CONSELHO DE CLASSE - RETRATO DA
TRISTE E FALIDA REALIDADE DA EDUCAÇÃO NO BRASIL
Para comemorar
os 25 anos de sua fundação, uma das mais importantes companhias de TEATRO do Brasil, a CIA DOS ATORES, está apresentando, no
mezanino do Espaço SESC Copacabana, três espetáculos, em dias e horários
diferentes: CONSELHO DE CLASSE, LABORATORIAL
e COMO ESTOU HOJE. O foco destes comentários volta-se para o
primeiro citado.
Para iniciar, é
preciso dizer que todos os professores,
principalmente os que trabalham na rede pública (estadual ou municipal) têm a
obrigação de assistir ao espetáculo CONSELHO
DE CLASSE. Aliás, estes conhecem de
sobra, a triste realidade da escola pública brasileira, sucateada ao extremo,
nos últimos 25 anos, principalmente.
Ninguém melhor que estes professores, para conhecer, a fundo, quão
sofrido e frustrante é insistir em ser educador neste país, principalmente
quando se atua na rede pública: o governo finge que paga (salários aviltantes),
os professores chegam à exaustão, física e emocional, na tentativa de ensinar e
formar cidadãos, e os alunos, de uma forma geral, não têm o mínimo interesse em
aprender, o que parece ir ao encontro do desejo dos “governantes” (quanto maior
a ignorância, mais fácil é utilizar o cabresto e o chicote, para adestrar a
massa de manobra).
Programa da peça
A sinopse,
distribuída pela divulgação do espetáculo, limita-se a dizer apenas: “Uma reunião de professores é
desestabilizada pela chegada de um novo diretor. O encontro faz eclodir dilemas éticos e
pessoais.”
É pouco, é muito
pouco, a despeito de ser uma “sinopse”.
O que se vê ali, a poucos metros do espectador, que se sente fazendo
parte de um conselho de classe de verdade, mesmo não sendo professor, é muito
mais. É muito mais mesmo!
Em primeiro
lugar, vale a pena discutir o porquê de uma “desestabilização”, simplesmente
pela chegada de um novo diretor. Seria
tal evento motivo para tal? O medo e a
insegurança diante do novo justificariam toda a tensão que o texto apresenta,
apesar dos tons de comédia (“seria cômico, se não fosse sério”)? É claro que não é só isso! Ali, estão em jogo o descrédito na capacidade
de um gestor, quase saído das fraldas, que tem como função pôr ordem num caos,
que teria instituído, ou iniciado, ou fomentado por alguém de muito mais idade
e experiência profissional que ele, convivendo com outros pares de igual
condição etária e profissional à da professora MABEL, a que deflagra o conflito.
Mais que isso,
ainda: ali está em jogo a maneira como aquele jovenzinho foi jogado às feras,
ou melhor, o processo, nem um pouco democrático, que quase rotula o novo diretor
como um interventor no caos em que está mergulhada a escola estadual
“fictícia’, criado pela genialidade de JÔ
BILAC.
JÔ BILAC, recebendo o Prêmio Shell, de melhor autor, em 2010, pela peça SAVANA GLACIAL
Mas falar de JÔ é outro capítulo deste texto. Por ora, creio ser pertinente dizer que, ao
escrever esta peça, o autor não privilegiou nenhum dos atores; ao contrário
presenteou os cinco com personagens riquíssimos, em todos os sentidos, o que
permitiu a cada um deles, todos do mais excelente nível técnico e profissional,
viajar no processo de dar vida aos escritos do autor, resultando num fantástico
trabalho coletivo de atores.
O diretor-substituto,
JOÃO RODRIGO, esplendidamente vivido
pelo grande ator, PAULO VERLINGS, bem
novo de idade, entretanto com um talento de um veterano e um currículo
invejável, cai de paraquedas no covil dos leões, pronto a cumprir sua missão,
qual seja a de pacificar os ânimos e reconstruir o que, em pouco tempo de peça,
se sabe, infelizmente, “irrecostruível”.
Um trabalho de ator para ser aplaudido de pé.
Os outros
quatro atores são as “professoras” da escola, que se reúnem para um conselho de
classe de final de ano, em pleno verão escaldante do Rio de Janeiro. Acredito que o “calor” daquele ambiente deve
ser reproduzido em qualquer lugar do Brasil, já que as mazelas da educação
brasileira são, realmente, brasileiras, e não regionais, um pouco menos
intensas, talvez, ali ou acolá. Aqui,
com certeza, no Rio de Janeiro, são “tórridas”.
Excelente a ideia
de escalar quatro homens para os papéis femininos, sem que haja caracterização
física de mulheres, menos ainda trejeitos femininos nas representações. Muito interessante mesmo tal detalhe.
