sábado, 1 de julho de 2017


CONFISSÕES
DE UM SENHOR DE IDADE

 

 

(UMA AUTO-HOMENAGEM MERECIDA.)




 



            Vou ao TEATRO para me divertir, para refletir e discutir, para aprender, para ampliar minha cultura e para me emocionar. De preferência, tudo isso, junto e misturado. Foi o que aconteceu, quando assisti, na última 5ª feira (29/06/2017), a “CONFISSÕES DE UM SENHOR DE IDADE”, em cartaz no Centro Cultural dos Correios, no Rio de Janeiro (VER SERVIÇO.).

            Tenho o hábito de ler os programas das peças a que assisto, antes de elas começarem. Aconselho a todos que façam o mesmo. Isso fará com que o espetáculo seja mais bem entendido e assimilado, além de despertar a curiosidade do espectador.

           Abaixo, transcrevo, praticamente na íntegra, com a supressão de apena um pequeno parágrafo, um texto, que está no programa da peça aqui analisada, escrito pelo próprio FLAVIO MIGLIACCIO, que também é o autor da peça e seu diretor, além de exercer outras funções nesta montagem. Trata-se de um artigo, intitulado “DEUS E EU”:

 
 
 

 
“A espécie humana, desde que começou a tomar consciência de sua existência, sempre sentiu necessidade de contar sua história, seja através de figuras primitivas, pintadas nas cavernas, até obras elaboradas, como os afrescos da Capela Sistina. Desde histórias singelas, contadas, para fazer uma criança dormir, até a mais profunda peça de Shakespeare.
 
O ser humano já se assustou com tempestades, folhagens balançando ao vento, erupções de vulcões, mas soube, também, elaborar ensaios, que serviram de base para inesgotáveis estudos sobre os planetas e os mistérios do universo.
 
No fundo, estavam todos sempre ávidos para contar sua própria história, na tentativa de descobrir o que, afinal, estamos fazendo aqui, perdidos nessa incrível viagem pela imensidão do tempo.
 
            ‘CONFISSÕES DE UM SENHOR DE IDADE’ é um pouco o meu... desenho da caverna. E, também, é claro, uma esperança vã de ter criado um Hamlet ou um Rei Lear.
 
(...)
 
Tento, como tantos outros, que já habitaram nosso planeta, descobrir, também, a minha história. Para isso, procurei um personagem com quem pudesse viver essa aventura num palco.
 
E o escolhido foi DEUS.
 
Julguei que, já no crepúsculo de minha existência, era com Ele que deveria colocar minhas dúvidas, anseios e, por que não, perguntar-lhe a razão de ter me abandonado aqui, sofrendo as consequências de um pecado, cometido por dois desastrados seres, lá no Paraíso, hoje perdidos numa vastidão cósmica incompreensível para todos nós.
 
E, quando me perguntaram como pretendia conversar com DEUS, se eu não acreditava Nele, respondi que, na minha profissão de ator e escritor, tenho a liberdade de conversar, também, com seres que não são reais, com as alegorias, fantasias...
 
Queria perguntar a Ele, entre outras coisas, por que muitos dos seus apóstolos e discípulos têm o costume de retirar, dos livros sagrados, só o que interessa a eles. Por que o charlatão da medicina, que finge cuidar do corpo, é condenado e o charlatão religioso, que finge cuidar do espírito e da alma, vive livre, recebendo todas as benesses da sociedade? Indagar a esse ser misterioso por que uma pessoa, para ser boa, precisa ter medo do castigo ou esperar uma recompensa. Não seria suficiente seguir o instinto que vem lá do código genético, inscrito no corpo de cada um de nós?
 
Divirtam-se com a minha vida, mas divirtam-se, também, com esse DEUS, criado num delírio repentino e que, talvez, seja tão fictício quanto o ‘verdadeiro’.
 
Pretendi não Lhe pedir clemência, nem que aplacasse Sua fúria costumeira, mas, com a liberdade e ousadia de quem sonha, perguntar a Ele, entre outras coisas, o porquê daquele exagero de dilúvio, que acabou matando crianças, mulheres, velhos, animais...
 
Só porque se arrependeu de ter criado a espécie humana?
 
Você verá um DEUS perdido na terra e que, de repente, atônico, se vê dizendo que ama as pessoas.
 
