FAUNA
(UMA AMBIGUIDADE PROPOSITAL,
QUE INSTIGA E DESAFIA.
ou
A LINHA TÊNUE
ENTRE O QUE É
E O QUE PARECE SER.)
Está
em cartaz, já em final de uma curta temporada, infelizmente, no Centro Cultural da Justiça Federal (CCJF)
(VER SERVIÇO.), um espetáculo muito interessante, que merecia ser visto por
um grande número de espectadores, por várias particularidades, a começar pela
riqueza de seu texto. Falo de “FAUNA”.
A
peça, bem recente e atual, é a terceira escrita, em 2013, por ROMINA PAULA,
uma destacada dramaturga argentina moderna. A tradução é de HUGO MADER.
A propósito, a dramaturgia do país vizinho parece estar em alta, a julgar por excelentes peças de lá, que têm chegado até nós, descobertas por atores, diretores e produtores brasileiros, os quais vão à fonte e trazem-nas para o nosso deleite.
A propósito, a dramaturgia do país vizinho parece estar em alta, a julgar por excelentes peças de lá, que têm chegado até nós, descobertas por atores, diretores e produtores brasileiros, os quais vão à fonte e trazem-nas para o nosso deleite.
O
texto aqui em pauta, segundo o “release”, enviado pela assessoria de imprensa (DANIELA CAVALCANTTI) “é um
ensaio sobre a representação, o lugar da arte na vida e vice-versa.
Metalinguagem. Uma homenagem, ainda que melancólica, ao TEATRO. Uma reflexão
sobre a relação e as fronteiras entre arte e vida, ficção e realidade. Ao longo
da trama, confundem-se a história sobre a pesquisa para a realização de um
filme e a história das relações entre os personagens, provocando, no espectador,
múltiplas interpretações. O que é real? O que é representação?”
Talvez aí
resida o grande mérito do texto: o
desafio, ao espectador, para uma viagem provocadora, cheia de surpresas, com uma
novidade, um fato inesperado e ambíguo, a cada curva.
Prossegue
o “release”: “Com essa mesma sutileza, ‘FAUNA’
questiona a condição do feminino e do ser mulher, suas fraquezas, seus
artifícios, seu lugar na sociedade. Questões sobre gênero, orientação sexual, o
lugar da mulher na esfera pública e o papel da maternidade na vida de uma
mulher”.
SINOPSE:
O texto conta a história de um cineasta, JOSÉ LUIZ (EDUARDO MOSCOVIS) e uma atriz, JÚLIA (ERIKA MADER), que vão ao campo, pesquisar o mito de FAUNA, uma espécie de amazona, culta e
selvagem, para fazer um filme de ficção sobre ela.
Lá, recebem a ajuda de MARIA LUÍSA (KELZI ECARD) e SANTOS (EROM CORDEIRO), filhos de FAUNA, os quais se encarregam de
apresentá-los à figura de sua mãe.
Os quatro personagens
ensaiam para o filme e discutem a importância, ou não, da representação desta
realidade.
À medida que o tempo
passa, os personagens vão se revelando, como se a exposição à ficção, em vez de
protegê-los, os expusesse ainda mais.
FAUNA é a protagonista invisível, uma amazona
intelectual, não materializada, no palco, mas que é a razão da existência da
trama, em torno da qual tudo gira, e está presente, da primeira à última cena,
fazendo mover toda a ação e, consequentemente, servindo, dramaturgicamente, ao
desenvolvimento do roteiro.
Aliás, no que se refere à
questão de se estabelecer quem exerce a função de protagonista, na peça,
podemos dizer que, além da própria FAUNA,
todos os outros quatro o são, cada um a tentar descobrir um caminho e explicações
diferentes sobre o sentido da vida e outras coisas.
Sua presença está
registrada sob a forma de memórias e escritos, e a personagem de sua filha, MARIA LUÍSA (KELZY ECARD), parece ser uma extensão ou perpetuação, ainda que
com limites, de sua passagem por este mundo. Mesmo sem conhecê-la, conseguimos “vê-la”
no corpo da filha, em certos momentos, quer por algumas atitudes, quer por
determinados pensamentos e ideias defendidas pela personagem.
