terça-feira, 18 de outubro de 2016


CÉUS
 

(OH! CÉUS!!!

ou

ENTRE O INFERNO E...

...O INFERNO).




 

 

            Para começar, acho recomendável lembrar que “o Ministério da Saúde alerta para o fato de que este espetáculo pode causar dependência”. DE TODOS OS TIPOS. Já assisti à peça duas vezes, no intervalo de uma semana, e ainda vou voltar, outras mais, ao Teatro Poeira, no Rio de Janeiro, onde o espetáculo está em cartaz (VER SERVIÇO.)

            Continuando, outro aviso: Se você é daquelas pessoas que têm o hábito de ir ao TEATRO, por lazer, principalmente, ou por qualquer outro motivo, sempre planejando uma pizza e uns chopes com seu(sua) companheiro(a) e/ou amigos, após a sessão, não vá assistir a este espetáculo, pensando nisso. Faça uma coisa em cada dia, porque os dois não combinam. Dificilmente, a pizza e o chope vão descer e cair bem no seu estômago. Este há de rejeitá-los. Não é um texto, uma peça, de fácil e rápida “digestão”.

            Dando sequência às “recomendações”, já que o espetáculo é escrito pelo genial dramaturgo WAJDI MOUAWAD, que, também, nos encantou com o magnífico e inesquecível “Incêndios”, esqueça a infeliz e desnecessária ideia de estabelecer comparações, no nível do “Gostei mais deste que daquele”, não importam as “justificativas”. É perda de tempo. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa; mas ambas as coisas são “de arrepiar”, cada uma por seus elementos próprios e genuínos.

 
 


            Não vou fazer, obviamente, comparações entre os dois espetáculos mencionados, porém, de certa forma, vez por outra, poderei traçar um ligeiro paralelo entre aspectos contidos, e observados, nas duas peças, já que ambas fazem parte de um conjunto de obras, uma tetralogia. Quem desejar conhecer o que escrevi sobre “Incêndios” (21 de setembro de 2013), farte-se com este “link”, lendo-o, com o máximo de sua atenção:


            Digo-lhes, porém, que aquele “soco na boca do estômago”, que todos os espectadores recebiam, nos cinco últimos minutos de “Incêndios”, por conta de uma bombástica revelação, senti-o, agora, potencializado, também ao final do espetáculo, nas duas vezes em que já tive o imenso prazer e o privilégio de assistir a “CÉUS”. E acrescento que muitas pessoas, muitas mesmo, com as quais conversei comungam da mesma opinião.


 


            Mais uma vez, independentemente dos incontestes laços afetivos que nos unem, rendo-me à coragem e ao bom gosto de FELIPE DE CAROLIS, idealizador e um dos produtores do projeto, pela coragem de montar outro espetacular texto do dramaturgo líbano-franco-canadense WAJDI MOUAWAD, reconhecidamente um dos maiores da atualidade, no mundo.

            “CÉUS”, escrita em 2009, é o último texto de uma tetralogia do autor, à qual ele chamou de “Sangue das Promessas”, de que fazem parte, ainda, além de “Incêndios” e “CÉUS”, “Litoral”, datada de 1999, e “Florestas”, de 2006, ainda desconhecidas do público brasileiro, porém temos grandes esperanças de que também venham a ser encenadas, no Brasil, sob a intercessão de FELIPE ou de outro qualquer produtor, corajoso como ele.
 

            “CÉUS” não é para os fracos.
 
 
Apesar de ser um texto muito denso, hermético, pontilhado por palavras e expressões de difícil compreensão, para um leigo em assuntos tecnológicos, ligados à informática e à espionagem, é bastante curioso perceber que é um daqueles textos em que é possível, a qualquer espectador de cultura média, entender o “plot”. Qualquer pessoa, atenta e de inteligência normal, consegue compreender a história, o enredo, quem são os personagens e o seu objetivo, a sua missão, o que estão fazendo naquele lugar, meio indefinido, geograficamente falando, mas parecendo ser uma espécie de “fortaleza” inatingível, como um “bunker”, situado num ponto do território francês (Ou não?), já que se trata de uma “célula francófona”. E por que as coisas não saem como esperavam (Não considerem isto um “spoiler”.).