Mas que amor é esse, capaz de mandar tanta gente para um lugar quente, respirando fumaça, enxofre, sendo cutucado, por toda a eternidade, por uma figura  ridícula, vestida de vermelho?
 
            É muito amor, muito...
 

 

 

 

 
SINOPSE:
 
“CONFISSÕES DE UM SENHOR DE IDADE” é um espetáculo idealizado pelo mestre do humor no TEATRO, no cinema e na televisão, FLAVIO MIGLIACCIO, no qual o ator, e também autor, apresenta, em cena, através de seu próprio olhar, os seus 82 anos de vida e transfere a este trabalho sua visão, suas experiências, suas cores, seu bom humor e divide conosco uma vida dedicada à arte de interpretar.
 
Num diálogo com DEUS, FLAVIO conta suas histórias, suas experiências, suas memórias, saudades e até tristezas, tudo com muito bom humor, que sempre foi sua marca e continua sendo neste mais novo desafio.
 
Expor sua vida íntima é um presente dado ao público, em agradecimento a todo amor recebido por ele, em comemoração aos 60 anos de carreira.
 
Este espetáculo é uma ponte, para que consigamos conhecer, mais a fundo, a bela alma de FLAVIO MIGLIACCIO.
 
Na história, FLAVIO está dormindo, quando alguém chama por ele e entra em seu quarto. É DEUS (LUCIANO PAIXÃO), que encarnou num corpo de um simples mortal, quase vestido como um mendigo ou um "hyppie", para lhe propor um estranho pacto: se FLAVIO o ajudasse a desvendar um caso estranhíssimo, que estava acontecendo no céu, receberia a recompensa da vida eterna.
 
FLAVIO ainda conta as divertidas histórias de sua vida e, também, momentos tensos e  poéticos de suas experiências artísticas.
 

 
 

            Fui assistir ao espetáculo, achando que veria, em cena, apenas a biografia de FLAVIO, dramaturgicamente apresentada. Pensava, inclusive, que se tratava de um monólogo. Estava, porém, enganado e vi muito mais do que esperava.

            Na verdade, FLAVIO utiliza os fatos acontecidos, em 82 anos de vida, para fazer muitas críticas e expor seu pensamento acerca do mundo, das religiões, da política, do comportamento do Homem...

Com toda a "imunidade/impunidade", que os seus 82 anos de idade lhe conferem, ele aponta sua metralhadora giratória e aciona o dispositivo de disparo, não poupando nada nem ninguém, sem o menor pudor de se expor e sem temer julgamentos.

            Faz críticas rasgadas aos políticos brasileiros e a magistrados, citando nomes, que prefiro omitir, para não tirar a surpresa. Isso provoca uma catarse na plateia, que, pode-se arriscar, em sua totalidade concorda com o ator/personagem, notando-se, inclusive, algumas ameaças de aplauso.

            Também não poupa críticas às várias religiões, concentrando-se nos falsos pastores evangélicos, que atuam na TV, explorando a fé e a ingenuidade do povo menos esclarecido. Embora não cite nomes, mostra imagens, projetadas, e utiliza acessórios de cena, que denunciam os criticados. A reação da plateia se assemelha à anteriormente citada.

            Faz uma comparação entre os brinquedos simples, de sua infância, com a parafernália tecnológica dos brinquedos atuais, com destaque para os eletrônicos, o que também é uma atitude crítica.
 
 


            Se é para criticar, por que não tecer comentários desfavoráveis, com relação à violência disseminada em todas as mídias?

Muito corajoso, num determinado momento, FLAVIO fala que foi expulso de um colégio de padres (chegou até a pensar em se tornar um), por ter tido a coragem de denunciar um religioso daquela instituição, que intencionava praticar pedofilia com ele.

            Como ateu, paradoxalmente, tem medo de Deus, quando este invade seu quarto, e gostaria de ir para o céu, ao morrer, o que lhe é explicado, por Deus, ser impossível aos ateus. Este lhe promete, porém, vida eterna, caso ele aceitasse fazer com o Criador um pacto, que, se revelado agora, por mim, seria considerado um “spoiler”, que faria com que o espetáculo perdesse totalmente a graça, para os que ainda vão assistir a ele. Da mesma forma, sou obrigado a omitir a cena final, já que seria um outro “spoiler”, ainda maior.

