CURRAL
GRANDE
(AMADURECIMENTO
A OLHOS VISTOS.
ou
EU É QUE MUDEI?)
Acontece,
com relativa frequência, de eu assistir a um espetáculo num dia não muito
propício a nem sair de casa. Ocorre com todo mundo, creio eu. A probabilidade
de não gostar ou de gostar pouco de um espetáculo teatral, nessa situação, é muito
grande, como ocorre a qualquer pessoa. Eu sou humano, graças a Deus.
Quando isso
acontece, procuro assistir, novamente, à peça, a não ser que ela seja um
fracasso total, daquelas que não devem ser recomendadas nem ao pior inimigo,
daqueles equívocos sem retorno. Faço isso, para ratificar ou retificar a minha
primeira impressão, querendo, sempre retificar.
Acho uma atitude muito saudável, coerente, e me reservo o direito de fazê-lo,
para não cometer injustiças, se bem que, quando a montagem não me agrada,
jamais escrevo sobre ela. Às vezes, não escrevo por outros motivos: total falta de tempo e acúmulo de trabalho.
Assisti, salvo
engano, ao espetáculo “CURRAL GRANDE”,
em cartaz, por mais um final de semana, ainda, no Teatro Serrador (VER SERVIÇO.), na primeira temporada carioca, no
ano passado, na Sede das Cias, e a
montagem não me tocou. Faltou algo que me fizesse apreciá-la como um bom espetáculo.
Não me perguntem o porquê, que não saberei responder agora, mas o fato é que
não me entusiasmei com ele, embora não o tivesse considerado um daqueles “equívocos”;
muito longe disso.
Ocorre que a
peça voltou ao cartaz, no Teatro Serrador,
e eu fiz questão de revê-la, para conferir até onde eu tinha razão, ou não.
Fiz isso, há três
dias, e mudei bastante o meu conceito sobre o espetáculo.
Não que ele me
tenha arrebatado, a ponto de eu ter vontade de vê-lo mais vezes, como faço, habitualmente, entretanto,
assisti a um espetáculo muito mais maduro, mais azeitado e, principalmente, feito,
com muita garra e determinação, por quatro
bons jovens atores, numa prova de grande resistência à campanha sórdida,
que vem sendo desenvolvida contra as artes, em geral, atingindo, principalmente
as Artes Plásticas e o TEATRO.
SINOPSE:
O espetáculo, que foi
montado pelo COLETIVO PONTO ZERO, de
atores da Bahia, agora radicados no Rio, trata de um tema desconhecido por
muitos brasileiros: a existência dos chamados “currais do governo”, que funcionavam como "campos de concentração"
de sertanejos, no Ceará, durante a seca de 1932, e provoca uma reflexão
sobre os processos de “higienização
social” nas grandes metrópoles ainda hoje.
O
grande diferencial do espetáculo, a meu ver, está no conteúdo do texto; ou melhor, na sua temática, uma
vez que raríssimas pessoas, julgo eu, tenham conhecimento dela, que mostra o
quanto o ser, dito, humano é cruel, o que muito nos incomoda e envergonha, com
a agravante de ser, infelizmente, um assunto, de certa forma, atual, ainda que
tratado e cometido camufladamente, nos dias de hoje.
Como
consta, na sinopse, o texto, de MARCOS BARBOSA, com direção
de EDUARDO MACHADO, reconta os
horrores de um processo de “higienização social”, no Ceará, durante a seca de 1932, quando foram
instalados sete “currais do governo”,
no interior do Estado, para impedir a migração dos sertanejos para
a capital.
Muitos dos que conseguiram escapar desse
destino foram parar em outras cidades, principalmente algumas capitais mais ao
sul ou sudeste, com destaque para São
Paulo e Rio de Janeiro, duas
granes metrópoles, as quais, com muita força, sangue e suor, ajudaram a
construir.
Não é, mais ou menos,
o que os governos das grandes cidades fazem atualmente, quando há algum evento
de grande monta ou a visita de uma autoridade muito “importante”? As cidades
ficam “livres” dos seus mendigos e moradores de ruas, isolados, trancafiados,
em abrigos, ou sabe-se lá onde, enquanto durar a efeméride, voltando a padecer
suas dores, ao relento, passando frio e fome, sem a menor condição de civilidade
e sem o amparo governamental.
