sábado, 19 de setembro de 2015


 

O PENA CARIOCA

 

 

(SUBVERSÃO, QUANDO É BOA,

NÃO É CRIME!

AO CONTRÁRIO, MIL ANOS

DE PERDÃO E AGRADECIMENTO.)

 

 


 

 

 

            Antes de qualquer palavra sobre este espetáculo, quero prestar uma homenagem, e fazer um profundo agradecimento, a uma grande mestra, Professora Doutora Maria José da Trindade Negrão, que me ensinou tudo o que sei, ou o pouco que sei, sobre o “Pai da Comédia Brasileira”, MARTINS PENA, e a valorizar a sua obra.

 

É impossível esquecer os finais das tardes das segundas-feiras, no início dos anos 70, quando tínhamos aulas sobre esse grande dramaturgo, nas quais aprendíamos e nos divertíamos bastante, num curso de Literatura Dramática Brasileira, no saudoso prédio “improvisado” da Faculdade de Letras, da UFRJ, na Avenida Chile.

 

Com Dona Maria José, estudamos quase toda a vasta obra de MARTINS PENA - as comédias apenas -, com destaque para algumas peças, e ainda guardo alguns dos trabalhos que me renderam o crédito “A”, o mais alto daquela instituição, em termos de avaliação qualitativa.

 

            Ainda que “O PENA CARIOCA” não fosse um bom espetáculo teatral – na verdade, é ÓTIMO!!! -, valeria um aplauso a DANIEL HERZ, diretor da peça, e aos que formam a CIA. ATORES DE LAURA, pela iniciativa de montar mais um dos grandes esquecidos, pouco valorizados e, por isso mesmo, injustiçados dramaturgos brasileiros.

 

 

Wikimedia Commons

Martins Pena.

 

 

 
Um pouco sobre o grande dramaturgo MARTINS PENA, via Wikipédia, com adaptações, por acréscimos e cortes:
 
Seu nome completo é LUÍS CARLOS MARTINS PENA.
 
Carioca, nasceu em 1815, no Rio de Janeiro, e faleceu em Lisboa, precocemente, aos 33 anos de idade, a 7 de dezembro de 1848, quando voltava para o Brasil, depois de ter contraído tuberculose, em Londres, onde trabalhava como Adido à Delegação Brasileira, pois, além de   grande dramaturgo, introdutor da comédia de costumes no Brasil, tendo sido considerado o Molière brasileiro, foi diplomata.
 
Sua obra se caracterizou, pioneiramente, por ironia e humor, as graças e desventuras da sociedade brasileira e de suas instituições, tudo visto sob um prisma de crítica ferina, mordaz, porém de forma sutil e com muito bom humor, aparentemente ingênuo.
  
Teve uma origem humilde, ficando órfão de pai, quando tinha apenas um ano de idade, e, de mãe, aos dez.  Por sorte, para compensar essas terríveis perdas afetivas, passou a viver sob a responsabilidade de tutores de boa condição financeira.
 
Concluiu o curso de Comércio, aos vinte anos, ramo em que se iniciou na vida profissional.  Depois, passou a frequentar a Academia Imperial das Belas Artes, onde estudou arquitetura, estatuária, desenho e música.   Simultaneamente, estudava línguas, para as quais tinha grande inclinação, história, literatura e TEATRO.
  
Em 4 de outubro de 1838, foi representada, pela primeira vez, uma peça sua, "O Juiz de Paz na Roça", no Teatro São Pedro, pela célebre companhia teatral de João Caetano (1808-1863), o mais famoso ator e encenador da época.
  
Apesar da brevidade de vida, contribuiu, para a literatura dramática brasileira, com cerca de trinta peças, das quais, aproximadamente, vinte são comédias, o que o tornou fundador do gênero da comédia de costumes no Brasil, e as restantes são farsas, gênero bastante divulgado e apreciado em sua época, e dramas.
 
De agosto de 1846 a outubro 1847, também escreveu críticas teatrais, como folhetinista, do Jornal do Comércio.
  