            Um dos aspectos mais interessantes do texto está ligado ao embate verbal de FLAVIO com DEUS, o que se dá, praticamente, ao longo de toda a peça. O ator/personagem, como já foi dito, ateu confesso, questiona o Pai sobre a sua permissão para que tantas desgraças e catástrofes tenham acontecido ao longo da história da humanidade. Pergunta-Lhe, de forma meio irônica, onde Ele estava, durante a duas Guerras Mundiais; por que permitiu as barbáries de Hitler, o ataque às Torres Gêmeas; as milhares de mortes, causadas pela gripe espanhola e a peste negra... E, no meio de tantas desgraças, não perde a oportunidade para aplicar o seu humor leve, incluindo, na relação das “catástrofes”, o comando de Dunga, na Seleção Brasileira de Futebol.
 
 


            A melhor de todas as críticas, do ponto de vista de um ateu (não é o meu caso), a DEUS é quando FLAVIO desenvolve um raciocínio, que merece, sim, uma reflexão, mesmo para os cristãos: se já estava escrito que Jesus morreria, aos 33 anos, para salvar a humanidade, por que sua mãe, Maria, não o entregou, logo, a Herodes, quando bebê, para ser morto, o que pouparia a vida de centenas de crianças com menos de dois anos, como está na Bíblia?

            Também achei genial a cena em que ele sugere a DEUS que, como mandara seu filho, Jesus, expulsar os vendilhões do Templo, também fizesse o mesmo, ou algo parecido, com os falsos pastores evangélicos, que vendem de um tudo, na TV, os maiores absurdos, incluindo lotes do céu.

Com relação à sua trajetória pessoal e artística, vários momentos lindos e emocionantes marcam a peça, como, por exemplo, quando FLAVIO fala do divertimento que sua mãe armava, para as crianças da rua, esticando um lençol numa janela, com uma luz por trás, revelando, em sombras, um “teatrinho primitivo”, feito pelo protagonista e seus irmãos. Isso, antes do advento da televisão.

Em outro momento, confessa que, desde criança, sonhava ser artista, quando via o “cineminha aos domingos”. Eu também, FLAVIO, passei por essa fase, assistindo às chanchadas, da Atlântida, nas matinês de quinta-feira. Sonhava, um dia, ser o Cyl Farney. Fiquei muito tocado nesse momento.                

            Já rapaz, faz referência à sua passagem pelo emblemático Grupo de Teatro Arena. Pena que foi uma citação bem superficial; merecia um pouco mais de aprofundamento, pela importância da efeméride.

            Como ator, faz piada de si mesmo, ao dizer que já representou uma galinha, uma árvore e um burro, dentre outros personagens insólitos, tudo ilustrado em “slides”, e acrescenta que, na vida “todo mundo representa”.
 
 
 

            Uma das cenas mais comoventes, que provocam lágrimas, é quando FLAVIO faz um pedido a DEUS: que fizesse ressuscitar tanta gente querida, cujas imagens vão aparecendo, projetadas, enquanto ele as nomeia. A primeira delas é a da sua querida irmã Dirce Migliaccio, que aparece caracterizada de Emília, do “Sítio do Pica-Pau Amarelo”, personagem que marcou a vida artística desta.

            Da mesma forma, FLAVIO provoca muita comoção, ao se lembrar de suas duas grandes atuações, como Tio Maneco e Xerife, personagens dedicados às crianças.

O primeiro vivia suas aventuras num seriado, levado ao ar pela TV Cultura, “O Super Tio Maneco” (1978), baseada num filme, “As Aventuras do Tio Maneco”, dirigido pelo próprio FLAVIO, em 1971.

Xerife, personagem de FLAVIO, fazia dupla com Paulo José (Shazan), num seriado transmitido pela TV Globo, também na década de 70. O seriado usava uma linguagem com elementos do circo, veiculando mensagens educativas.

            O humor leve, quase ingênuo, que lembra muito a linha de “Os Trapalhões”, FLAVIO levou para o palco, em “CONFISSÕES DE UM SENHOR DE IDADE”, em que ele não faz uso de piadas de baixo nível, chegando, no máximo, a falar de um “recall sexual”, que estava pretendendo fazer, com todas as mulheres com quem havia feito sexo, durante toda a sua vida. Mas sem a menor apelação.