Antes desta reestreia
carioca, a montagem circulou pelo país, propondo, sempre, uma reflexão a
partir deste triste episódio histórico: o quão recorrentes e atuais são outras
práticas semelhantes de discriminação e higienização social nas grandes
metrópoles brasileiras.
Compartilhando
o “release” da peça, enviado por RACHEL ALMEIDA (ASSESSORIA DE IMPRENSA RACCA COMUNICAÇÃO), “Construído
a partir de cenas curtas, o espetáculo reúne múltiplas linguagens,
estabelecendo um ‘jogo’ com formas estéticas diferentes. Os atores BRISA
RODRIGUES, BRUNNA SCAVUZZI, CARLOS DARZÉ e LUCAS LACERDA se revezam em mais de 40
personagens, partindo da construção realista à caricatura, do teatro épico
narrativo à contação de história. A encenação faz referência, também, ao século
passado, fazendo uso de técnicas da radionovela e do cinema mudo”.
O
texto não traz nenhum grande
destaque, apesar de construído dentro das boas normas dramatúrgicas, e seu
maior mérito é, de certa maneira, como diz o próprio diretor da peça, EDUARDO
MACHADO, “...desenterrar esses mortos, dar voz a essas pessoas, que não aparecem
nos livros de história”.
E ele não se
refere, apenas, às pessoas que passaram por essa infâmia, no início da década de 1930, mas, também, a “uma
grande população que não nunca esteve na historiografia oficial”.
Para um dos
atores do espetáculo, LUCAS LACERDA,
encenar a peça é uma forma de se propor uma reflexão maior acerca do problema,
uma vez que, “Embora os currais do governo não tenham sido, necessariamente, como os
campos de concentração da Alemanha, muitas pessoas foram mortas, em situação
deprimente e vexatória. E, para a gente, a grande questão da peça, essa ‘higienização
social’, a segregação, esse processo de limpeza social é o que se vê, até os
dias de hoje, para maquiar a realidade”.
“O
texto, que mistura drama e humor (mais aquele que este), é resultado artístico da pesquisa de mestrado
do professor e dramaturgo MARCOS BARBOSA, que sentiu vontade de escrever “CURRAL
GRANDE' depois de ter assistido a uma reportagem do programa ‘Fantástico’, em 2000”' segue o “release”.
O
texto mistura ficção com fatos reais,
contados ao dramaturgo, por sua avó,
que vivenciou, de muito perto, aquela realidade da migração e dos campos. Outra
referência para a criação da dramaturgia
foi o livro “Isolamento e Poder:
Fortaleza e os Campos de Concentração na Seca de 1932” , de Kênia Sousa Rios, disponível na
Internet.
A peça é dividida em 8 pequenas cenas,
além de um prólogo, muito
providencial, durante o qual os atores, de forma clara e didática, dizem, ao público,
o que irão ver encenado. Sem essa introdução, algumas pessoas poderiam não
entender muita coisa do que se passa em cena.
É bom o espetáculo
e merece ser visto, na sua última semana em cartaz, na atual temporada, porque
aborda um tema inusitado, é bem
escrito, conta com uma boa direção,
criativa, com alguns detalhes e cenas que se destacam, como a Cena 2, que se passa dentro de um vagão
de carga; a Cena 3, sobre um “Carnaval em Fortaleza”; a Cena 4; “Interrogatório do Estado do Ceará”; e
a Cena 6, intitulada “Campo dos Urubus”, sobre as quais falarei,
mais um pouco, adiante, além de duas que ganham o formato de radionovela.
O melhor de
tudo, no espetáculo nos é oferecido pelo jovem elenco. Todos desempenham bem seus vários papéis, mas gostaria de
jogar um foco mais forte sobre BRISA
RODRIGUES, na Cena 6, na qual a
atriz esbanja talento, ao interpretar um menino doente, retardado mental, ou
coisa que o valha. Excelente trabalho!
Os demais também têm alguns momentos de protagonismo e dão conta do recado. Na Cena 6, ficam evidentes os traços da
crendice popular do povo interiorano e de sua crença no sobrenatural.
Em
alguns instantes, o espetáculo parece um pouco lento, arrastado, contudo isso é
proposital, reflexo da seca em que estão envolvidos os pobres flagelados. É
preciso que isso fique bem claro. É proposital.