Em sua obra, ele se debruçou sobre a vida do Rio de Janeiro da primeira metade do século XIX e explorou, sobretudo, o povo comum da roça e das cidades.  Com a ajuda de sua singular veia cômica, encontrou um ambiente receptivo, que favoreceu a sua popularidade.
  
Construiu uma galeria de tipos, que constitui um retrato realista do Brasil da época,  feito de funcionários públicos, meirinhos (funcionários da Justiça), juízes, malandros, matutos, estrangeiros, falsos cultos e profissionais da intriga social, um eufemismo para “fofoqueiros”.
 
Suas histórias giram em torno de casos de família, conflitos os mais diversos; casamentos, principalmente os arranjados, por interesses; heranças, cobiçadas por quem  as merecia, ou não; dotes, inescrupulosamente negociados; dívidas, muitas delas escusas; traições, de todos os tipos; e festas, da roça e das cidades.
 
Após sua morte, ainda vieram a público algumas de suas peças, inéditas, até então, como "O Noviço" (1853) e "Os Dois ou O inglês Maquinista" (1871).
 
Nas comédias de MARTINS PENA, podem ser observadas, com relevada frequência, semelhanças, entre uma e outra, quanto às temáticas e aos personagens, porém sempre haverá algo que pontue cada uma delas como autêntica.
  
MARTINS PENA deu, ao TEATRO BRASILEIRO, um cunho nacional, uma roupagem própria, influenciando muitos outros autores.
 
Elogiado por suas comédias, foi, entretanto, criticado negativamente, pela baixa qualidade de seus dramas.  No geral, produziu peças curtas e superficiais, contidas em um único ato, apenas esboçando a natureza das personagens e criando tramas, por vezes, ou melhor, muitas das vezes, com pouca verossimilhança e coerência.  Ainda assim, construiu muitas passagens de grande vivacidade e situações surpreendentes e é, constantemente, elogiado pela espontaneidade dos diálogos e pela perspicácia no registro dos costumes brasileiros, mesmo que, quase sempre, satirizados.
 
Às cenas rurais, reservou a comicidade e o humor, explorados por meio dos hábitos rústicos e maneiras broncas da curiosa gente rural, quase sempre pessoas ingênuas, na sua essência, que chegam a ser ridículas, e de boa índole.  Já às cenas urbanas, reservou a sátira e a ironia, compondo tipos maliciosos e escolhendo temas que representavam muitos dos problemas da época, como o casamento por interesse, muito frequente à época (E por que não hoje também?); a carestia, sempre um tema na ordem do dia; a exploração do sentimento religioso, ainda tão atual, infelizmente; a desonestidade dos comerciantes, já naquela época; a corrupção das autoridades públicas, nada mais moderno, para a nossa infelicidade; o contrabando de escravos, os quais, hoje, foram transformados em escravas brancas, crianças, órgãos humanos e o que mais der para ser contrabandeado; a exploração do país, por estrangeiros, o que, de certa forma, já vinha, desde o descobrimento, e continua até os nossos dias; e o autoritarismo patriarcal, manifesto tanto na escolha da profissão para os filhos quanto na de marido para as filhas.
  
Apesar disso, nada foi tratado do ponto de vista trágico e nunca um desfecho era funesto; pelo contrário, dada a finalidade destas comédias, que era a de opor-se aos dramas, a trama comum consiste na apresentação dos problemas, na resolução cômica dos empecilhos e no surgimento, muitas vezes, com casamento ou namoro sério, de um final feliz.
 
MARTINS PENA é responsável por criar tipos característicos e situações peculiares, tanto no ambiente urbano quanto no rural.  O malandro, o estrangeiro e a mulher, esta sendo a responsável por "segurar as pontas" da família, são, talvez, seus personagens mais característicos.
 
No retrato do ambiente urbano, PENA trabalha na sátira dos costumes da classe média carioca do século XIX, principalmente, com relação aos relacionamentos amorosos e a busca pela ascensão. 
 
Fez um TEATRO simples, sem rebuscamentos, escrevendo para as camadas mais populares, podendo ser considerado um “democratizador” do TEATRO, decorrendo daí a sua popularidade.
 

