A PORTA DA FRENTE - DE
PROPÓSITO, ESCANCARADA.
Rogério Freitas e Jorge Caetano
As
mulheres estão tomando o poder, assumindo seu merecido papel, em todos os
setores da vida, e não poderia ser diferente no TEATRO.
Embora, até hoje, saibamos que os
melhores personagens dramáticos são escritos para homens, por outro lado, a
cada dia, novas mulheres estão dominando a arte de escrever para o teatro.
Vários nomes poderiam ser citados,
porém o que é motivo deste texto chama-se Júlia
Spadaccini, uma jovem dramaturga, de 35 anos, em grande ascendente
carreira, autora de dezoito textos, alguns dos quais indicados a prêmios, como
foi o caso de QUEBRA-OSSOS e AOS DOMINGOS, duplamente indicado, este
ano, até o presente momento, para dois distintos prêmios.
Não “satisfeita” com esse reconhecimento,
Júlia acaba de estrear mais um de seus trabalhos, o qual, há duas semanas em
cartaz, já mereceu os maiores elogios de todos os que já assistiram à
encenação, assim como algumas boas críticas na imprensa especializada.
A peça em questão é A PORTA DA FRENTE, uma ideia genial da
autora, que surpreende a cada novo texto produzido.
A ação se dá em dois apartamentos,
num dos quais mora uma família muito tradicional, que vê sua estrutura familiar,
mergulhada num clima de mesmice e frustrações, ameaçada e abalada pelo novo
morador do apartamento em frente, nada mais, nada menos que um
“crossdresser”. Creio que só a ideia-eixo
sobre a qual vai ser criada a trama já é, por si, merecedora de uma maior
atenção. Mas o que deseja a autora dizer
com isso? Quais são as mensagens claras
ou sugeridas que podem ser depreendidas desse texto?
Júlia nos apresenta a PORTA como um personagem da trama. Invariavelmente aberta (prefiro dizer
“escancarada”), ela se apresenta como algo buscado por cada um dos membros
daquela “família”, que os faça libertos de seus preconceitos, de suas dúvidas,
de seus medos, de suas mentiras, de suas repressões, de seus desejos
reprimidos; enfim, que lhes tire, do rosto, o véu que, cuidadosa e
intencionalmente, cada um criou para si, o que serve, perfeitamente de espelho
aos espectadores e os leva a criar uma simpatia muito especial por Sasha, o
“crossdresser”, magistralmente interpretado por Jorge Caetano, recém-saído do
elenco de AOS DOMINGOS, outra
excelente peça de Júlia Spadaccini, que voltou ao cartaz, nesta semana, no
Teatro Laura Alvim.
Que revolução pode ocorrer na cabeça
de uma família “careta”, quando um homem que se veste de mulher, mas que gosta
de mulher, dá aulas de canto e bebe chá, de forma clássica, e que vive com a
porta de entrada de seu apartamento permanentemente a se ofererecer como um
túnel, que leva a um mundo “desconhecido” e, por isso mesmo, “temido”? E, pior ainda, quando o filho, que é gêmeo de
uma irmã, de 16 anos, descobre que seu pai, o patriarca, o provedor da
“família”, um discreto e mal-sucedido corretor de imóveis, frequenta aquele
“antro de perdição”?
O espectador não conseguirá sair do
teatro, sem que tenha sido mexido, sacudido, de alguma forma, pelo texto, a
mola-mestra deste espetáculo, a despeito da grande atuação de todos do elenco,
da direção e dos demais setores de uma produção teatral, os quais serão analisados,
a seu tempo. Mas, como sempre pensei, e
acho que pensarei para sempre, que nenhuma peça se sutenta sem um texto de
qualidade, o que escreveu Júlia Spadaccini está sendo o motivo principal destes
comentários.
As relações familiares e suas
implicações são discutidas, na peça, de uma forma muito simples, natural. Não se trata de um “texto cabeça”, daqueles
que, do princípio ao fim”, o espectador fica se questionando “o que é que o
autor deve estar querendo dizer com isso?” ou “qual a relação disto com
aquilo?”. Não que uma pequena dose de
uma “viagem” não seja interessante nesse contexto (a própria Júlia já o fez),
mas, em A
PORTA DA FRENTE, a autora diz tudo da forma
mais simples e clara possível. Não
complica, não gera dúvidas. Seus
diálogos fluem com uma transparência tal, que hipnotizam o espectador e fazem
com que noventa minutos pareçam nove. A
peça não é curta nem longa; tem um tamanho justo. Nada, nela, é injustificável. É ótimo sair do teatro com a sensação de
“quero mais” (não porque faltou algo, mas porque foi muito bom; e o que é bom
nunca é demais).
