QUEIME
ISSO
(SUCESSO
ATRAI SUCESSO.)
Tenho
uma inveja “branca” de quem consegue inventar histórias interessantes, criar
tramas que são capazes de prender a atenção das pessoas e despertar, de alguma
forma, o interesse e a admiração delas.
“Quando
eu crescer”, quero ser LANFORD WILSON,
o autor do texto da peça “QUEIME ISSO” (“BURN THIS”), traduzida,
de forma mais que competente, por RICARO
VENTURA, e que acabou de estrear no Centro
Cultural da Justiça Federal (ver SERVIÇO).
Lanford Wilson, o autor.
Qualquer
espetáculo teatral que pretenda fazer sucesso, de público e de crítica, precisa
partir, primeiramente, de um bom texto,
de uma boa história, que seja muito interessante.
Lendo a sinopse de “QUEIME ISSO”, a pessoa não tem ideia
da trama que será contada no palco, como, aliás, ocorre na maioria das vezes.
SINOPSE:
A peça se desenvolve após
o funeral de ROBBIE (não aparece em
cena), um jovem bailarino
“gay”, que morreu afogado, junto com
o seu namorado, em um acidente de barco.
Em cena, estão os companheiros de apartamento do morto: ANNA (KARINE CARVALHO), sua parceira de
dança, bailarina e aspirante a coreógrafa, mulher sensível, e LARRY (ALCEMAR VIEIRA), publicitário e
também “gay”.
Logo depois, chegam ao “loft” o roteirista BURTON (CELSO ANDRÉ), namorado de ANNA, e PALE (TATSU CARVALHO) o irmão de ROBBIE, que é gerente de um restaurante sofisticado.
Os quatro tentam enfrentar a tragédia que compartilham e
dar um sentido às suas vidas e relações.
Viram? Isso seria suficiente para atrair tanto um
espectador a um teatro? Se, entretanto,
você assistir a este espetáculo, não só tenho a certeza de que gostará de
revê-lo, como também o recomendará a seus amigos, e até aos inimigos, para que
estes lhe agradeçam a indicação e se tornem seus amigos.
Podemos
dizer que o texto aborda a
experiência de encontros e desencontros de quatro personagens, movidos pelas consequências
de uma tragédia comum a eles, qual seja a morte de ROBBIE, cada um vivenciando o seu luto particular, levantando questões
existenciais, a partir das quais vão sendo desvendados desejos reprimidos e
mistérios não esclarecidos. No fundo, no
fundo, há, por parte de cada personagem, um constante e determinado desejo de
superação da dor da perda e dos preconceitos incrustados em seus corações. O autor sabe dosar, com maestria, a tensão que
envolve todos os relacionamentos com um tipo de humor, principalmente via LARRY, o personagem de ALCEMAR VIEIRA, que leva o espectador a
rir, até a dar boas gargalhadas, após o que, ficar se questionando: “Estou rindo
de quê?”.
No setor de
telenovelas, ainda que tenham surgido, nos últimos tempos, autores de relevada
competência e, por isso mesmo, admirados e festejados pelo público e pela
mídia, durante muitos anos, ouvi, nos bastidores, a seguinte afirmação: “Ninguém escreve diálogos melhor que Gilberto Braga. Em compensação, Janete Clair é insuperável na invenção de histórias.”. Passei a prestar atenção a isso e acabei por
concordar com tal máxima. LANFORD WILSON seria uma mistura de Janete Clair com Gilberto Braga do hemisfério norte, por conseguir engendrar um
enredo tão bom, contado em diálogos precisos e naturais, inteligentemente
construídos, precisos, sem gorduras.
No
TEATRO, que é uma arte do coletivo
para o coletivo, ou seja, ninguém faz TEATRO
sozinho nem para si mesmo, o ponto de partida para o sucesso – reitero - é, sem
dúvida nenhuma, um bom texto, uma
boa história. Nesse quesito, e por
outros mais, “QUEIME ISSO” está
fadado ao sucesso.
