quarta-feira, 4 de outubro de 2023

 

“PAPA HIGHIRTE”

ou

(ALHAMBRA

EXISTE;

E MUITO PERTO 

DE NÓS.)

 






         Embora tenha encerrado a sua mais recente temporada, no último domingo, dia 1º de outubro, no Teatro Aliança Francesa (São Paulo), o espetáculo “PAPA HIGHIRTE, uma produção do “GRUPO TAPA”, eu, que assisti à peça na sua última semana em cartaz, não poderia deixar de escrever as minhas impressões sobre a montagem, pelo tanto de qualidade que há nela. Se não vai servir para divulgar o espetáculo, que, pelo menos, se preste a um registro que me alegra muito fazer.





         O texto é mais uma das excelentes e necessárias obras de um dos nossos maiores dramaturgos, ODUVALDO VIANNA FILHO (VIANINHA), cujo talento e importância para o TEATRO BASILEIRO, a meu juízo, o Brasil ainda não reconheceu, como ele o merece. Muitos são seus textos de elevada importância, tais como “Se Correr, o Bicho Pega; Se Ficar, o Bicho Come” (a quatro mãos, com Ferreira Gullar), “Rasga Coração”, “A Longa Noite de Cristal”, “Corpo a Corpo”, “Mão na Luva”, “Moço em Estado de Sítio” e “Nossa Vida em Família”, para citar apenas alguns.





         Além de grande dramaturgo, VIANNINHA também foi ator e diretor de TEATRO e televisão. Neste veículo, foi o idealizador e redator de um dos maiores sucessos da TV brasileira, o “sitcom” “A Grande Família”, que ficou no ar durante 14 anos, girando em torno dos membros da fictícia família Silva, de classe média, moradora de um subúrbio na Zona Norte do Rio de Janeiro. VIANNINHA foi um ferrenho militante comunista, participante ativo do Teatro de Arena", fundador do "Centro de Cultura da UNE" (CPC) e do "Grupo Opinião". Sua dramaturgia é marcada pela exposição da realidade brasileira, através do homem simples e trabalhador, em contraposição à hegeminia cultural estrangeira.













         Com o nefasto golpe militar de 1964, “página infeliz da nossa história”, VIANNINHA foi muito perseguido, politicamente, pelos “gorilas” da ditadura e vivia em constante contato com o pesadelo da censura. “PAPA HIGHIRTE” foi uma das vítimas do regime de exceção. O dramaturgo faleceu aos 38 anos, em 16 de julho de 1974, vítima de câncer de pulmão. Sua última peça, "Rasga Coração", foi concluída durante sua hospitalização, quando ele já se encontrava em estado terminal.






 SINOPSE:

Na trama, Papa Highirte (ZÉCARLOS MACHADO) é um ditador populista, deposto da fictícia Alhambra, exilado na, também, fictícia Montalva.

Em sua conspiração para voltar ao poder, mergulha nas reminiscências de um tempo de exceção, quando governava, com mão de ferro, seu país natal, com a imprensa silenciada e torturas nos porões.

E chega à triste conclusão de que nunca passou do fantoche de militares golpistas, a serviço de uma potência estrangeira.

A peça é uma metáfora precisa sobre a América Latina, que ganha significativa relevância nos tempos atuais.

O texto trabalha, em diversas camadas, temas como o declínio do populismo caudilhista, a organização das militâncias de luta armada e a influência da política externa estadunidense no continente americano.

 

 





         O texto foi escrito em 1967/1968, este o ano do AI-5, e foi proibido pela censura. A única montagem profissional da peça se deu em 1980, graças à anistia, no Brasil, assinada em 28 de agosto de 1979. Falo de uma produção do “Teatro dos 4”, do Rio de Janeiro, à qual tive o prazer de assistir, sob a direção de Nelson Xavier, trazendo Sérgio Britto, como protagonista, à frente de um excelente elenco, no qual se destacavam nomes como os de Ângela Leal, Tonico Pereira e Nildo Parente.




         A atual montagem do “GRUPO TAPA” estreou em 2022, no período pré-eleição, e se fazia tão necessária, naquele momento, como ainda o é agora, quando, felizmente, nos livramos de um “câncer”, porém não podemos nos afastar de uma vigília constante, pela democracia no Brasil e a defesa das leis que garantem o funcionamento de um “estado democrático de direito” (Pode haver a iminência de descoberta de uma “metástese”. Queira Deus que não!!!). Trata-se de um outro momento político, entretanto, percebemos, na peça, que a trama dialoga muito bem com personagens reais de nossa história; o desespero pela volta ao poder, as trocas de lados. É uma fábula de um ditador populista de um país fictício sul-americano, porém é uma radiografia do que estamos vivendo”, como bem afirma EDUARDO TOLENTINO DE ARAÚJO, diretor do espetáculo, do que, e de quem, é impossível discordar, muito embora ele tenha dito que não se preocupou em fazer com que haja uma identificação com esrte ou aquele político da atualidade. 