Mas fica o espectador comum (acredito que quase 100% da plateia) “no ar”, quando os personagens desfilam uma série de enigmas e raciocínios físico-matemático-filosófico-existenciais, incapazes de serem decodificados pelo público, o qual, na verdade, de uma maneira geral, deseja é “entender tudo”, da primeira à última fala, tudo “bem explicadinho”. Isso não acontecendo, poderia, até, tornar o texto um pouco incômodo, desinteressante (ouvi um “meio chato”, da boca de três ou quatro pessoas). Poderia provocar, no espectador, uma posição um pouco desconfortável, porém nada disso é capaz de fazê-lo perder o interesse pela história, de fácil compreensão, repito.



 
 

                                                                  
SINOPSE:
Isolados em uma espécie de bunker”, cinco personagens precisam desvendar um iminente atentado terrorista.
Especialistas no assunto, cada um experto numa área, também são confrontados com o misterioso desaparecimento de um membro da equipe, VALÉRY MASSON.
Que maior desconforto poderia existir, para cinco pessoas que não se conheciam, antes de designadas para uma missão, e que, durante todo o tempo em que estão juntas, compulsoriamente, demonstram descontentamento com o projeto a que foram integradas e divergências na sua execução, além de viverem uma imensa ansiedade pelo retorno às suas casas, às vésperas das festas de fim de ano, todos com seus planos de férias, que acabam indo por água abaixo?
Atravessado por temas de extrema atualidade, o texto caminha para uma profunda discussão sobre o Terror e o mundo contemporâneo.
 

 
            O autor propõe um gigantesco “puzzle” de milhares de micro peças, um quebra-cabeças, a ser montado, com o objetivo de se chegar a uma elucidação; ou duas; saber quem está por trás de um (ou mais) iminente atentado terrorista de grande porte, para evitá-lo(s), e tentar entender as causas da morte inesperada, por suicídio (Ou não?) de um membro da “célula”, VALÉRY MASSON (ADERBAL FREIRE-FILHO), que só aparece, de forma brilhante, como ator, em vídeos.
 

Ainda que escrita há sete anos, a peça é de uma contemporaneidade total, pois trata de um tema que, infelizmente, faz parte, diariamente, dos noticiários, no mundo inteiro, o terrorismo, e mostra o quanto todos nós, em qualquer rincão dos mais distantes, no planeta Terra, somos frágeis, impotentes e estamos à mercê de pessoas que, por qualquer que seja o motivo ou convicção, resolvem destruir, destruir, destruir... Não conseguem conjugar outro verbo.
O texto nos mostra que o perigo de um atentado terrorista, com suas trágicas consequências e com os quais, infelizmente, temos nos acostumado a conviver intensamente, nos últimos anos, está ali, na próxima esquina; ou dentro de uma sala de aula, enquanto alguém tenta passar ensinamentos a futuros cidadãos; ou no interior de uma loja de “fast-food”, enquanto saboreamos as gorduras saturadas de um hambúrguer; ou aqui, ou ali, ou acolá... Sim, somos vulneráveis e não nos damos conta disso (Ou é mais confortável ignorar?). “CÉUS” incomoda, sim – e muito –, porque nos revela a fragilidade do ser humano, o quanto nos enganamos, com relação ao nosso poder de seres “racionais”.
Durante a realização da recentíssima Olimpíada Rio-2016, no Rio de Janeiro, todos ficamos preocupados com a nossa segurança e sabemos quanto foi gasto e quantos profissionais trabalharam, para evitar, ou melhor, prevenir “o pior”. Isso num país reconhecidamente pacífico. Mas o perigo não éramos nós; eram eles. O perigo era para nós. E quem são eles? Quem?
Bem nos lembra o diretor da peça, ADERBAL FREIRE-FILHO, que “A questão atual do terrorismo não é mais vista como um conflito entre Oriente e Ocidente. Na verdade, a peça caminha para uma discussão mais profunda, que vai muito além das divisões territoriais, muito além de questões religiosas. ‘CÉUS’ traz uma discussão sobre as revoltas e a insatisfação da juventude, em um mundo que a castigou sempre. Após receberem uma civilização construída por interesses que não são seus, os representantes dessa juventude ainda veem guerras – motivadas por estes interesses – os destruírem, tanto no exército, que os recruta, como, indiretamente, nas rupturas de gerações. É uma peça nova, no sentido de ter uma dramaturgia contemporânea, aberta, que dialoga com a poética ilimitada da cena. Estamos diante de um texto que reconhece o poder da cena ilimitada.