FAUNA, na descrição de MARIA LUÍSA, era de uma personalidade
muito forte, transgressora, subversiva, contestadora, muito culta e dedicada
aos estudos literários, a ponto de se disfarçar de homem, com o objetivo de fazer
um curso superior e frequentar ambientes restritos ao universo masculino. Costumava
impor-se, desafiadoramente, ao marido, que a abandonara, sempre que, por
descuido, cruzava com este. Simplesmente, ignorava-o. Até que ponto isso tudo
era verdade ou fruto de uma idealização mítica de MARIA LUÍSA cabe ao espectador julgar, o que não é uma tarefa muito
fácil. Para mim, pelo menos, não o foi. Voltei para casa com a cabeça povoada
de dúvidas e nem percebi o tempo passar, na longa viagem de metrô, da Cinelândia à Barra da Tijuca, absorto em meus pensamentos e devaneios, à procura
de respostas.
Embora
já seja um tanto quanto lugar-comum a presença de metalinguagem numa obra
teatral, tal fato não me incomoda, quando isso é bem feito, o que se dá em “FAUNA”. Para a direção, considero um bom desafio, um teste de eficiência, que ERIKA MADER e MARCELO GRABOWSKY realizam com bastante propriedade e competência.
A fusão das duas linguagens, caminhando paralelamente, porém focadas no viés
teatral, está muito bem resolvida.
Muitos
aspectos me chamaram a atenção, positivamente, neste espetáculo, desde o início.
Talvez muitas pessoas possam não ter alcançado uma das intenções da dramaturga, porém ela me pareceu muito
clara, logo na primeira cena, quando ERIKA
MADER, na pele de JÚLIA, uma
atriz, lê uma poesia, de Rilke, que
ela gostaria de que fizesse parte do texto
do filme, porém o faz de forma “estereotipada”, artificial”, “quadradinha”, com
pausas ao final de cada verso, o que torna a leitura ridícula e inexpressiva.
Esse
mesmo texto é, em seguida, lido pela
personagem MARIA LUÍSA, que “sabe ler poesia”, sem o vício das
referidas pausas, e ensina àquela como fazê-lo. Ela lê o texto corridamente,
como se prosa fosse (Percebe-se ser um poema, por conta da sucessão rítmica, de
sílabas fortes e fracas.), e isso faz com que o seu conteúdo ganhe compreensão,
sentido.
Vejo
essa cena como uma metáfora referente às várias formas de se perceber o mundo,
de acordo com a leitura, seja ela baseada em que interesse for. Muito
interessante a cena e a proposta.
A
ideia de fazer um filme sobre a misteriosa personagem, não ficcional, mas um
documentário (aí surge uma discussão) foi de JÚLIA, que era amante de JOSÉ
LUIZ e o convenceu a “comprar” o seu projeto, embora houvesse muitas
discordâncias, entre os dois, quanto ao trabalho.
Pareceu-me,
ainda que, do ponto de vista lógico, meio estranho, porém não impossível,
aproveitar um dos filhos de FAUNA, morador
do campo, sem formação em representação dramática, como ator, no filme, SANTOS, personagem
extremamente “chucro”, quase um ogro, sensacionalmente interpretado por um dos
nossos melhores atores, em todas as mídias, EROM CORDEIRO, um profissional que valoriza e dignifica qualquer
personagem que lhe caia às mãos.
E
já que estou falando em EROM,
passemos logo a comentar a atuação do afinadíssimo elenco, continuando a falar dele.
Como
grande admirador de seu trabalho, causou-me certa ansiedade vê-lo participar da
peça, uma vez que passa boa parte do tempo inicial do espetáculo sentado, no
palco, porém fora da área de atuação, o que, a meu juízo, vai ajudando a
construir uma expectativa quanto à sua participação na trama. Desde que começa
a atuar, de verdade, já hipnotiza o público, com sua presença marcante e com a
força de seu personagem, um bronco, avesso ao contato social, que traz, em sua
personalidade, o lado guerreiro e selvagem da mãe, contrastando com a face
intelectualizada, presente na irmã.
Há um grande choque cultural entre os dois, um contraste que forma um belo contraponto entre os dois personagens. É com SANTOS que se constrói o ruir das relações, quando estas começam a se encaminhar. Ele é o personagem maior responsável por puxar o foco para as dúvidas e ambiguidades relacionadas às oposições realidade/ficção, verdade/mentira, ser/parecer...
Há um grande choque cultural entre os dois, um contraste que forma um belo contraponto entre os dois personagens. É com SANTOS que se constrói o ruir das relações, quando estas começam a se encaminhar. Ele é o personagem maior responsável por puxar o foco para as dúvidas e ambiguidades relacionadas às oposições realidade/ficção, verdade/mentira, ser/parecer...
