens de PINTER,
qualquer espectador, seja um “habitué” das plateias e admirador
do Teatro do Absurdo, seja um incipiente, como público, haverá de deixar o Teatro dos Quatro encantado com um belíssimo trabalho do verdadeiro
TEATRO.
Recomendo, com muito empenho, esta encenação e não vejo a hora de voltar a assistir a ela.
E VAMOS AO
TEATRO!!!
OCUPEMOS TODAS AS
SALAS DE ESPETÁCULO DO BRASIL!!!
A ARTE EDUCA E
CONSTRÓI!!!
RESISTAMOS!!!
COMPARTILHEM ESTA
CRÍTICA, PARA QUE, JUNTOS,
(FOTOS: LEO ORNELAS.)
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