Um dos aspectos mais interessantes do texto é a intenção do autor, ao mostrar que, embora reunidos, por um só ideal, os cinco “mosqueteiros”, vivem, também, como humanos que são, seus dramas pessoais, ampliados pela pressão e pelo confinamento, que podem interferir no cumprimento da missão.
Todos, evidentemente, se sentem muitos desconfortáveis, pela “clausura” e também pela consciência do quanto a humanidade, sem exageros, espera deles, depende deles, entretanto cada um se deixa envolver – e não poderia ser diferente – pelos problemas, conflitos e situações embaraçosas em que estão, particularmente, envolvidos; seus problemas familiares, domiciliares...
Cada um deles representa o que há de mais competente numa determinada habilidade. “Todos, juntos, somos fortes”. Deveria ser o lema dos membros daquela “célula” e o que deveriam pôr em prática. Mas, em se tratando de seres humanos...
 
 

CHARLIE ELIOT JOHNS (CHARLES FRICKS), em atuação antológica, vive uma relação, praticamente, virtual com o filho, VICTOR, com o qual mantém algumas conversas, pelo computador, durante a peça. Como a mãe do menino não é citada, supõe-se que os pais sejam separados, o que gera uma perceptível sensação de frustração e de culpa, por parte do pai, pela pouca atenção e presença física na vida do pré-adolescente.
Dos atores de sua geração, ele, oriundo da excelente companhia “Atores de Laura”, um de seus fundadores, é um dos mais aplaudidos, por sua dedicação e técnica aplicadas aos trabalhos que realiza. Tantas vezes premiado, por sua irretocável interpretação no monólogo “O Filho Eterno”, há cinco anos em cartaz (estreou em junho de 2011, no Oi Futuro Flamengo), tendo passado por vários palcos e lonas culturais cariocas e rodado o Brasil, de um extremo ao outro, assistido por milhares de espectadores, nos momentos finais da peça, a atuação de CHARLES FRICKS é comovente, causada por seu desespero, em relação ao destino de VICTOR, papel representado, em vídeo, com muita graça e naturalidade, pelo jovem ANTÔNIO RABELO (Sem “spoiler”.)
 