 

 

 


Marcio Fonseca.

 

 


 

 

 

Para o espetáculo “O PENA CARIOCA”, DANIEL HERZ reuniu três das comédias de MARTINS PENA, obedecendo ao texto original, porém com alguns cortes, pois, apesar de serem peças curtas, se montadas sem supressões de falas e/ou cenas, tornariam o espetáculo um pouco longo, além dos 100 minutos de pura diversão.

 

Foram escolhidas “A FAMÍLIA E A FESTA DA ROÇA” (1838), “O CAIXEIRO DA TAVERNA” (1845) e “O JUDAS EM SÁBADO DE ALELUIA” (1846).

 

Nelas, seis atores da CIA. ATORES DE LAURA – ANA PAULA SECCO, ANDERSON MELLO, LEANDRO CASTILHO, LUIZ ANDRÉ ALVIM, MARCIO FONSECA e PAULO HAMILTON - e mais uma atriz convidada para esta montagem, GABRIELA ROSAS, se revezam, em vários papéis, com invejável qualidade interpretativa.

 

Segundo o premiadíssimo diretor do espetáculo, “O nosso desafio foi ultrapassar a dimensão histórica desses textos, além de questões ingênuas e pueris, e mostrar de que maneiras eles podem refletir sobre o cotidiano do carioca hoje.  Você percebe, com perplexidade, que certas mazelas da época continuam atuais: a valorização do estrangeiro, a tentativa de conquistar uma estabilidade pelo funcionalismo público, o deslumbramento pela vida urbana...”.

“‘O PENA CARIOCA’ privilegia muito a figura do ator, dá a liberdade de se criar grandes tipos cômicos”, acrescenta DANIEL.

 

 


Ana Paula Secco e Gabriela Rosas.

 

 

 

 
SINOPSE:
 
A trama de “A FAMÍLIA E A FESTA NA ROÇA” gira em torno de uma moça querendo se casar com o médico que retorna à cidade, enquanto sua família insiste em uma união arranjada.
 
“O CAIXEIRO DA TAVERNA” acompanha a trajetória de um caixeiro ambicioso, cujo maior sonho é se tornar sócio da loja onde trabalha.  Sem escrúpulos, esconde que é casado, para a dona, a qual morre de amores por ele.  
 
Em “O JUDAS EM SÁBADO DE ALELUIA’, o protagonista se esconde na figura de um boneco de Judas e testemunha conversas entre vários personagens, inclusive a de sua pretendente, que não é quem ele pensa ser.  
 
Entre uma obra e outra, serão apresentados trechos de outros textos do dramaturgo.
 

 

 

 


Paulo Hamilton.

 

 


Gabriela Rosas e Paulo Hamilton.

 

 

Em várias das comédias de MARTINS PENA, encontramos pessoas da roça, principalmente as moças, sonhando com as maravilhas da cidade grande, levadas a elas por gente que já tivera a oportunidade de conhecê-las, na Corte, geralmente, valendo-se de exageros, ao falar de tais “modernidades”, com ênfase para o que estava ligado ao lazer, em contraste com a monotonia da vida no campo.

 

Em “A FAMÍLIA E A FESTA DA ROÇA”, um dos três textos encenados, por exemplo, o personagem ANTÔNIO PAU-D’ALHO é hilário, ao contar, “com riquezas de detalhes”, a uma pequena plateia, atenta e interessada nas “novidades”, as peripécias de um mágico, a quem vira atuando na Corte. “(...) a cidade está muito adiantada.  Eu estive, quatro meses, destacado e posso dizer alguma coisa, porque, quando não estava de guarda, passeava.  Vá vendo quantas coisas boas.  (...) Veja.  Há um teatro aonde vai este homem (referindo-se a um mágico), que é muito bonito, porque tem umas mesas bordadas de prata, luzes amarelas, vermelhas e de todas as cores.  Chega ele, como ia dizendo, a este teatro, chama um homem, este vai para onde ele está, e, trepando em cima de uma mesa, fica assim.  (ajoelha-se)  E, depois, o mata-gente, levantando a espada, corta-lhe a cabeça e o homem cai assim.  (deita-se de bruços) Faça, agora, de conta que eu não tenho cabeça, e que ela anda na mão do sujeitinho, para ser mostrada a quem quer ver.