O elenco:
JORGE CAETANO – Sasha, o
“crossdresser”, personagem misterioso, que foi amigo de Lou Reed e que será o
vetor de tantas transformações. O ator
esbanja talento em
cena. Sua composição
para o personagem é perfeita, sem exageros nem economias. Merece a ovação da plateia. Confesso que não o aplaudi em cena, para não
interromper o fluxo dramático de alguns momentos. Agora, porém, digo: Jorge, considere-se
aplaudido em cena, por mim e, certamente, por toda aquela plateia que lotou o
teatro no último domingo.
ROGÉRIO FREITAS – Rui,
o chefe da família. Excelente a
escalação de Rogério, veterano ator, para o papel. Decodificou facilmente as características de
seu personagem e sabe explorá-las em cena. A
surpresa, para o público, da transformação de seu personagem vai sendo muito
bem construída, graças ao talento desse ator.
MALU VALLE – Lenita, a
esposa e mãe, o retrato mais fiel da homofobia.
A que se sente mais ameaçada pela presença daquele ser “estranho”, por
todas as “más influências” que poderá exercer sobre a sua família,
principalmente sobre o seu filho, adolescente de 16 anos. Seu conservadorismo cerra-lhe os olhos aos
problemas reais da família. Malu é
responsável por boas gargalhadas, por sua excelente interpretação, na qual
circula pelo universo do humor da mesma forma como domina as cenas que se
revestem de maior densidade dramática.
MARIA ESMERALDA FORTE – Marilu, a mãe de Lenita.
Bela atuação, na pele de uma senhora que, iniciante de um processo de
esclerose, é a portadora da notícia da chegada do novo morador, informação que
não é levada em consideração logo de início, até que cada um dos membros da
família vai tendo a oportunidade de encontrar a “criatura”. É exatamente ela, que vive num caos mental,
quem anuncia o caos que, a partir de tal anunciação, vai ser instaurado nas
cabeças de seus pares.
FELIPE HAUIT – Jonas, um
dos gêmeos, 16 anos. Na primeira cena do
espetáculo, ele aparece, contracenando com Sasha, e a mesma cena encerra a
peça. É uma grande surpresa, que só
valoriza o espetáculo. Ótima atuação
desse jovem ator. Fiquei muito bem impressionado
com o seu trabalho.
NINA REIS – Natália, a
gêmea de Jonas. Dentro de algumas
limitações da personagem, Nina se sai muito bem nas cenas em que é mais exigida
e dá a sua contribuição à homogeneidade das atuações de todo o elenco.
A DIREÇÃO, a quatro mãos, de Jorge
Caetano e Marco André Nunes é
excelente, conseguindo extrair o melhor rendimento do elenco.
A CENOGRAFIA, de Aurora dos
Campos, também merece destaque, principalmente pelos recursos que ela
utiliza para montar três ambientes no contido espaço do palco do Teatro Oi
Futuro Flamengo. Verdadeiro milagre da
engenharia cênica.
Bons os FIGURINOS de Rui Cortez.
Excelente a DIREÇÃO DE MOVIMENTO de Márcia
Rubin.
Ótima a ILUMINAÇÃO de Renato Machado.
O mesmo pode ser dito quanto ao VISAGISMO, de Josef Chasilew e a DIREÇÃO
MUSICAL, de Felipe Storino.
Com relação a Júlia Spadaccini, penso o mesmo que pensava sobre Caetano Veloso. Explicando melhor: a cada novo disco de
Caetano, eu sempre, após adquiri-lo no primeiro dia em que era posto à venda,
dizia: É impossível que ele se supere. E ele
se superava sempre. Vinha dizendo
isso há algumas décadas (parei de dizer após o lançamento dos seus três últimos
álbuns). Digo o mesmo, com relação à Júlia, há alguns poucos anos. E ela
sempre se supera. Espero que possa
continuar dizendo.
A PORTA DA FRENTE está sempre aberta a quem quiser
entrar. Não faça cerimônia!
Espetáculo imperdível. Fala dos sentimentos mais corriqueiros da alma humana com uma dilicadeza "doída", se é que existe esse sentimento. Mas foi assim que senti.
ResponderExcluirUma delícia. Todos temos em nós algum motivo para procurar "uma porta aberta". Vá lá e inspire—se para procurar a sua porta aberta.
Lindo espetáculo, Julia. Belíssimo texto Gilberto.