ISAAC BERNAT (BLAISE CENTER), mais uma vez, prova que é um grande ator, dando vida ao chefe da missão. Ele tenta impor um equilíbrio emocional, entre os demais companheiros de missão, entretanto não consegue o seu intento, uma vez que não aplaca nem a instabilidade do seu interior, revelada pelo conflito gerado em função de uma separação, a caminho, do rompimento do casamento, que lhe parece ser perturbador, em função da filha do casal, com quem conversa, ao telefone, porém livra-se daquele “peso”, quando esta lhe demonstra um alívio pela decisão dos pais.
A princípio, demonstra certa hostilidade para com o personagem de FELIPE DE CAROLIS, que é integrado ao grupo, para substituir o falecido VALÉRY, por indicação do próprio, antes de morrer, por ter sido o seu aluno mais brilhante na “arte” da descriptografia, entretanto, aos poucos, vai reconhecendo o talento do rapaz, aliando-se a ele, depois de um pouco fragilizado, por perder o posto de chefe, e se aproxima de suas teorias.
FELIPE DE CAROLIS (CLÉMENT SZYMANOWISKI), idealizador do projeto (da peça), é um dos melhores atores de sua jovem geração, além de grande empreendedor. Tendo sido revelado num musical, “O Despertar da Primavera”, obra-prima de Charles Möeller e Cláudio Botelho, como o perturbado e enrustido Ernest, participou de vários outros, sempre com ótimo rendimento, mas surpreendeu muita gente (não a mim), quando viveu o personagem Sam, na novela “Verdades Secretas”, que o catapultou ao estrelato, a partir de quando se tornou conhecido do grande público, isso depois de ter vivido um dos gêmeos de “INCÊNDIOS, o jovem Simon. Em ambos os trabalhos, FELIPE deu mostras de seu imenso talento para o drama, o que ratifica, agora, em “CÉUS”. Seu personagem seria a única pessoa capaz de decifrar as mensagens codificadas, criptografadas, deixadas pelo suicida VALÉRY, com o objetivo de descobrir o que o morto sabia e, propositalmente (Ou não?), ocultou de todos. CLÉMENT é muito seguro de suas convicções e competência, para a missão a que fora enviado, muito ao contrário do personagem vivido por RODRIGO PANDOFO, a ser analisado. Transmite uma grave introversão, necessária ao seu trabalho, quase ininterrupto, de “decifrar chaves”, aliada a uma dose de doçura. Durante certo tempo da trama, pesam, sobre ele, suspeitas de ser um inimigo, infiltrado na “célula” e, em função disso, enfrenta uma situação hostil, principalmente porque sua teoria, que está mais para o “fantasioso”, choca-se com a do personagem de PANDOLFO, mais “concreta, de maior probabilidade”; é a guerra do saber; mais, ainda, do poder. Em função de seu talento e da importância que o personagem vai adquirindo, no decorrer da trama, assistimos a um desempenho perfeito e gradativo, qualitativamente, no seu trabalho, discreto, porém profundo, já que é capaz de persuadir a todos de sua “teoria do Tintoretto”, até mesmo ao arredio CHEF-CHEF, embora tarde demais, revelada por VALÉRY, com base na obra “Anunciação”, de um dos maiores pintores renascentistas, Jacopo Robusti Tintoretto.   
            RODRIGO PANDOLFO (VINCENT CHEF-CHEF) é uma das maiores preciosidades e unanimidades do TEATRO BRASILEIRO dos últimos tempos, a ponto de, logo no início da carreira, ter sido indicado a um prêmio de TEATRO, ao lado de Sérgio Brito e de mais três grandes atores. Sérgio foi o vencedor. Um ano depois, sentado ao meu lado, no intervalo do já referido “O Despertar da Primavera”, em que PANDA brilhava, como o destemido, “anarquista” e desafiador Moritz, Sérgio, visivelmente emocionado, me confidenciou, ao pé do ouvido: “E pensar que eu ganhei deste menino!”. Jamais deixei de assistir a um de seus trabalhos no palco e, em cada um deles, percebo um crescimento, a olhos vistos, e uma potencialidade para prêmios, aos quais ele já foi indicado várias vezes. É um dos atores mais intensos que já conheci, em minha longa trajetória pelos palcos da vida. Qualquer um de seus trabalhos é, no mínimo, excelente. Parece ter sido escolhido, a dedo, para compor o seu personagem, em “CÉUS”, aquele que é ambicioso ao extremo, histriônico, ao expor suas opiniões e divergências, que luta pelo poder – faz de tudo para ser o chefe da missão – e defende, com garras e dentes, sua “teoria islâmica”, parece-nos que muito mais por teimosia, por vaidade, do que por pura crença em sua “verdade”. Extremamente extrovertido, agressivo, sarcástico, irônico, debochado, astuto, cruel, o personagem domina determinadas cenas, mesmo quando em silêncio. RODRIGO contracena até com ele mesmo. Parece neurótico. E o é!!!”
            SÍLVIA BUARQUE (DOLOROSA HACHÉ) honra a única presença feminina no palco, com seu talento e técnica de interpretação, capaz de alternar momentos de doçura e calma com outros, de desespero e grande dor. Sua função, na “célula” é a de traduzir as mensagens captadas, em diversos idiomas (ela fala muito mais de uma dezena deles, incluindo alguns dos menos falados no mundo). Demonstra ser uma superdotada para a missão. DOLOROSA também não poderia passar incólume, sem travar uma batalha consigo mesma. Funciona como uma espécie de mediadora dos conflitos alheios, mas vive dois, internamente, que a consomem, no dia a dia. O primeiro seria um “certo” remorso, por ter assassinado, a tiros, as três filhas e o próprio marido, por uma “causa justa”. O segundo é o fato de carregar, no ventre, um filho, inesperado e não planejado, do falecido VALÉRY. SÍLVIA é uma atriz de grandes recursos técnicos, de uma luz própria, e defende sua personagem com muita dignidade e competência, angariando a simpatia do público, ainda que seja uma assassina confessa.
 