Tensão em cena
CÉSAR AUGUSTO representa a professora CÉLIA PATRÍCIA, que, para sobreviver,
já que isso seria impossível com o mísero salário que recebe do governo,
ajudando a um filho recém-operado e a criar um neto, agrega, a seus pertences e
acessórios de trabalho, dois enormes sacolões, de onde sai um camelódromo, com
estoque variado, que vai de roupas a cremes de toda sorte e para todos os
fins. Tudo para “servir às colegas”, as
quais, provavelmente lhe apliquem calotes, o mesmo que ela faz com a senhoria,
quando esta lhe cobra o aluguel atrasado.
Fui professor,
durante trinta anos, da rede municipal carioca, e conheço tantas célias, que dá
para perder as contas. Contribuí
bastante para a sobrevivência de algumas delas.
Há uma quase
perspectiva de a professora CÉLIA
trocar a sala de aula por uma função burocrática na Secretaria de Educação, ou
algo parecido, atrelado a esta, o que a faria conhecer, enxergar e, talvez,
entender o outro lado do sistema. Em
outras palavras, CÉLIA poderia, a
qualquer momento, passar de oprimida a opressora. É bom acrescentar que tal transferência de
cargo e função seria proporcionada pela esposa de um primo, que se tornara
deputada. JÔ não deixa escapar a oportunidade de criticar o nepotismo, tão
nosso conhecido.
A professora CÉLIA, de Ciências e Matemática,
apresenta-se como acomodada, ou melhor, resignada, diante da ignorância dos
alunos e da impossibilidade de conseguir mudar isso.
É excelente o
trabalho do ator, também responsável por uma galeria de ótimos personagens
anteriores, na CIA DOS ATORES ou
fora dela. Parabéns, professora CÉLIA PATRÍCIA.
O elenco: Thierry Tremouroux, Paulo Verlings, Marcelo Olinto, Leonardo Netto e César Augusto
LEONARDO NETTO, a professora EDILAMAR, de Educação Física, e
treinadora da equipe de handebol (acho que não errei no detalhe do esporte), é
a que mais contesta o cotidiano daquela escola e a que mais parece estar
preocupada em fazer voltar o tempo em que o professor era respeitado e considerado
pelos alunos, além de valorizado pela sociedade; uma época em que todos sabiam
quais eram os seus direitos e, também, os deveres; um tempo em que a Educação
era o objetivo maior de uma escola; era a Educação o que se oferecia e o que se
buscava num estabelecimento de ensino. É
a que mais sofre com os problemas da escola, a que demonstra o maior empenho em
conservar a instituição, tanto física como ideologicamente. Faz da escola o quintal da sua casa.
O conflito
criado entre a personagem de LEONARDO
e a professora MABEL (THIERRY
TREMOUROUX) é responsável pelos momentos mais tensos da peça, entremeados
por situações cômicas, que provocam muito riso.
Aliás, quanto a este fato, o de a plateia rir tanto, em determinadas
cenas, cheguei à conclusão de que se ri do patético, do insólito, do surreal;
trata-se de um riso nervoso.
Acreditem. Principalmente os
professores, que estão indo, em peso, assistir ao espetáculo e que se
transferem, durante pouco mais de uma hora, para o espaço cênico.
LEONARDO NETTO supera-se, depois do
brilho de seu trabalho em FREUD – A
ÚLTIMA SESSÃO. Não há como o
espectador não se identificar com a revolta e a indignação da personagem,
graças à excelente composição do ator.
Grande trabalho, LEO!
Personagens e suas respectivas "características" (detalhes na lousa)
MARCELO OLINTO chama a atenção com sua
personagem, a professora PALOMA, que
prefere, ou antes, exige ser chamada de TIA
PALOMA, ranço de tratamento ridículo, a meu ver, infelizmente, ainda
utilizado por alguns. É ótima a
composição de sua personagem, a mais velha de todas, a mais antiga naquela
escola, a que já poderia estar aposentada, mas que promete abandonar o
magistério apenas pela compulsória. É
uma espécie de preceptora das colegas mais jovens e de menor experiência na
profissão. Cuida do café e do lanchinho
do grupo (também já conheci outras palomas).
Palomas existem na vida real, professoras, e professores também, que,
por se sentirem tão solitários, tão desnecessários à sociedade, à vida, não têm
coragem de partir para uma nova realidade, e permanecem nos seus postos, apenas
em presença física, até a compulsória ou a morte, “trabalhando” na escola. Paloma já não tem mais condições de enfrentar
uma sala de aula, e, há cerca de dez anos, é a responsável pela biblioteca da
escola (eu disse que conhecia muitas palomas – pobres palomas!).