Sua
participação, como ator, no filme, desde os ensaios, chega a ser hilária, por
conta de sua incapacidade de representar, até mesmo de ler o texto, como deveria
fazê-lo, o que, depois, se transforma, radicalmente, sem uma explicação plausível
(pelo menos, para mim). Seria mais uma “pegadinha” do texto? Seria ele um ator inato?
Erom Cordeiro.
Sobre
KELZY ECARD, já se tornou um
lugar-comum, nas minhas resenhas críticas, dizer que se trata de uma diva do TEATRO BRASILEIRO. Acompanho sua trajetória, desde seus passos
iniciais, e jamais a vi fazer algo que não fosse, no mínimo, bom. Geralmente, a
sua qualificação oscila entre ótima, magnífica, surpreendente, fantástica,
sensacional...
Uma
“operária” do TEATRO, no melhor
sentido da expressão, costuma emendar um trabalho no outro, quando não executa
dois, simultaneamente. E, quase sempre, defende personagens fortes, que exigem
um grande desgaste, físico e emocional, da atriz, o que ela tira de letra. Não é
diferente, em “FAUNA”.
Sua
personagem é tão enigmática quanto o irmão e a própria mãe. Demonstra um grande
orgulho desta, seguindo-lhe os passos, quanto ao aspecto cultural. Disposta a
colaborar, para o roteiro do filme, pareceu-me, por outro lado, tentar resguardar
detalhes da intimidade da mãe, por algum motivo que não consegui atingir. É
letrada e de bons modos, o que não se coaduna com o ambiente rústico em que
vive. É algo quase que incompreensível; mais um questionamento para o público.
Sem dúvida, um grande trabalho para o currículo de KELZY.
Kelzy Ecard.
EROM e KELZY ganham um destaque, na trama, por força de seus personagens,
contudo, com relação ao talento profissional e à atuação, neste espetáculo,
tanto EDUARDO MOSCOVIS quanto ERIKA MADER também merecem muitos
aplausos, ambos em atuações tão naturais, que parecem não estar representando.
Funciona muito bem a química entre os dois, a relação entre os personagens.
MOSCOVIS é um ator tarimbado, versátil
e defende seu personagem, o cineasta JOSÉ
LUIZ, com muita garra e competência. Apesar de casado, é apaixonado por JÚLIA, é seu amante e se deixa envolver
por ela, a ponto de topar viajar para ao campo, com o propósito de realizar o sonho
da amada, de fazer um filme sobre FAUNA,
porém não consegue se aproximar da atriz,
durante a pesquisa para o filme, uma vez que esta se encontra dedicada, “full time”, ao propósito da realização
da película.
Vi,
nessa “rejeição”, a possibilidade de ela ter usado o seu poder de sedução, para
atingir um objetivo, não correspondendo, na verdade, aos sentimentos de JOSÉ LUIZ. EDUARDO MOSCOVIS executa, com perfeição, seu papel, mais um grande
trabalho na sua carreira.
Eduardo Moscovis.
ERIKA MADER, JÚLIA, a atriz, é fascinada pelo mito de FAUNA, sem que a razão para isso fique muito bem clara na peça.
Seria mais um exercício de imaginação e criatividade para o espectador. Tal
admiração levou-a a uma obsessão, praticamente, por viver, na tela, a
personagem mítica, não se importando com o que aquilo lhe custasse. ERIKA também, neste espetáculo, apresenta-se
com uma técnica naturalista de representação, que muito me encantou, sem falar
no contraste que tão bem soube representar, da mocinha da cidade, atriz famosa,
em busca de um laboratório, para a sua nova personagem, contando com uma “coacher”
natural, que seria MARIA LUÍSA. Muito
bom o seu trabalho.
Erika Mader.
Para
que a peça, que já conta com um excelente texto,
interpretado por um elenco de primeira
linha, ganhasse uma boa qualificação, outros elementos, técnicos, de valor, foram agregados à
montagem, como o ótimo cenário,
simples e convincente, de FERNANDO MELLO
DA COSTA, que se resume a um palco coberto de feno, alguns refletores,
distribuídos no espaço cênico, e uns bancos rústicos, formando um grande contraste entre o natural e o
artificial, entre o ambiente rural e o urbano.
Cenário (Foto pessoal.)
RENATO MACHADO, como sempre, dá a sua
excelente contribuição, na luz.
Desta vez, tira partido dos refletores em cena e usa menos a outra iluminação,
criando, de propósito, creio, alguns espaços de sombra, necessários a algumas
cenas.