            Não tenho o menor receio de dizer que, poucas vezes, num palco, tive a oportunidade de ver, reunido, um naipe de atores de primeiríssimo nível e, mais do que isso, no apogeu de suas carreiras, em trabalhos magníficos, que, certamente, serão lembrados, para sempre, na memória do amante do bom TEATRO. No futuro, as pessoas, como fazem hoje (o Ricardo III, do Fulano; a Medeia, da Sicrana; o Édipo, do Beltrano...), farão referências tais como o personagem “X”, do/a ator/atriz “Y”, com relação aos personagens e ao elenco de “CÉUS”. Num Prêmio de TEATRO em que haja a categoria Melhor Elenco, será difícil encontrar outro que possa competir, em 2016, até o presente momento, com o de “CÉUS”, embora eu tenha testemunhado excelentes trabalhos coletivos, desde o início do ano, e ainda espero ver outros, até o final da temporada 2016.  
 
O elenco: Rodrigo Pandolfo, Isaac Bernat,
Sílvia Buarque, Felipe de Carolis e Charles Fricks.



            É muito interessante quando travamos contato com uma obra de valor tão inestimável, que chegamos a nos dizer que o seu autor jamais será capaz de se superar. Foi o que me ocorreu, com “Incêndios”. Embora soubesse que o dramaturgo escrevera outros, aquele texto me impressionou tanto, apaixonei-me pela ideia e, mais ainda, pela carpintaria, pela estrutura do texto, que julguei ser a obra-prima de MOUAWAD. “CÉUS” é, igualmente, magnífico. E não vejo a hora de conhecer os outros, principalmente os da tetralogia.
            Pensando já ter esgotado a minha cota de elogios com relação ao dramaturgo WAJDI MOUAWAD, parto para comentar o estupendo trabalho de direção, de ADERBAL FREIRE-FILHO. Acompanho, de longa data, a sua brilhante carreira e já assisti a espetáculos de todos os tipos dirigidos por ele. Todo diretor parece dialogar melhor com determinados autores, e um mesmo texto, dirigido por diretores diferentes pode se apresentar com roupagens completamente distintas, fruto das diferentes leituras de cada encenador. Embora eu esteja falando por apenas dois espetáculos, o que me parece é que há uma simbiose total entre MOUAWAD e ADERBAL. Posso ser criticado pelo que vou dizer, mas não consigo ver “Incêndios” e “CÉUS” conduzidos por outra batuta, que não a do maestro ADERBAL, que sabe compreender os meandros do texto de MOUAWAD, conhece cada intenção contida nas entrelinhas e transporta isso para a cena, num trabalho de fino acabamento, sabendo explorar todo o potencial criativo e interpretativo de seus atores.
            O foco principal do texto é a questão do terrorismo, mas, como já disse, cada personagem parece ser um terrorista de si mesmo, e isso poderia ser passado com menor importância, durante a narrativa, mas a direção soube como pôr em evidência os dramas pessoais, permitindo, a cada um dos cinco atores, seus momentos de solo, aquela hora em que surgem os aplausos em cena aberta.
 