 

 


 O espetáculo celebra os 200 anos do autor

Marcio Fonseca e Leandro Castilho.

 

 

A ignorância, quase ingênua, dos roceiros fica bem marcada, em “A FAMÍLIA E A FESTA DA ROÇA”, quando o personagem DOMINGOS JOÃO submete ao jovem JUCA, rapaz da roça, que havia ido estudar medicina, na Corte, a um questionamento sobre uma pendenga com um tal José Pinote, com relação à demarcação, aos limites, de uma área de terra, que DOMINGOS comprara a Pinote.  Trata-se de uma cena de profundo humor ingênuo:

 


 
DOMINGOS JOÃO: Sr. Juca, é preciso acabar os seus estudos, quanto antes, e vir ajudar a seu pai, que já está velho.  Boa ocasião de saber em uma cousa, já que o senhor é doutor.
JUCA: Diga o que é, Sr. Domingos João!
DOMINGOS JOÃO: Escute!  No ano passado, comprei um sítio a José Pinote, por quatro doblas, pra pagar duas doblas, no fim de seis meses, e duas no fim de um ano.  Ora, quando ele vendeu-me o sítio, disse-me que tinha cinquenta braças de testada e cem de fundo, porém eu mandei medir, pelo piloto, e este só achou quarenta de testada e oitenta de fundo.  Agora, quero que me diga se eu devo ou não pagar as quatro doblas por inteiro, entende o senhor?
JUCA: Mas eu não posso lhe dizer isto, porque não sou formado em leis.
DOMINGOS JOÃO: Pois o senhor não é doutor?
JUCA: Sim, porém eu estudo medicina, para curar os doentes, e não para ser letrado.
DOMINGOS JOÃO: Então não é doutor; é licenciado.  Ora, que doutor que não sabe dar um conselho!
 

 

 



Gabriela Rosas e Luiz André Alvim.

 

Outra prova da mesma situação (ingenuidade) se dá, na, mesma peça, quando JOANA, mulher de DOMINGOS JOÃO, em defesa do marido, fala a JUCA que uma vizinha, uma curandeira, sabe curar e não estudou.

 


 
JOANA: Mas, Sr. Juca, a Angélica sabe curar muito e nunca foi estudar.
JUCA: A Angélica é uma embusteira!
JOANA: Embusteira, não senhor, que ainda ontem benzeu o filho da Senhoria de quebranto e, num instante, ficou bom!
JUCA: Pois crê também em quebranto?
JOANA: Então!
 

 

 



Anderson Mello.

 

 

O sonho do estrangeiro, principalmente o português, de vir para o Brasil, com o objetivo de ganhar dinheiro facilmente, custasse o que custasse, e enriquecer, está presente em “O CAIXEIRO DA TAVERNA”, outro texto desta trilogia.  O personagem MANUEL é um português, do Porto, caixeiro de um armazém, que só pensa em enriquecer o mais depressa possível, nem que seja de forma desonesta, e vive se lastimando por não poder corresponder aos interesses amorosos da patroa, viúva, pelo fato de já ser casado.  Num casamento com a viúva, poderia estar o caminho para o seu enriquecimento fácil, quando, por extensão, se tornaria seu sócio.  MANUEL aceita fazer parte de um esquema de fraude, comandado pela proprietária do estabelecimento, para ganhar mais sobre os fregueses incautos, vendendo “gato por lebre”, principalmente quando mistura vinho com água, vinho este vindo de Lisboa, comercializado como sendo o melhor vinho do Porto.  Desprovido de qualquer escrúpulo, no trato com a freguesia, o português já praticava, naquela época, o “gostar de levar vantagem em tudo”, parecendo conhecer, muito bem, a psicologia do povo brasileiro: “O público deixa-se levar por estas imposturas!”.

 

 

 

 Gabriela Rosas, Paulo Hamilton e Ana Paula Secco estão na peça

Gabriela Rosas, Paulo Hamilton e Ana Paula Secco.