Fala manso, chegando
ao requinte de caminhar arrastando os pés, penso que não por ser idosa, a
decana de todas, mas por ser um reflexo da sua postura como professora “da antiga”
e que, portanto, não apresenta mais resistência para lutar contra o “status quo”,
menos ainda para se arriscar a novas experiências, para buscar esperança na
realidade de um ensino falido. Tenta ser
a mediadora dos conflitos, contudo não está capacitada para tal difícil
função. Acaba sendo, por comodidade, uma
maria-vai-com-as-outras.
MARCELO está perfeito no papel e a
última cena da personagem é de um realismo incomensurável. Muitos aplausos para ele!
Elenco
THIERRY TREMOUROUX interpreta a
professora MABEL, de Artes, aquela
que acredita num outro modelo de escola, completamente utópico para a realidade
brasileira, quiçá mundial. Personagem
muito interessante, que não deixa claro - pelo menos, foi esta a leitura que
fiz -, em função das acusações de EDILAMAR
e de CÉLIA, principalmente, se ela é
“mocinha” ou “bandida” na estória (Viva Guimarães Rosa!!!).
É acusada de
instigar os alunos a uma rebelião contra a antiga diretora, VIVIAN, que culminou com uma grave agressão a esta e uma
conseqüente e séria contusão, o que a fez afastar-se de suas atividades de
gestora da escola, abrindo caminho para a chegada do diretor-substituto.
Por oportuno,
deve-se dizer que foi MABEL a
responsável por uma carta a um setor da Secretaria de Educação, relatando
“fatos ocorridos na escola” e solicitando alguém que substituísse VIVIAN, no caso, o
diretor/interventor-substituto, JOÃO
RODRIGO, sem que as demais “colegas de trabalho” tomasse conhecimento de
sua atitude.
Ela só
consegue enxergar um lado, aquele que a favorece em suas intenções (boas ou
más?), é claro, nos alunos, até mesmo naqueles de comportamento mais deplorável
e completamente inaceitável. Tenta justificar
os atos de vandalismo dos michael douglas tupiniquins como uma forma de reagir
à opressão imposta pela direção da escola, quando esta apenas, por exemplo, para
fazer cumprir o regulamento da escola, impede os alunos de irem de boné às
aulas. Félicitations, Thierry! Que c'est bon de
vous voir
sur scène! (Será que a professora MABEL vai me reprovar pelo meu francês “googlês”?)
Fora isso, ou
melhor, além disto, as quatro trazem consigo seus problemas particulares, seus
anseios e frustrações, suas impossibilidades de realização pessoal, além da
profissional, para o ambiente de trabalho, e isso é de uma riqueza muito grande,
um prato cheio para ao desenvolvimento da trama.
Cenas da peça
Quanto à ficha
técnica do espetáculo:
TEXTO – JÔ BILAC: Sou fã de carteirinha
do talento deste muito jovem dramaturgo, com várias indicações a prêmios e
conquistas de alguns. Assim como “Os
Três Mosqueteiros” eram quatro, os nossos melhores dramaturgos da atualidade,
curiosamente todos muito jovens, também o são: JÚLIA SPADACCINI, RENATA
MIZRAHI, JÔ BILAC e DIOGO LIBERANO.
Acredito que
este é o melhor texto de JÔ, ou o
que mais me tocou, talvez pelos motivos, óbvios, de eu também ser professor, de
ter vivenciado o que vi, e revi, em cena e por estar envolvido na grande
covardia que vem sendo cometida contra os profissionais de educação, no Brasil
e, principalmente, no Rio de Janeiro, pelos governos estadual e municipal.
Parabéns a
quem lhe prestou a assessoria que lhe permitisse penetrar no universo da
educação pública neste país, sem o que seria impossível dar forma a tão
brilhante texto.
DIREÇÃO – BEL GARCIA E SUSANA RIBEIRO: Cumprimento
ambas pela linda direção. Como não vi,
na ficha técnica, ninguém responsável pela direção de movimento, penso que esta
parte também ficou por conta da dupla, e é muito boa. Gostei bastante, também, da exploração, em
vários momentos da encenação, de espaços fora da vista da plateia. As aparições e deslocamentos dos atores/personagens
pela grande área de cena são responsáveis por um dinamismo muito grande e criam
grandes expectativas no desenvolvimento da trama. Logo no início da peça, ficou excelente a
sugestão de um zelador, citado no decorrer da peça, mas que não aparece em
cena, varrendo uma das dependências da escola, detalhe percebido apenas pelo
som produzido por uma vassoura, atritando o chão. Não desfaçam a dupla, meninas!