 
 

            ADERBAL atua com um técnico de box, ou outra barbárie do gênero, que sabe orientar seus pupilos, com socos leves, durante a “luta”, que nada mais são que “aperitivos”, para o soco final, o golpe de misericórdia.
            É fantástica a ideia de os atores convidarem cinco espectadores para que se sentem, por cinco minutos, no máximo, nas cadeiras em cena, não para interagirem, mas para representarem uma metáfora, estendida às demais pessoas da plateia. O personagem de ISAAC BERNAT se dirige a elas, e a todos os presentes, como sendo estátuas, num jardim, que não observam nada, que estão alheias a tudo, que não têm vida, não têm alma, não sabem o que são sentimentos, não agem nem reagem. Num outro momento, é a personagem de SÍLVIA quem convida três mulheres para a cena, e fala a elas, como se fossem as três filhas que DOLOROSA, barbaramente, assassinara.
            O tempo para as marcações de mudanças de cenas, é muito rápido e instigante.
            O cenário de peça foi concebido por um dos melhores profissionais do ramo, presença constante na equipe de ADERBAL. Falo de FERNANDO MELLO DA COSTA, sempre nos surpreendendo com “novidades que não são novas”. É para explicar? Então, vamos à explicação: que novidade há em mesas, cadeiras, um pequeno frigobar e uma cama em cena? Parece que nenhuma, porém a “novidade” existe. Na sala de trabalho dos cinco personagens, cada um com seu “laptop”, seria de se esperar que houvesse cinco mesas, individuais, de trabalho. Mas as tarefas não são individuais; ou melhor, são e não são. Ninguém, ali, é mais ou menos importante que o outro. Ninguém conseguirá, sozinho, resolver o problema. Então, surge FERNANDO, com uma enorme mesa, compartilhada pelos cinco personagens, e cinco cadeiras de escritório, nem todas iguais, com rodinhas, o que permite o deslocamento dos atores, pelo palco, nelas sentados, provocando um interessante efeito cênico.
O frigobar entra em cena, e sai, sempre pelas mãos de VINCENT CHEF-CHEF (PANDOLFO), que se serve, várias vezes de uma latinha de Coca-Cola. Haveria, aí, alguma metáfora? O pequeno refrigerador também guarda o champanha para o brinde de Ano-Novo. Brindar o quê?
A cama também entra e sai, várias vezes, em/de cena, conduzida pelos atores, a mesma peça, indicando o quarto de cada um, naquele inóspito lugar. É ali, na sua privacidade, que cada um luta contra os seus fantasmas e tenta encontrar um meio de diminuir o martírio que aquela empreitada representa para eles. Todos esperavam sair dali em quatro dias, mas, com a morte de VALÉRY, teriam de ficar por um tempo indeterminado.

Compõe, ainda, o interessantíssimo cenário, um telão, que ocupa todo o fundo do palco, com uma tela menor sobreposta, centralizada, onde se vislumbra um desfile de cores e imagens, de vídeos e projeções diversas, com a assinatura de uma empresa, a RADIOGRÁFICO, que não poderia ser, aqui, apresentada de forma impessoal. Trata-se de um fantástico trabalho, produzido, em equipe, por OLÍVIA FERREIRA, PEDRO GARAVAGLIA, CELINA KUSHNIR, LEANDRO DAS NEVES, JOÃO PARENTE, RODRIGO BARJA e NINA AMARANT
O trabalho de videografismo, executado por essa equipe, é de suma importância, no espetáculo, uma vez que um erro poderia acabar com a peça. Tudo é acionado com uma precisão cirúrgica. Não seria exagero dizer que todo o trabalho de projeção pode ser considerado um personagem atípico no espetáculo.

É impressionante a sincronia que há entre os diálogos dos personagens em vídeo com os presenciais, dando a nítida impressão de que tudo está sendo feito em tempo real.  
 
 
 

            Tão importante, ou quase, quanto as projeções, é a profusão de sons, já no início, antes, propriamente, do começo da peça, identificados ou não, geralmente em altíssimo volume, misturando vozes humanas a outros ruídos, fruto da direção musical, ou desenho sonoro, a cargo de outro grande profissional: TATO TABORDA.
            Os figurinos, de ANTÔNIO MEDEIROS, são adequados aos personagens, revelando-lhes, de certa forma, um pouco de suas personalidades, e à época em que se passam os fatos, e não apresentam nada de especial a ser comentado, a não ser o fato da já referida adequação à montagem.
            Que excelente trabalho de iluminação fez MANECO QUINDERÉ! Acentua um ar claustrofóbico e sombrio, em alguns momentos, e é intensa e frenética, quando se faz necessário, para realçar os conflitos, as dores, os medos, as confusões mentais...