            No roteiro, DEUS invade o quarto de FLAVIO, levando, nas mãos, uma cópia de uma autobiografia que o protagonista estava escrevendo e vai conferir o que lá está escrito, além, é claro, de lhe fazer a já mencionada proposta de um pacto, que você só conhecerá se for assistir à peça.
 
 


            O espetáculo é muito bem cuidado, do ponto de vista técnico.

            O cenário revela o quarto de FLAVIO, bem simples, e um escritório domiciliar, conjugados, Nele, há um quase inexplicável varal, com lençóis estendidos, nos quais são feitas projeções, muitas e de boa qualidade e com precisão, inclusive de charges, feitas por FLAVIO, outra de suas habilidades artísticas A explicação para a presença dos lençóis em cena é dada, a DEUS, num determinado momento, mas não me pareceu muito convincente; mas isso é apenas um detalhe. Embaixo da cama, espalhados pelo chão, livros empoeirados, incluindo uma Bíblia.

            O texto é bastante interessante, bem escrito e acessível à compreensão de qualquer pessoa, sem rebuscamentos, tendo sido usada uma linguagem coloquial, mas de bom nível.

            A direção, também de FLAVIO, é bem satisfatória, já que o texto não oferece oportunidades de grandes invenções nem as pede. Tudo trivial e correto.
 
 
 

            Quanto à interpretação da dupla, nota-se um desnível entre os dois atores, o que não chega a ser nenhuma novidade, uma vez que é um grande desafio, para qualquer ator incipiente, contracenar com um “divo” da representação.

            Enquanto FLAVIO dá um “show” de interpretação, com muita naturalidade e realismo, LUCIANO PAIXÃO se esforça bastante para corresponder ao papel, porém deixa um pouco a desejar, uma vez que construiu um DEUS irado (não é gíria; é “cheio de ira” mesmo), raivoso, falando num tom monocórdio, quase gritando, o que não me pareceu adequado ao personagem e às situações. Houve um pouco de exagero, creio, por parte do ator, o que poderia ter sido corrigido pela direção. Talvez um diretor que não estivesse atuando pudesse ter reparado melhor nisso.

            Os figurinos, criados pela dupla de atores, são interessantes, assim como a luz, de JORGE MENDES, e a direção musical, de MORGANA MICHELE.

 
 


 
FICHA TÉCNICA:
 
Texto: Flavio Migliaccio
Direção: Flavio Migliaccio
Assistente de Direção: Marcelo Migliaccio
 
Elenco: Flávio Migliaccio e Luciano Paixão
 
Cenografia: Flavio Migliaccio
Figurino: Flavio Migliaccio e Luciano Paixão
Iluminação: Jorran Souza
Direção Musical: Morgana Michele
Montagem de “Slides” e Programação Visual: Flavio Migliaccio
Direção de Produção e Divulgação: César Bournier
Assistentes de Produção: Marcelo Gomes e Natália Van Velden
Assistente de Projeto: Isabela Oliveira
Fotos de Divulgação: Érica Fonseca.
 

 

 

 

 
SERVIÇO:
 
Temporada: De 18 de maio a 09 de julho de 2017.
Local: CENTRO CULTURAL CORREIOS.
Endereço: Rua Visconde Itaboraí, 20, Candelária – Centro – Rio de Janeiro.
Telefone: (21) 2253-1580.
Dias e Horários: De 5ª feira a domingo, sempre às 19h.
Valor dos Ingressos: R$20,00 (inteira) e R$10,00 (meia entrada).
Horário de Funcionamento da Bilheteria: De 3ª feira a domingo, das 14h às 19h.
Duração do Espetáculo: 90 minutos.
Classificação Etária: 14 anos.
Gênero: Comédia Dramática
 

 
 
 


            O espetáculo nos remete, ainda, a um tom de nostalgia, muito agradável, fazendo voltar, para anunciar o início da peça, as famosas pancadinhas de Molière. Fazia tempo, não as ouvia. Bem melhores do que algumas sirenes desagradáveis.

“CONFISSÕES DE UM SENHOR DE IDADE” é uma auto-homenagem merecida, à qual todos nós nos associamos, em reconhecimento ao que, de bom, representa FLAVIO MIGLIACCIO, para a arte da representação, em qualquer que seja a mídia, mas, em especial, no TEATRO.

Recomendo o espetáculo.

 
 



(FOTOS: ÉRICA FONSECA.)
 
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 
 

 
 

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