ANTÔNIO
GUEDES assina os figurinos, simples
e completamente a serviço dos personagens e do texto. São peças do dia a dia, com um detalhe interessante para as
vestes masculinas, peças que pertenciam à FAUNA,
que a personagem JÚLIA resolve usar,
nos ensaios, com o objetivo de tentar se sentir mais FAUNA.
Para completar a equipe técnica, mais um brilhante trabalho de direção musical, de MARCELO
H., um dos melhores profissionais do ramo, que está em plena atividade
criativa, neste primeiro semestre de 2017, durante o qual realizou quatro ou cinco
trabalhos na sua área, cada um melhor que o outro, já com indicações a prêmios.
FICHA
TÉCNICA:
Texto: Romina Paula
Tradução: Hugo Mader
Direção: Erika Mader e Marcelo
Grabowsky
Assistência de Direção: Luciana Novak
Elenco: Eduardo Moscovis, Erika Mader, Erom Cordeiro e Kelzy Ecard
Elenco: Eduardo Moscovis, Erika Mader, Erom Cordeiro e Kelzy Ecard
Luz: Renato Machado
Cenário: Fernando Mello da Costa
Figurino: Antônio Guedes
Direção de Movimento: Toni Rodrigues
Cenário: Fernando Mello da Costa
Figurino: Antônio Guedes
Direção de Movimento: Toni Rodrigues
Direção Musical: Marcello H.
Programação Visual: Luiza Chamma
Programação Visual: Luiza Chamma
Fotografia: Bruno Machado (estúdio) e
Bruno Mello (de cena)
Direção de Produção: Erika Mader
Produção Executiva: Marcela Büll
Direção de Produção: Erika Mader
Produção Executiva: Marcela Büll
Assistente de Produção: Ramon Alcântara
Administração Financeira: Alan Isidio
Diretor de Palco: Tarso Gentil
Contrarregra: Adanilo Reis
Operador de Som: Leandro Bacellar
Operador de Luz: Ramon Alcântara
Administração Financeira: Alan Isidio
Diretor de Palco: Tarso Gentil
Contrarregra: Adanilo Reis
Operador de Som: Leandro Bacellar
Operador de Luz: Ramon Alcântara
Assistente de Figurino: Renata Mota
Bilheteria: Waldivia Juncken
Assessoria de Imprensa: Daniella Cavalcanti
Consultoria: Cristiana Giustino
Realização: Auch Produções
Assessoria de Imprensa: Daniella Cavalcanti
Consultoria: Cristiana Giustino
Realização: Auch Produções
SERVIÇO:
Temporada:
De 16 de junho a 16 de julho de 2017.
Local:
Centro Cultural da Justiça Federal (CCJF).
Endereço:
Av. Rio Branco, 241 – Cinelândia - Centro – Rio de Janeiro.
Telefone:
(21) 3261-2550.
Dias
e Horário: De quarta-feira a domingo, às 19h.
Horário
de Funcionamento da Bilheteria: De quarta-feira a domingo, das 16h às 19h.
Contato:
(21) 3261-2565
Lotação:
141 lugares.
Duração
do Espetáculo: 80 minutos
Preço:
R$40,00 (inteira) e R$20,00 (meia entrada).
Classificação
Indicativa: 14 anos.
Para
finalizar esta apreciação sobre “FAUNA”,
não me sentiria confortável se deixasse de fazer um único comentário sobre o
espetáculo, que não o desabona, de modo algum, mas cujo propósito da dramaturga não consegui alcançar.
Certamente, por deficiência de minha parte.
É
que, em dois momentos, a questão da homossexualidade
surge na trama. Primeiro, JÚLIA revela
a MARIA LUÍSA uma atração sexual por
ela, mas esta não cede. Depois, é a vez do bronco e, supostamente, “machão” SANTOS se declarar a JOSÉ LUIZ, vindo a ser consumado um
beijo entre os dois.
Não
consegui entender como e por que as duas demonstrações de atração física se
deram; mais a de SANTOS que a de JÚLIA.
Isso,
porém, talvez seja algo que, para eu entender, ainda precisarei de muitas
viagens de metrô, da Cinelândia à Barra da Tijuca e vice-versa, ou, talvez, outras, ao redor da Terra, o que, em nada, desvaloriza a
peça, a qual eu recomendo com bastante empenho, lembrando que é necessário
disposição para pensar sobre ela.
(FOTOS: BRUNO MACHADO – estúdio-
e BRUNO
MELLO - cena.)
GALERIA PARTICULAR
(FOTOS DE GILBERTO BARTHOLO.)
Aplausos.
Com Erom Cordeiro, Erika Mader, Kelzy Ecard e Eduardo Moscovis.
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