 
FICHA TÉCNICA:

Texto: Wajdi Mouawad
Tradução: Ângela Leite Lopes
Direção: Aderbal Freire-Filho
Assistente de Direção: Fernando Philbert
Idealização do Projeto: Felipe de Carolis

Elenco (por ordem alfabética): CHARLES FRICKS, ISAAC BERNAT, FELIPE DE CAROLIS, RODRIGO PANDOLFO e SÍLVIA BUARQUE

Cenografia: Fernando Mello da Costa
Iluminação: Maneco Quinderé
Figurinos: Antônio Medeiros
Direção Musical (Desenho Sonoro): Tato Taborda
Visagismo: Érica Monteiro
Vídeos e Projeto Gráfico: Radiográfico
Fotos: Leo Aversa
Mídias Sociais: Leo ladeira
Produtores Associados: Felipe de Carolis, Maria Ângela Menezes, Amanda Menezes e Maria Fernanda Mello
Direção de Produção: Amanda Menezes
Produção Executiva: Juliana Cabral
Coordenação Geral: Maria Ângela Menezes
Realização: Tema Eventos Culturais e E-MERGE
 



 
"Anunciação" - tela de Tintoretto.
 



SERVIÇO:
 
Temporada: De 15 de setembro até 30 de outubro
Local: Teatro Poeira
Endereço: Rua São João Batista, 104 – Botafogo – Rio de Janeiro
Dias e Horários; De 5ª feira a sábado, às 21h; domingo, às 19h
Telefone (21) 2537-8053
Funcionamento da Bilheteria: De 3ª feira a sábado, das 15h às 21h; aos domingos, das 15h às 19h
Valor do Ingresso: R$80,00.
Duração: 100 minutos
Classificação Etária: 14 anos.
 

 
 
Ninguém haverá de sair do aprazível Teatro Poeira desesperado, querendo construir o seu próprio “bunker” e passar a vegetar num mundo já fracassado e condenado a um iminente desaparecimento, mas o fato é que todos saímos muito assustados, mexidos, distantes de nossas zonas de conforto, dos mais abastados aos mais humildes espectadores, dos mais esclarecidos aos mais leigos, até os alienados. E não poderia ser de outra forma. Isso, porque a peça abre um leque de questionamentos, dos quais, queiramos ou não, não nos é dado o direito de fugir.
Eu poderia, agora sim, me utilizar de um “spoiler” (um não; dois) e dizer o que levou VALÉRY ao suicídio e a razão do desespero do personagem de CHARLES FRICKS, no final da peça, que é parte do já citado “socão na boca do estômago”, mas não quero perder nenhum leitor. Assistam à peça e saberão de tudo. E muito mais.
            A morte de VALÉRY poderia não ter sido um suicídio?
Por que a comunicação entre a “célula” e o mundo exterior é cortada, exatamente no momento em que não poderia ter acontecido, o que não permitiu, após a decifração de todo o esquema, que fossem dados os avisos sobre oito atentados? (Caramba! Não consegui me conter: “spoiler”!!!)
Haveria, de fato, um agente espião infiltrado no grupo?
E o filho de DOLOROSA nasce. Ela, durante o difícil parto, com um rosto que parece ter sido modelo, para o pintor Edvard Munch, em sua famosa tela “O Grito”.
 
Uma vida nasce no caos...
       

"O Grito" - tela de Edvard Munch.
 

 

(FOTOS DE CENA: LEO AVERSA)

 

 GALERIA PARTICULAR:

Com Sílvia Buarque.


Com Charles Fricks.


Com Isaac Bernat.


Com Rodrigo Pandolfo e Felipe de Carolis.




 
















 

 

 

 

 

 

 
 




 

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