O
texto, escrito em 1987, é inédito no
Brasil, assim como também é a primeira vez que LANFORD WILSON é montado entre nós, se não me equivoco. Trata-se de um dramaturgo americano, falecido
há tão pouco tempo, em 2011, às vésperas de completar 74 anos. É considerado um dos fundadores do movimento
teatral Off-off-Broadway, recebeu um
Prêmio Pulitzer de Drama, em 1980,
por “Insensatez de Talley”, tendo
sido um dos primeiros dramaturgos a fazer a escalada Off-off-Broadway > Off-Broadway > Broadway. Também foi eleito para o Salão Theater of Fame, em 2001, e para a Academia Americana de Artes e Letras. Recebeu vários prêmios, como dramaturgo,
tendo sido, inclusive indicado para o Tony.
Anna (Karine Carvalho) e Burton (Celso André).
A versão
original, “BURN THIS”, foi montada,
na Broadway, em 1987, com John Malkovich,
Joan Allen, Lou Liberatore e Jonathan
Hogan. Na ocasião, Joan Allen ganhou o Tony de melhor atriz e Lou
Liberatore recebeu indicações para o Tony
e Drama Desk Award, premiação à qual
John também foi indicado.
Em 1990, o
espetáculo ganhou uma nova versão, esta encenada no West End, em Londres. Voltou
à cena em Nova York, em 2002, no Union
Square Theatre, com Edward Norton , Catherine
Keener, Ty Burrel e Dallas Roberts. Pelo papel, Norton ganhou o Obie Award, famoso prêmio do circuito Off-Broadway.
Não
é só nesta peça que a problemática criada sobre a chamada identidade sexual, seu tema central, está presente na obra de WILSON.
Isso também ocorre em, pelo menos, mais três outras do dramaturgo, o que
parece ter sido tal temática de grande importância e preocupação para ele.
Seus
diálogos são marcados por
autenticidade, coragem, naturalidade e simplicidade. São diretos, curtos, ágeis e cheios de
verdade, muitas vezes sobrepostos uns aos outros, sem que isso atrapalhe a
compreensão do texto, pela sutileza artesanal empregada em sua criação.
No
que tange aos temas, é frequente, em
suas obras – e, aqui, não é diferente -, vê-lo tratar da ruptura dos padrões
familiares da típica família americana; da dor de uma perda; do amor, vivido sob as mais diversas óticas;
da solidão; da amizade; do conceito de sanidade e, como já foi dito, do
homossexualismo, dentro da identidade sexual, sendo que esta, indiretamente, se
relaciona às outras temáticas mencionadas.
Anna e Pale (Tatsu Carvalho).
Seus
personagens são muito bem acabados,
definidos, verdadeiros estereótipos e dignos representantes da sociedade,
alguns dos quais marginalizados, como os “gays”. A propósito, WILSON tornou-se célebre, também, por ter sido um dos primeiros
dramaturgos a colocar, em seus textos, “gays”
e lésbicas, numa época em que isso ainda era um grande tabu, principalmente nos
Estados Unidos.
Como
grande admirador e tradutor de Anton
Tchékhov, LANFORD WILSON guarda
uma certa influência de seu ídolo. Algumas
das referências de um teatro realista/naturalista são postas em cena,
magistralmente, pela brilhante direção
de VICTOR GARCIA PERALTA, como o
palco aberto, cru, sem tapadeiras, escondendo as coxias, e falas que são dadas
fora de cena, como extensão do pequeno palco do teatro do CCJF.
Um
ponto bastante instigante no texto
de “QUEIME ISSO”, e que muito me
agrada, é o fato de o autor deixar, no ar, determinados detalhes, para que o
público tire suas próprias conclusões, o que pode gerar ótimas reflexões e
discussões no bar mais próximo ao teatro, tais como a verdadeira versão da
morte de ROBBIE e seu namorado (Teria sido mesmo um “acidente”?) e o
final aberto, valorizado pela direção da peça, após a conclusão do último diálogo
entre ANNA e PALE. Eles terminam suas
falas, fazem uma pequena pausa e insinuam um caminhar, um em direção ao outro,
deixando, à interpretação de cada espectador, os destinos dos dois: juntos ou não?
(Da esquerda para a direita) Alcemar Vieira, Karine Carvalho,
Tatsu Carvalho e Celso André.