 

O Pena Carioca

 

 

 

'O Pena Carioca'

 

 

 

            Na outra comédia, que forma o tripé deste “O PENA CARIOCA”, “O JUDAS EM SÁBADO DE ALELUIA”, uma típica comédia de costumes do Romantismo, é marcante a figura da moça namoradeira, casadeira e dissimulada, MARICOTA, que vive na janela, a flertar com os homens passantes, e é a eleita do pai, em detrimento à irmã, CHIQUINHA, tão recatada e obediente.  MARICOTA acaba recebendo o castigo merecido.

 


           
CHIQUINHA (para Maricota): Maricota, ainda te não cansou essa janela?
            MARICOTA (voltando a cabeça): Não é de tua conta!
            CHIQUINHA: Bem o sei!  Mas, olha, o meu vestido está quase pronto; o teu, não sei quando estará.
MARICOTA: Hei de aprontá-lo quando quiser e muito bem me parecer.  Basta de seca!  Cose e deixa-me!
 

 


Um personagem importante, na história, é FAUSTINO, um dos pretendentes de MARICOTA, de quem pensa ser o grande amor, quando, na verdade, é apenas mais um entre tantos outros.  Para não ser surpreendido, na casa da pretendida, por AMBRÓSIO, seu superior, na Guarda Nacional, o qual lá vai, para uma visita à moça, faz-se passar por um “Judas”, que os moleques haviam preparado para a malhação, o que lhe permite ouvir três conversas interessantes e esclarecedoras.  Primeiro, a confabulação entre JOSÉ PIMENTA, cabo de esquadra da Guarda Nacional e pai das moças, e AMBRÓSIO, capitão da Guarda Nacional, sobre a torta estrutura desta, um verdadeiro esquema de corrupção.  Na sequência, a confissão de CHIQUINHA, falando sozinha, enquanto cosia, entre suspiros e lamentos, sobre o quanto amava FAUSTINO.  Depois, um diálogo, em que fica sabendo do crime de falsificação de dinheiro, cometido por ANTÔNIO DOMINGOS, um velho negociante, e PIMENTA.  Essas três conversas, à espreita, lhe servirão de armas para suas vinganças.

 

 
FAUSTINO (caindo sentado): Ai, que corrida!  Já não posso!  Oh, parece-me que por cá ainda dura o medo.  O meu não foi menor vendo esta canalha.  Safa, canalha! (Os garotos riem-se e fazem assuada.)  Ah, o caso é esse?  (Levanta-se.)  Sr. Pimenta? (Pimenta, ouvindo Faustino chamá-lo, encolhe-se e treme.)  Treme?  Ponha-me esta corja no olho da rua... Não ouve?  (Para Maricota.) Então, quer que continue, ou quer casar-se?
MARICOTA (À parte): Estou conhecida!  Posso morrer solteira...  Um marido é sempre um marido... (Para Pimenta.)  Meu pai, farei a sua vontade.
FAUSTINO: Bravíssimo!  Ditoso par!  Amorosos pombinhos! (Levanta-se, toma Maricota pela mão e a conduz para junto de Antônio, e fala com os dous à parte.)  Menina, aqui tem o noivo que eu lhe destino: é velho, baboso, rabugento e usurário.  Nada lhe falta para sua felicidade.  É este o fim de todas as namoradeiras: ou casam com um gebas, como este, ou morrem solteiras!  (Para o público.) Queira Deus que aproveite o exemplo!  (Para Antônio:)  Os falsários já não morrem enforcados; lá se foi esse bom tempo!  Se eu o denunciasse, ia o senhor para a cadeia e de lá fugiria, como acontece a muitos da sua laia.  Este castigo seria muito suave...  Eis aqui o que lhe destino (Apresentando-lhe Maricota.)  É moça, bonita, ardilosa e... namoradeira: nada lhe falta, para seu tormento.  Esta pena não vem no Código; mas não admira, porque lá faltam outras muitas cousas.  Abracem-se, em sinal de guerra!  (Impele um para o outro.) Agora nós, Sr. Capitão!  Venha cá.  Hoje mesmo, quero uma dispensa de todo o serviço da Guarda Nacional!  Arranje isso como puder; quando não, mando tocar a música... Não sei se me entende?...
CAPITÃO: Será servido.  (À parte) Que remédio!  Pode perder-me! 
FAUSTINO: E, se, de novo, bulir comigo, cuidado!  Quem me avisa... Sabe o resto!  Ora, meus senhores e senhoras, já que castiguei, quero também recompensar. (Toma Chiquinha pela mão e coloca-se com ela em frente de Pimenta, dando as mãos como em ato de se casarem.)  Sua bênção, querido pai Pimenta, e seu consentimento! 
PIMENTA: O que lhe hei de eu fazer, senão consentir?!
FAUSTINO: Ótimo! (Abraça a Pimenta e dá-lhe um beijo.  Volta-se para Chiquinha.)  Se não houvesse aqui tanta gente a olhar para nós, fazia-te o mesmo... (Dirigindo-se ao público.)  Mas não o perde, que fica guardado para melhor ocasião.
 