         É extremamente difícil dissociar o que se passa no palco daquilo que representou toda a “podridão” de que se utilizou um “certo presidente”, para se perpetuar no poder, no Brasil, antes e depois de ter sido derrotado, democraticamente, nas urnas.





A estrutura do espetáculo comporta dois núcleos, com o protagonista reconstruindo o passado, voltado para a sua queda, e o futuro, em que sonha com o desejo de voltar ao poder, sempre apoiado por militares. Ainda há espaço para um personagem do passado, que vem para um acerto de contas. “É o confronto de duas faces da mesma moeda”, ressalta o diretor.







O título da peça contém uma curiosidade que pode passar despercebida, entretanto merece um registro. Ele faz alusão a um conhecido e sanguinário ditador do Haiti, o qual governou o país, com mão de ferro, de 1957 a 1971. Chamava-se François Duvalier, conhecido como Papa Doc, eleito com uma plataforma populista e de nacionalismo negro. Após deter um golpe militar, em 1958, seu regime tomou um caráter totalitário e despótico. Um dos seus atos mais extremos foi a formação de um esquadrão da morte, conhecido como “Tonton Macoute”, cujo principal propósito era assassinar os opositores de seu governo, marcado por prisões arbitrárias, tortura e morte de opositores, corrupção e nepotismo. (Alguém já "assistiu a esse filme" por aqui?) No âmbito externo, de início, manteve-se alinhado aos Estados Unidos, mas, quando o seu regime começou a ficar, cada vez mais, opressor, os americanos foram, lentamente, cortando seus laços com ele. Em 1962, Papa Doc anunciou que seu país rejeitaria qualquer ajuda monetária vinda do governo americano. Então, apropriou-se de toda a ajuda externa que chegava ao Haiti, desviando milhões de dólares para contas pessoais. Com o passar dos anos, seu regime foi se tornando cada vez mais repressivo. Bens privados eram apropriados pelo governo e toda a oposição era silenciada. Fome e má-nutrição se tornaram epidêmicas. Por causa de tais atrocidades, era chamado de “Diabo do Haiti”. Durante seu regime, a economia do país sofreu, enquanto ele acumulava uma enorme fortuna pessoal. A repressão política e a falta de oportunidades fez com que houvesse uma enorme fuga de "cérebros" do país, com a elite intelectual haitiana fugindo, em grandes números, para o exterior. Como se vê, a História se repete, com mais frequência do que podemos imaginar.




Todos os textos de VIANNINHA são pujantes, sendo difícil dizer qual deles é o mais “robusto”, entretanto considero “PAPA HIGHIRTE” o que, talvez, mais me toca, depois de “Rasga Coração” e “Nossa Vida em Família”. Aquele, na mesma linha de “PAPA”; este, totalmente diferente, na temática, e tão precioso quanto os outros.





O tema da peça é totalmente universal e atemporal. O Haiti é aqui; Alhambra também; e agora. Ou não se poderia dizer isso, durante o “período de chumbo”, pós-64, e o quadriênio 2019/2022? Os absurdos, as barbáries e as desarmonias, que permeiam um estado de exceção, que desfavorecem a uns e presta obséquios a outros, presentes na “geografia da peça”, ainda estão “frescos” na nossa mente, com relação ao Brasil dos últimos anos. Ou não seria o personagem Papa Highirte um exemplo de “mito”, no sentido como decodificamos o vocábulo na recente história do Brasil?





Para rememorar as “glórias” do passado, seu “tempo de poder”, Papa conta com Grissa, sua fiel espécie de governanta, papel interpretado por BIA BOLOGNA, e Morales, um guarda vivido por ADRIANO BEDIN, ao mesmo tempo que, por meio de meios escusos, arquiteta a recuperação do poder perdido, contando, em suas armações, com os personagens Perez y Mejia (KIKO VIANELLO), Menandro (MAURICIOBITTENCOURT) e o Estrangeiro (FULVIO FILHO). Num determinado momento da trama, eis que surge uma prostituta, Graziela (CAMILA CZERKES), trazendo, a tiracolo, um candidato a motorista de Papa. Trata-se do jovem Diego (BRUNO BARCHESI), o qual, de forma bem dissimulada, é portador de segredos e nutre intenções de vingança, com relação à morte de um amigo, Hermano Arrabal (Manito), vivido por CAETANO O'MAIHLAN.





Todos os personagens são, esplendidamente, interpretados por seus representantes titulares, cabendo um protagonismo maior a ZÉCARLOS MACHADO, não só pela posição de destaque do personagem, na trama, como também pelo fato de ele ser, na minha avaliação, um dos melhores atores do Brasil, em sua geração, e ter mergulhado, abissalmente, na composição do personagem. São muito interessantes os momentos em que o personagem ironiza os ridículos discursos dos populistas, sem “olhar para o próprio rabo”. A propósito da impecável interpretação de MACHADO, sem querer criar nenhuma polêmica – mas não me perdoaria, se ocultasse minha opinião -, a despeito do ótimo rendimento de quem levou o prêmio de melhor ator de 2022, num conceituado prêmio teatral, por São Paulo, não me canso de dizer que tal honraria deveria ter sido direcionada a ZÉCARLOS.






À frente do “GRUPO TAPA”, como encenador e um de seus fundadores, em 1974, dentro da PUC-RJ, EDUARDO TOLENTINO DE ARAÚJO contabiliza dezenas de trabalhos e muitos prêmios de TEATRO, fazendo leituras muitos personalistas e criativas de alguns dos melhores dramaturgos brasileiros, como Nelson Rodrigues, Antônio Bivar, Plínio Marcos, Domingos de Oliveira, Millôr Fernandes, Martins Perna, Jorge de Andrade  e, obviamente, Oduvaldo Vianna Filho. Mas também assinou lindas e icônicas montagens de autores estrangeiros: Maquiavel, Ibsen, Molière, Shakespeare, Bernard Shaw, Lars Norén, Anouilh, Pirandello, Tchcekhov e Strindberg,  dentre outros.


Eduardo Tolentino de Araújo.

(Foto: fonte desconhecidsa.)

Com este trabalho, TOLENTINO e o “TAPA”, ainda que eu considere importantíssimas todas as “peças” responsáveis por movimentar a “engrenagem” do TEATRO, só fazem comprovar a minha teoria de que se pode abrir mão de tudo, numa montagem teatral, menos de um bom texto, um ótimo diretor e um elenco de grandes e aplicados profissionais, capazes de escrever, com letras maiúsculas e garrafais, a passagem de uma peça por um palco. É exatamente o que acontece em “PAPA HIGHIRTE”. É de arrancar muitos aplausos a concepção do espetáculo, do ponto de vista de sua plasticidade e da utilização do espaço cênico, uma felicíssima proposta da direção, bem aceita e, da mesma forma, executada por todos os que compõem a FICHA TÉCNICA da peça.






Um palco totalmente nu, espaço no qual só cabem os atores e um pequeno banquinho. Não há uma cenografia explícita, entretanto o público a enxerga, imagina-a, graças às indicações que há no texto e às marcações propostas pelo diretor. Da mesma forma, não há um figurino especial e datado. Os personagens vestem trajes do dia a dia, de acordo com as características de cada um. Nada há, nesses dois elementos, que possa fazer com que o espectador se abstraia dos personagens e das ações, visto que são estes o que de mais importante existe para ser visto, e sentido, naquele espaço cênico.




O diretor optou por uma estética que puxa para um universo sombrio, de mentiras e traições, de tramoias e conchavos, de intrigas e medos, muito marcada pela ótima proposta de iluminação, assinada por WAGNER PINTO. A luz, em muitos momentos, determina os limites dos espaços em que se dão as ações, construindo “paredes invisíveis e voláteis”.





 

  

FICHA TÉCNICA: 

Texto: Oduvaldo Vianna Filho

Direção: Eduardo Tolentino de Araújo

 

Elenco (por ordem alfabética): Adriano Bedin (Morales), Bia Bologna (Grissa), Bruno Barchesi (Pablo Mariz / Diego), Caetano O’Maihlan (Hermano Arrabal / Manito), Camila Czerkes (Graziela,) Fulvio Filho (Estrangeiro), Kiko Vianello (Perez  y Mejia), Mauricio Bittencourt (Menandro) e Zécarlos Machado (Papa Highirte)

 

Desenho de Luz: Wagner Pinto

Assistente de Iluminação: Gabriel Greghi

Coreografias: Cassio Cöllares

Fotógrafo: Ronaldo Gutierrez

Redes Sociais: Felipe Pirillo (Inspira Teatro)

“Design” Gráfico da Divulgação: Mau Machado

Coordenação de Produção: Nando Medeiros e Rafaelly Vianna

Direção de Produção: Ariell Cannal


 





         Ao final de 120 minutos, que passam sem que nos demos conta disso, qualquer espectador atento percebe que são mais que verdadeiras as palavras de EDUARDO TOLENTINO DE ARAÚJO, quando diz: “A peça é uma metáfora e não uma transposição da realidade, mas claro que fala desse pai do povo - e tem a ver com o Brasil, que conhece os efeitos do populismo e ainda acredita em um salvador da pátria”. Ao mesmo tempo, para esse espectador, “cai a ficha”: Enquanto persistir essa nefasta crença, estaremos condenados à possibilidade de maiores retrocessos, em todos os sentidos.










 

         “PAPA HIGHIRTE” é um espetáculo que sempre será candidato a uma nova pauta, em qualquer Teatro do Brasil, pelo conjunto da obra.

 

 

 





















 

FOTOS: RONALDO GUTIERREZ

(Observação: As fotos que ilustram esta crítica são da primeira temporada, no formato de arena. A que assisti, em palco italiano, sofreu duas substituições no elenco.)



 









































 

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