“QUEIME ISSO” é um espetáculo sobre
preconceito e aceitação, sobre amores e desamores, sobre perdas e superações,
sobre derrotas e conquistas, sobre o ser e o querer e vir a ser, sobre pessoas solitárias,
que vivem em mundos, aparentemente, opostos, porém, no fundo, tão
parecidos. O texto é crítico e sutil, não deixando de lado a marca mais conhecida
do autor, de fazer diálogos simultâneos.
Com
relação à ficha técnica do
espetáculo, além do brilhantismo do texto, de LANFORD WILSON, e de sua ótima tradução,
assinada por RICARDO VENTURA, e da
excelente direção de VICTOR GARCIA PERALTA, um cidadão do
mundo, radicado, felizmente, no Brasil, um grande destaque desta montagem está
na reunião de quatro profissionais de gabarito, para formar o elenco da peça.
Elenco.
KARINE CARVALHO (ANNA) inicia o
espetáculo de uma maneira que, absolutamente, representa um indício do que será
o seu excelente trabalho ao longo de 100
minutos de ação. A única restrição
que faço à direção da peça diz respeito
à longa cena em que a atriz adentra o palco, retornando do funeral do amigo, o
que será revelado logo depois, e fica, em silêncio, andando pelo espaço cênico,
fumando e bebendo, descendo as escadas, para o andar de baixo, retornando à cena, durante todo
o tempo que dura uma canção de fundo.
Acho um pouco longa e cansativa a cena.
Tirante isso, a atriz tem uma excelente atuação, revelando surpresas na
conduta de sua personagem. ANNA, que é bailarina, aspira a voos
mais altos, numa carreira de coreógrafa, porém o receio de um fracasso freia
suas pretensões, até que a morte do amigo estimula-a, desafia-a. E ela se rende a tudo e tem sua vida
transformada. Namorada de BURTON (CELSO ANDRÉ), sente-se
insegura, quanto a seus sentimentos por ele, abalada que fica com a chegada de PALE (TATSU CARVALHO), iniciando-se,
aí, uma espécie de triângulo amoroso.
Muito bom o trabalho de KARINE!
Karine Carvalho.
TATSU CARVALHO é PALE, irmão de ROBBIE,
que vai ao apartamento que este dividia com ANNA e LARRY, para pegar
os poucos pertences do falecido. É
homofóbico convicto, assim como toda a família do morto (Todos não queriam
saber da existência de LARRY.); um
personagem bruto, a ser dilapidado, extremamente grosso, truculento, agressivo
e, aparentemente, desprovido de qualquer sentimento positivo. Trabalha, há muitos anos, num restaurante,
onde vive acomodado como gerente e, às vezes, dublê de chefe de cozinha, sem
coragem de sair da sua zona de conforto.
Casado, com filhos, mas com um casamento a equilibra-se no arame. Há um abismo enorme entre ele e ANNA, no que se refere a tudo o que
envolve sentimentos e emoções, visões de mundo, entretanto os dois se encontram
na cama. Uma atração física os une,
talvez pela dificuldade de digerir a morte de ROBBIE. Assim como em “Um Estranho no Ninho”, peça que ainda
pode ser vista, de 6ª feira a domingo, no Teatro Vannucci (Shopping da Gávea –
Rio de Janeiro), na qual é o protagonista, TATSU atua com muita garra e talento, valorizando o personagem.
Tatsu Carvalho (com Karine).
CELSO ANDRÉ dá vida a BURTON, o personagem – não o ator - menos marcante na
trama. Trata-se de um roteirista, rico
de berço, que não precisa de seu trabalho para sobreviver, passando por um
momento de crise, em se tratando de criatividade, não muito convicto de seu
talento. Amigo dos três que dividiam o
apartamento, incluindo o falecido, era pretendido por ANNA, até que, após a morte de ROBBIE,
torna-se namorado dela, numa relação não muito convincente e completamente
abalada, fragmentada e “destruída” (?), com a intromissão de PALE.
O ator faz um trabalho convincente, dentro das não tão generosas
possibilidades oferecidas pelo personagem.
Celso André.