 

 


Ana Paula Secco, Gabriela Rosas, Anderson Mello e Luiz André Alvim.

           

            Torna-se desnecessário falar mais sobre os textos de MARTINS PENA.  Passemos, então, a comentar outros detalhes desta excelente montagem:

 

            1) Direção: DANIEL HERZ – O currículo de DANIEL, como diretor, é vasto, premiado, dispensando maiores elogios.  Limito-me a dizer que, para se montar uma peça de época, é preciso muita pesquisa e criatividade, para “desconstruir e subverter”, no melhor sentido possível, a fim de que o espetáculo, como é o caso desta peça, cujo texto foi escrito na primeira metade do século XIX, seja do agrado do público de hoje, sem, contudo, interferir na obra, a ponto de descaracterizá-la.  Foi exatamente isso que DANIEL fez, com muita competência, neste trabalho: desconstruiu, sem destruir, e reconstruiu, com sua genialidade criativa.

 

A única montagem de um texto de MARTINS PENA, de que me lembro, na qual o diretor ousou fazer algo diferente, fugir aos clichês do TEATRO, em se tratando de um texto clássico, foi em “As Desgraças de uma Criança”, no saudoso Teatro Casa Grande, quando Antônio Pedro, diretor da montagem, que ficou em cartaz por dois anos, se não me engano, de 1973 a 1975 (Saudade desse tempo, quando um espetáculo teatral ficava em cartaz durante meses, com nove sessões semanais, de 3ª feira a domingo, com três matinês!!!), também, com muita genialidade, inovou bastante.  Lembro-me bem de Eduardo Dusek, atuando e tocando piano, arrancando grandes gargalhadas do público, e de Marco Nanini, solto no palco, em mais uma de suas demonstrações de apurado talento e inesgotável veia cômica. 

 

Mas a “subversão herziana” me agrada mais.

 

 


Paulo Hamilton.

 

 

            DANIEL HERZ é um diretor “de atores” e, conhecendo, a fundo, os seus, o talentoso material humano de que dispõe, permite que cada um construa os personagens, interferindo apenas no que acha que, embora já esteja bom, pode, ainda, melhorar.

 

Uma das características mais importantes, das marcas estilísticas do texto de MARTINS PENA, são as falas dos personagens diretamente à plateia, “à parte” da cena, quase solilóquios, o que gera uma cumplicidade entre esta e aqueles.  DANIEL as manteve, e nem se esperaria que fosse diferente, e soube, por meio de marcações geniais e intenções, via inflexões, propositais, valorizar as cenas.

 

A alternância de atores, na posição do falso Judas, grudado a um cabideiro do cenário, e na formação do “parapeito da janela” são ideias magníficas, assim como deixar os atores, imóveis, entre cabideiros, com figurinos, aguardando a entrada do público, bem como fazer uma atriz desmaiar “em pé”.  A marcação, em fila, lado a lado, num mesmo plano, no decorrer, praticamente, de todo o tempo de duração da primeira peça, é algo que poderia se tornar monótono, contudo isso não acontece.  Foi um risco muito grande, que valeu a pena ter sido corrido.  Um toque de modernidade, que funciona e não deixa de ser uma crítica aos “escravos da tecnologia”, se dá, quando um dos atores abandona o personagem e deixa a cena, falando em seu celular, devidamente retirado do bolso do figurino.