CENÁRIO – AURORA DOS CAMPOS: Este
merece um comentário especial, por se tratar de um riquíssimo elemento nesta
montagem. Simplesmente esplêndido! São perfeitamente reproduzidas, em cena, as
dependências de uma escola pública, mal equipada de mobiliário, sem oferecer o
menor conforto a quem por lá transita, completamente depredada pela ação de
vândalos (isso é ser Vândalo, Sr. Sérgio
Cabral), com falta d’água, banheiros sem portas e fétidos (o detalhe do
olfato fica por conta da imaginação do espectador), vasos sanitários sem
tampos... AURORA deve ter percorrido algumas das nossas escolas públicas (a
grande maioria não faz diferença uma da outra) e, até mesmo, quem sabe, ter
garimpado móveis e objetos de cena em algumas delas. Aposentado, há cerca de dez anos, de uma
escola municipal, vieram-me à mente as imagens da Escola Municipal Júlio de
Mesquita, da escola Municipal Presidente João Goulart e de tantas outras que
conheci, e ainda conheço. Parabéns, AURORA!
Mais um dos seus tantos acertos cenográficos.
ILUMINAÇÃO – MANECO QUINDERÉ: Muito
boa. A proposital má iluminação, em
muitas das cenas, por lâmpadas quebradas ou por falta delas, pareceu-me ter
sido uma das preocupações desse grande profissional do ramo. Maneco acertou na intensidade da luz, ajudando
a criar o ambiente em que se passa a ação.
FIGURINOS – RÔ NASCIMENTO E TICIANA PASSOS:
Justos e perfeitos, de acordo com as características físicas e psicológicas de
cada uma das professoras, principalmente, e as do jovem diretor. Os meus destaques vão para os figurinos da
professora MABEL e da professora,
digo, TIA PALOMA. Ótimos!
TRILHA ORIGINAL – FELIPE STORINO: Que
coisa interessante! Que riqueza de
detalhes! Desde os sons que vêm do
interior da escola, já que a reunião se dá na quadra de esportes, em função do
calor senegalês, até o ciciar de cigarras, típico dos finais de tarde do temível
verão carioca. Muito bom, FELIPE!
A tensão continua
REALIZAÇÃO – CIA DOS ATORES: Fiquei
muito feliz, quando, há poucos meses, a CIA
DOS ATORES, que havia anunciado o encerramento de suas atividades, no final
de 2012, por todas as dificuldades por que passam as companhias de TEATRO no Brasil, uniu-se a duas
outras, OS DEZEQUILIBRADOS (Ivan
Sugahara) e a PANGEIA CIA.DETEATRO (assim
mesmo), constituindo a SEDE DAS CIAS,
num simpático local, na Lapa, logo no início da Escadaria Selarón.
Para
finalizar, considero pertinente o seguinte:
1) Reproduzir
uma citação, já tão conhecida, mas que está muito bem presente no texto da
peça. Faz referência ao Japão, único
país do mundo em que todos têm a obrigação de se curvar diante do imperador, à
exceção dos professores, pois, segundo aquele povo, “um país sem professores não
pode ter imperadores”. Será que as “autoridades”
brasileiras sabem, ao menos, onde fica o Japão?
Pois bem,
essas questões lá estão, no mezanino do Espaço SESC Copacabana, até o dia 3 de
novembro (às 6ªs e sábados, às 21h, e aos domingos, às 20h). Se não as conhece ainda, ou mesmo se já foi
apresentado a elas, vá assistir ao espetáculo e, por que não aceitar a proposta
de discuti-las, nos seus núcleos sociais?
É o TEATRO, cumprindo, mais
uma vez, uma das suas missões: discutir
o social.
A CIA DOS ATORES não poderia ter
escolhido momento mais fecundo para apresentar, ao grande público, este
espetáculo. É uma oportunidade rara para
se analisar o retrato da triste e falida
realidade da Educação no Brasil das Copas e das Olimpíadas.
No sentido horário: eu e Leonardo Netto, Paulo Verlings e César Augusto
Sou professora. Na rede privada, já aposentada, na Rede Pública, aposentada no Estado e na ativa na Rede Municipal. EM GREVE NA REDE MUNICIPAL! Entrar no universo do espetáculo foi tão familiar, tão igual a MINHA ESCOLA, que chegou a doer a alma. Em alguns momentos eu ri, mas RI DE NERVOSA. Com 30 anos de magistério ( não lembro qual das professoras diz isso com um misto de orgulho e desencanto), ainda enfrento situações idênticas ao meu primeiro dia de aula numa escola pública. Texto atual, pungente, NECESSÁRIO!
ResponderExcluirBelíssima análise Gilberto. Assim como eu você conhece muito bem esse universo, ou melhor, esse "buraco negro"!