Um
espetáculo montado com muito sacrifício e parcos recursos tem de se valer da
criatividade e de elementos simples, que ganhem relevo em cena. Isso se reflete
nos figurinos, do próprio COLETIVO PONTO ZERO, composto por peças básicas,
de cor cinza, que se adaptam a qualquer personagem, com o acréscimo de poucos
adereços.
O
mesmo pode ser estender ao cenário, de
ERIC FULY e EDUARDO MACHADO, modesto, porém totalmente a serviço da montagem. Basicamente,
estão em cena uma cadeira de ferro, uma espécie de “rack”, também de ferro,
sobre o qual fica um velho aparelho de rádio, e uma armação, em forma de um
cubo, de ferro, com as suas paredes laterais e a frontal vazadas , com a do
fundo fechada por tiras, creio que de persianas largas e verticais. Esse cubo é
virado de faces, para o público, por vezes, dependendo da cena.
É
bastante simples a iluminação, de ÉLTON PINHEIRO, obedecendo à ambientação,
com um destaque interessante: cada vez em que surge uma dúvida ou uma situação
limite ou de grande tensão, a cena é iluminada, por alguns segundos, com uma
luz mais forte, vermelho-alaranjada, dialogando com o momento, como se fosse um grito de alerta.
Na Cena 2, é bastante interessante a solução
utilizada pelo diretor, fazendo com
que os quatro atores se desdobrem em vários personagens, utilizando
caracterizações diferentes, apenas nas cabeças, as quais são projetadas para
fora da parede de “persianas”, passadas por entre as frestas. Nessa cena, os
retirantes embarcam num trem de carga, depois de terem matado o fiscal e
obrigado o maquinista a seguir viagem. A violência surge como reação a uma violência
maior.
A Cena 4 chama a atenção por ser
utilizada a linguagem do cinema mudo. Enquanto um casal de atores contracena,
fazendo mímicas, os outros dois estão sentados no chão, projetando as legendas,
ao fundo, com a utilização, bem precária, de um retroprojetor, que concede, porém,
à cena, um charme ímpar, com. Como não poderia deixar de ser, um “charleston”,
como fundo musical.
Nas
duas cenas em forma de radionovela, os atores assumem a voz e a postura dos
radioatores da primeira metade do século passado, sem esquecer de ilustrar tudo
com sonoplastias e “jingles”, tudo produzido ao vivo. Essas duas cenas, pelo
humor que trazem, servem de uma válvula de escape para as tensões que o resto
do texto propõe.
FICHA TÉCNICA:
Texto: Marcos Barbosa
Direção: Eduardo Machado
Direção Musical: Pedro Maia e Ricardo Borges
Elenco: BRISA RODRIGUES, BRUNNA SCAVUZZI,
CARLOS DARZÉ e LUCAS LACERDA
Cenário: Eric Fuly e Eduardo Machado
Figurino: Coletivo Ponto Zero
Modelista: Suely Gerhardt
Iluminação: Élton Pinheiro
Operação de Luz: Marcus Lobo
Fotografia: Ricardo Borges e Marília Cabral
Programação Visual: Uriel Bezerra
Coordenação de Produção: Lucas Lacerda
Produção Executiva: Geovana Araújo Marques
Realização: Coletivo Ponto Zero
SERVIÇO:
Temporada: De 06 a 28 de outubro de 2017.
Local: Teatro Municipal
Serrador.
Endereço: Rua Senador
Dantas, 13, Centro (Cinelândia) – Rio de Janeiro.
Telefone: (21) 2220-5033.
Dias e Horários: De 5ª feira a sábado, às 19h30min.
Valor dos Ingressos: R$40,00 (inteira) e R$20,00 (meia entrada).
Funcionamento da
Bilheteria: De 3ª feira a
sábado, das 16h às 20h.
Lotação: 276 pessoas.
Duração: 70 minutos.
Classificação Etária: 12 anos.
Gênero: Drama.
“CURRAL GRANDE” fez parte do meu cardápio
teatral de uma semana em que todos os sete espetáculos a que assisti merecem
recomendação. Este, especialmente, pela garra do grupo e pela temática abordada.
Cheguei
à conclusão de eu mudei, porque o espetáculo amadureceu.
E vamos ao TEATRO!
(FOTOS: RICARDO BORGES
E
MARÍLIA CABRAL.)
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