 

A escolha das três peças permite que a direção, com muita sabedoria, trace um oportuníssimo paralelo entre o passado, de um Brasil “ingênuo”, e o presente, de um Brasil que luta, com todas as armas de que dispõe, contra o excesso de “esperteza” e de corrupção.

 

Agradou-me muito, também, a ideia de fazer com que os atores, entre uma peça e outra, em meia luz, enquanto vestem os figurinos da próxima representação, digam falas marcantes de outros textos de MARTINS PENA.

 

 


Leandro Castilho.

 

 

2) Elenco: Formado por profissionais do melhor nível, versáteis e aplicados.  Fica muito difícil destacar um, dentre os seis, que fazem parte do grupo fixo da CIA. ATORES DE LAURA, e GABRIELA ROSAS, convidada para esta montagem e que apresenta o mesmo, e ótimo, nível de atuação dos colegas, demonstrando estar perfeitamente inserida na família da “Dona Laura”.

  

Sem exceção, TODOS brilham, nos diversos papéis que representam, entretanto não poderia deixar de desviar um pouquinho só do foco para ANA PAULA SECCO, LEANDRO CASTILHO, MARCIO FONSECA e PAULO HAMILTON.  Esse “pequeno destaque” não se dá pela maior ou menor importância dos papéis que representam, uma vez que estes, todos, nas três tramas, permitem um excelente trabalho de construção de personagem, o que, certamente, os sete atores fazem, entretanto o quarteto acima mencionado, na minha visão, destaca-se.  Pronto!  Pensei, mil vezes, se deveria escrever isso ou não, e acabei fazendo-o.  Quase arrependido!!! 

 

O elenco é brilhante!!!

 

 


Uma “química”, que vem de outras montagens,

entre Paulo Hamilton e Ana Paula Secco.

 

 

3) Cenário: FERNANDO MELLO DA COSTA – A concepção do cenário parte de uma ideia simples, porém de grande efeito plástico, alem de poder ser considerada uma homenagem, não só à figura dos atores de TEATRO, como, principalmente, aos figurinistas, quando põe, no fundo do palco, dezenas de cabides de pé, sustentando roupas e adereços, que serão utilizados em cena ou apenas para adorno, sugerindo coxias e camarins.  A esses cabideiros, misturam-se os próprios atores, gerando, no público, uma intencional (?) confusão entre imagens vivas e componentes para a construção dos personagens. 

 

 

4) Figurinos: ANTÔNIO GUEDES Perfeitamente adequados à época e aos personagens, com intencionais toques de exagero, em alguns, o que contribui para provocar o riso, antes de tudo obtido pelo texto e pela maneira como este é dito e interpretado pelo elenco.  Às vezes, pequenos acessórios, o que me parece ser a tônica dos figurinos, são suficientes para caracterizar este ou aquele personagem.  A ideia – deve ter sido conjunta, entre diretor, cenógrafo e figurinista – de fazer com que os personagens, em quase todo o tempo de duração do espetáculo, troquem de roupa, para compor um novo personagem, às vistas do público, desfaz um pouco o mistério dos bastidores e “humaniza” a atuação do ator, visto, por muitos, como um ser inatingível, de um outro plano.

 

 

 


Figurinos.

 

 

 

5) Visagismo: DIEGO NARDES – Gosto muito da exploração de uma maquiagem forte, exagerada, de cores vivas, sobre um fundo branco, próxima aos “clowns”, desenvolvida por DIEGO, para este espetáculo.  Combina com os personagens e a linha assumida pela direção.