E,
por último, mas não menos importante, temos ALCEMAR VIEIRA, um grande ator, tanto em papéis dramáticos como cômicos,
e que, aqui, mais uma vez, revela todo o seu enorme talento, vivendo LARRY, um publicitário “gay”, denotativa e conotativamente
falando. Interpretar um personagem “gay”, via de regra, é um passaporte
para o ridículo, quase sempre por conta do tom caricato, estereotipado, como,
geralmente, são interpretados. ALCEMAR, no entanto, faz um LARRY
descontraído, muito irônico, ácido em suas intervenções e piadas inteligentes,
expansivo, perspicaz, solidário, sincero, extremamente engraçado e,
paradoxalmente, sem exageros, a não ser nos gestos e entonações, que só fazem
acrescentar destaque ao personagem e conquistar a simpatia da plateia. Pode-se dizer que participa de todas as
cenas, mesmo quando ausente ou, quando presente, calado. Por várias vezes, peguei-me prestando mais
atenção a ele, que não participava ativamente da cena, do que aos atores
actantes, por mais que fossem boas as atuações.
Um trabalho inesquecível!
Alcemar Vieira.
Alcemar, calado, mas "participando" da cena.
Como
se trata de uma produção modesta,
nem por isso deixando de ser EXCELENTE,
a falta de recursos leva a um cenário
simples, porém perfeitamente adequado ao “way of life”, ao estilo dos três
moradores daquele apartamento. Seu autor
é o consagrado arquiteto MIGUEL PINTO
GUIMARÃES, um amante do TEATRO, que
cria cenários “por hobby”, mas que poderia fazer disso sua segunda profissão, sempre
com muito bom gosto e precisão.
Por
outro lado, a despeito do pouco montante investido na produção, mais uma
espécie de “ação entre amigos”, são ótimos, e de muito bom gosto, os figurinos, de ALESSANDRA PADILHA.
Com
relação à iluminação, de FELIPE LOURENÇO, como toda a ação se
passa numa sala residencial, a pedido do diretor,
foi feita uma “luz de casa”, quase de serviço, sem exageros nem variações, muito bem elaborada.
Gosto
da trilha sonora, de MAURO BERMAN
e da direção de movimento, de TONI RODRIGUES.
Pale desafiando.
Momento tensão.
Há
pessoas que parecem ter um tino, para saber como se faz uma escolha. Como ator e, principalmente, produtor, TATSU CARVALHO é uma dessas pessoas. Depois da brilhante montagem de “Um Estranho no Ninho”, feita com muita
garra, sem patrocínios, contando com o apoio de um grupo de abnegados, dedicados
e talentosos amigos, TATSU se lança,
ao lado de ANA BEATRIZ FIGUEIRAS, em
sua segunda produção, nos mesmos
moldes da primeira, com um espetáculo digno de todos os elogios.
FICHA TÉCNICA:
Texto: “Queime Isso” (Burn This), de Lanford Wilson.
Direção: Victor Garcia Peralta.
Direção de Movimento: Toni Rodrigues.
Tradução: Ricardo Ventura.
Cenário: Miguel Pinto Guimarães.
Figurinos: Alessandra Padilha.
Iluminação: Felipe Lourenço.
Design Gráfico: Ana Andreiolo.
Trilha Sonora: Mauro Berman.
Atores: Tatsu Carvalho, Karine Carvalho, Alcemar Vieira e
Celso André.
Produção: Tatsu Carvalho e Ana Beatriz Figueras.
Assessoria de Imprensa: Lu Nabuco - Assessoria em
Comunicação.
Anna e Burton: uma relação "quase" estável.
Anna e Pale: uma relação conflituosa (?).
O amor está na pele (?).
SERVIÇO:
Temporada: Até 17 de setembro.
Dias e Horário: 4ªs e 5ªs feiras, às 19h.
Local: Centro Cultural Justiça
Federal - Av. Rio Branco, 241 - Centro - Rio de Janeiro (Cinelândia).
Tel.: 21 3261 2550.
Bilheteria: 4ªs e 5ªs feiras, das 17h às 19h.
Ingressos: Inteira: R$30,00; Meia
Entrada: R$15,00.
Classificação: 14 anos.
Duração: 100
minutos.
Capacidade: 141 lugares.
Gênero: Comédia
dramática.
Aplausos. Bravo!
(FOTOS:
FELIPE DINIZ
e
RICARDO
BRAJTERMAN.)
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