 

 

6) Iluminação: AURÉLIO DE SIMONI – Desta vez, AURÉLIO, para executar um ótimo trabalho, como sempre, optou por uma luz partindo mais das laterais baixas (não do chão) do palco e pouco direcionada aos personagens, privilegiando mais a cena, como um todo, do que os solos, a não ser quando isso se fazia muito necessário.  Bom trabalho!!! 

 

 

7) Direção de Movimento: DUDA MAIA – DUDA vem de um grandioso trabalho, em “Beija-me como nos Livros”, que muito me impressionou, e chega quase àquela grandiosidade, neste espetáculo.  Muito do brilho cênico deste espetáculo é devido ao trabalho de direção de movimento, sempre em consonância com a direção.  Os deslocamentos dos atores pelo palco, ora bruscos, ora mais lentos e suaves, totalmente harmoniosos, afinados com as atitudes e comportamentos dos personagens, são perfeitos.

 

 


Luiz André Alvim.

 

 

8) Trilha Sonora Original: LEANDRO CASTILHO – Depois de seu magnífico trabalho de direção musical e composição de trilha sonora para “As Bodas de Fígaro”, outra, recente e brilhante, direção de DANIEL HERZ, que lhe rendeu o Prêmio Cesgranrio, no ano passado, além de outras indicações, LEANDRO nos apresenta, aqui, uma trilha mais simples que aquela, porém não menos interessante e adequada às três peças e ao espírito do espetáculo, no todo.

 

 

Não resta a menor dúvida de que MARTINS PENA contribuiu para a compreensão histórico-sociológica do seu tempo, bem como com a linguística, visto que escrevia as falas das personagens, utilizando a linguagem coloquial da época.

 

Se, por uma esdrúxula hipótese, uma “hecatombe” destruísse a Terra e, evidentemente, todas as bibliotecas do mundo e, por uma razão totalmente inexplicável, dessa catástrofe, restasse apenas um volume com as peças de MARTINS PENA, seria possível chegar-se à realidade do Rio de Janeiro da primeira metade do século XIX, da civilização que ali habitou, apenas pelos detalhes descritivos dos hábitos de seus habitantes e da linguagem da época, pela pena do PENA.

 

 

            Recomendo, de todo coração, este espetáculo!!!

 

 

 


 

 

 

 
FICHA TÉCNICA:
 
Texto: Reunião de três obras de Martins Pena: “A FAMÍLIA E A FESTA NA ROÇA” (1838), “O CAIXEIRO DA TAVERNA” (1845) e “O JUDAS NO SÁBADO DE ALELUIA” (1846).
Direção e Concepção: Daniel Herz
 
Elenco: Ana Paula Secco, Anderson Mello, Gabriela Rosas, Leandro Castilho, Luiz André Alvim, Marcio Fonseca e Paulo Hamilton
 
Iluminação: Aurélio de Simoni
Cenário: Fernando Mello da Costa
Figurino: Antônio Guedes
Visagismo: Diego Nardes
Trilha Sonora Original: Leandro Castilho
Direção de Movimento: Duda Maia
Projeto Gráfico: Maurício Grecco
Direção de Produção: Renata Campos
Consultoria Psicanalítica: Evelyn Disitzer
Assistente de Direção: Tiago Herz
Assistente de Produção: Thaisa Areia
Assessoria de Imprensa: MNiemeyer
Fotos: Paula Kossatz e Ricardo Brajterman
Assistente de Figurino: Renata Mota
Direção Artística da Cia Atores de Laura: Daniel Herz
Realização: Cia Atores de Laura
 

 

 

 


Gabriela Rosas.

 

 

 
SERVIÇO:
 
Temporada: Até 25 de outubro.
Local: Teatro Poeira 
Endereço: Rua São João Batista, 104 – Botafogo – Rio de Janeiro
Telefone: (21) 2537-8053
Sessões: De 5ª feira a sábado, às 21h, e domingo, às 19h.
Preço: R$70,00 (inteira) e R$35,00 (meia-entrada).
Capacidade: 120 lugares
Indicação Etária: 12 anos

 

 


Ana Paula Secco e Paulo Hamilton.

 

 

 

(FOTOS: PAULA KOSSATZ

e

RICARDO BRAJTERMAN.)

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário