terça-feira, 22 de abril de 2014


O ESTRANHO CASO DO CACHORRO MORTO


 


(SENSIBILIDADE À FLOR DA PELE E UM TURBILHÃO DE EMOÇÕES)


 



 


            Como é gratificante ir ao teatro e sair de lá transbordando de felicidade, por ter assistido a um espetáculo que ficará, para sempre, na memória emotiva do espectador.  Esse espectador sou eu e são todas as pessoas que forem ver O ESTRANHO CASO DO CACHORRO MORTO, que, de estranho, só tem o título, em cartaz, até o dia 29 de junho, no Teatro do Leblon (Sala Marília Pêra), de 5ª feira a sábado, às 21h, e, aos domingos, às 20h.


            A peça é uma versão, para os palcos, de um livro, que se tornou “best-seller”, em 2003, de MARK HADDON, numa adaptação de SIMON STEPHENS, com tradução de RODRIGO FONSECA, e que teve uma montagem premiada em Londres, quando ganhou sete prêmios no prestigiado OLIVER AWARDS 2013.


            A temática, por demais instigante, gira em torno de um assunto, ainda para alguns, considerado um tabu: indivíduos que sofrem de Síndrome de Asperger (pronuncia-se como proparoxítono), um transtorno ligado ao autismo, que se diferencia da forma clássica pelo fato de seu portador ter fala compreensível e fluente.


            Sempre digo que um bom espetáculo teatral tem origem num bom texto.  Vivo me repetindo e não seria agora que mudaria de opinião.  Os outros elementos que garantem o sucesso de uma montagem vão sendo agregados aos poucos, entretanto o texto é de fundamental importância.  Ou, até mesmo, antes dele, é preciso que se conte uma boa história.  Aqui, temos uma extraordinária.


 



 


            CHRISTOPHER BOONE é um adolescente, de quinze anos, que mora numa pequena cidade inglesa, e é criado por seu pai, um operário, o encanador ED.  Este dissera ao filho que a mãe, JUDY, estava muito doente, hospitalizada, para justificar a ausência dela, até que, um dia, resolve mentir, mais uma vez, falando ao rapaz que a mãe falecera no hospital. 


CHRISTOPHER é portador da síndrome de Asperger e não gosta de ser tocado.  Quando isso ocorre, por qualquer motivo, reage com estridência e angústia.  Apesar de meio arredio, seu comportamento, via de regra, é dócil e ele se expressa, demonstrando um raciocínio literal.  Sabe, de cor, os nomes de todos os países do mundo e suas capitais, assim como os números primos até 7.507.  Também gosta de animais, mas não entende nada de relações humanas.  É um aficionado por listas, padrões e verdades absolutas.  Odeia amarelo e marrom.


Num certo dia, é encontrado, imóvel, ao lado de WELLINGTON, o cão de sua vizinha, a SRA. SHEARS, na primeira cena da peça.  O pobre animal havia sido morto a golpes de uma espécie de ancinho, ferramenta utilizada na agricultura e em jardinagem, e, por seu comportamento “estranho”, o rapaz é acusado do crime, pela dona do animal, com a qual, pai e filho mantiveram um bom relacionamento, por muito tempo, até um determinado dia, bastante importante na trama, quando ocorreria um fato, que será desvendado, mais tarde, no decorrer da peça.  A partir de então, as relações entre as duas famílias ficaram estremecidas.  Nesta cena, merece um comentário elogioso a resolução que o diretor encontrou para a aparição do cão morto, na grama, sem causar nenhum choque visual à plateia.  Vá conferir.


 



 


            Inconformado com a morte do animal e com a injusta acusação que pesava sobre si, CHROSTOPHER decidiu fazer sua própria investigação, para descobrir o verdadeiro criminoso, inspirado no seu personagem fictício favorito, o impecavelmente lógico Sherlock Holmes.  A partir daí, envolve-se em inúmeras confusões.  Delas, resultam muitas revelações, às quais não farei a menor alusão, para não roubar a quem me lê o prazer da surpresa.  Ou melhor, das surpresas.


            Muito ao contrário do que o público que vai assistir à peça possa pensar, a descoberta do assassino do infortunado cão não é o mais importante na trama, mas serve para detonar um processo de exploração do universo em que vive um paciente autista.  Nem o porquê da morte tem tanta importância, ainda que venha a ser explicado (não sendo nunca justificado), para o espectador; não para CHRISTOPHER.


            O mais importante, em cena, é chamar a atenção das pessoas para o saber lidar com as diferenças.  Fica bem claro, na peça, como já é do conhecimento de todos, que, para esse tipo de “doença congênita”, como equivocadamente, muitas pessoas tratam tais síndromes, não há cura, entretanto as mazelas podem ser, consideravelmente, amenizadas, sendo necessário, para isso, que haja, por parte dos que lidam com essas pessoas especiais, uma forte dose de amor, tolerância e, sobretudo, capacidade de perceber e aproveitar o grande potencial humano, expressivo, afetivo e criativo dos portadores de tal síndrome.


 



 


            Sobre o elenco e a ficha técnica:


            O protagonista da história é o jovem CHRISTOPHER.  Durante o processo de montagem, o diretor fez testes com mais de sessenta atores para encontrar o ator adequado, até chegar a RAFAEL CANEDO, uma das maiores revelações que já vi em TEATRO nos últimos tempos.  O rapaz, que, até então, só havia atuado numa confusa montagem (PORCO COM ASAS), da qual apenas ele e uma jovem atriz, de cujo nome não me lembro, me deixaram boas recordações em cena, e num espetáculo infantil, segundo informações, é dono de um potencial dramático, de uma sensibilidade incomensurável, de uma presença de palco incrível e é, sem sombra de dúvidas, a grande estrela desta montagem, a despeito do excelente elenco, o qual, poderíamos dizer, sem nenhum tom pejorativo, que, da forma mais generosa possível, se presta a ser “escada” para um jovem iniciante.  E olha que são todos nomes consagrados, tarimbados, do TEATRO, sobre cujos trabalhos comentarei adiante.  Não me lembro de ver RAFAEL fora de nenhuma cena.  Ainda por cima, seu texto apresenta enormes “bifes” (falas muito longas), que ele diz com muita precisão, modulando a voz com variações perfeitas, de acordo com as emoções do personagem.  Trabalho irrepreensível!


 



 


            Curioso é que RAFAEL, que tem 26 anos, aparenta ter, na foto do belo programa da peça, uns 30, contudo convence o público, com sua postura e seu trabalho de construção do personagem, de que é um adolescente de 15, em cena.


 



 


            Fiquei completamente extasiado com o talento desse jovem, que (aqui entra, obviamente, o dedo do diretor), tinha tudo para cair na tentação do estereótipo, tornando o personagem ridículo e caricato, e, no entanto, não extrapola os limites e faz um CHRISTOPHER digno de ocupar a galeria das grandes interpretações masculinas no TEATRO BRASILEIRO.


            THELMO FERNANDES é ED, o pai do rapaz.  Sou, de longas datas, um dos maiores admiradores deste profissional.  Confesso que, no início da peça, fiquei um pouco frustrado, pois achei que o personagem não estaria à altura de seu talento, acostumado a vê-lo brilhar, em papéis dramáticos ou cômicos, como em NÃO SOBRE ROUXINÓIS e em A ARTE DA COMÉDIA, para citar apenas alguns dos mais recentes .  Entretanto, um bom ator valoriza qualquer papel e THELMO sabe valorizar o personagem que lhe cabe numa peça.  É excelente a sua atuação e comove bastante a plateia, nos momentos alternativos em que cada reação de choque, de embate, com o filho cede a uma atitude doce, de carinho e compreensão.  Dá a impressão de que, literalmente, ele vai dar colo ao filho.  Lindo seu trabalho!


 



 


            SÍVIA BUARQUE, que interpreta JUDY, a mãe do rapaz, num excelente desempenho, volta a trabalhar com o diretor, MOACYR GÓES, depois de não menos interessantes atuações em ESCOLA DE BUFÕES e EPIFANIAS.  Ao contrário do marido, que abraça a causa do filho e se dedica, de corpo e alma, ao bem-estar e proteção do jovem, a tentar facilitar-lhe a vida, a personagem de SÍLVIA não consegue lidar com as dificuldades do filho, o que a leva, determinadamente, a se afastar dele.  Atriz de forte personalidade, tem uma bela atuação, o que lhe é peculiar, a cada trabalho.


            SABRINA KORGUT, para mim, foi uma grata surpresa, já que acompanho sua carreira, desde há muito, vendo-a sempre estrelando comédias e, principalmente, musicais, gênero no qual ela ocupa um lugar elevado no pódio.  Além de boa atriz, SABRINA é excelente bailarina e dona de uma invejável voz.  Neste espetáculo, seu primeiro papel dramático, quero crer, ela vive a SRTA. SIOBHAN, a professora de CHRISTOPHER, sua mentora na escola especial que frequenta, sempre muito atenta e dedicada ao jovem.  A personagem, por sua experiência profissional, funciona como um grande esteio para ele, sempre o incentivando em sua ações, sabendo, entretanto, na medida certa, frear seus ímpetos.  Se eu já admirava a outra SABRINA, passo, agora, a admirar também a que acabo de conhecer.


 



 


            Os demais colegas do quarteto, em cena, todos ótimos atores, com bons trabalhos anteriores e aprovados em testes para o seus papéis, nesta peça, são:


            LEON GÓES – SR. SHEARS, POLICIAL 1, BÊBADO 1 e BILHETEIRO


            CARLA GUIDACCI – SRA. SHEARS e SR. ALEXANDER


            EDUARDO RIECHE – REVERENDO PETERS e GUARDA DA ESTAÇÃO


            PAULO TRAJANO – DELEGADO, STEVE, BÊBADO 2 e VENDEDOR


            RICARDO GONÇALVES – SR. THOMPSON, GUARDA DA ESTAÇÃO 2, HOMEM DE MEIAS e POLICIAL DE LONDRES


            FABIANA TOLENTINO – SR. GASCOYNE, NÚMERO 44, GAROTA PUNK, MOÇA DA RUA, VOZ 1 e ATENDENTE


 



 


            Completam esta ficha técnica:


            MOACYR GÓES assina a direção.  Foi muito feliz na escolha do elenco e na concepção do espetáculo.  Certamente, sabia que poderia estar mexendo num vespeiro, mas, corajoso e detentor de um grande talento para a direção, conduziu seu trabalho com precisão, criando um espetáculo lindo, sem cair na pieguice.    


            ANA SANTANNA e MÔNICA MARTINS, na cenografia.  Quanto a este elemento, trata-se de uma proposta muito simples, prática e interessante, com vários objetos geométricos, estrategicamente, dispostos no palco, opção do diretor, muito bem desenvolvida pela cenografia.  MOACYR justifica sua escolha pelo fato de “CHRISTOPHER ter um raciocínio lógico, matemático e bem racional.  Como há uma dificuldade de externar emoções, vou criando cenas e espaços com cubos e outras formas”.

 

            São adequados os figurinos, de JOANA MENDONÇA e LUIZA OLIVEIRA.

 

            TOMÁS RIBAS, tantas vezes premiado, em 2014, por trabalhos executados em 2013, assina a bela luz da peça.

 

O visagismo é de responsabilidade de BETO CARRAMANHOS.  Nada que mereça destaque, a não ser a sempre presente competência do BETO.

 

            Há, ainda, uma preparadora vocal (ANA FROTA), uma direção musical (ARY SPERLING) e uma trilha sonora original (RAFAEL SPERLING), que, aliados a outras várias pessoas envolvidas no projeto, colaboram para o seu sucesso.

 

            Para encerrar, convém dizer que o texto é brilhante, com diálogos ágeis, muito bem construídos, promovendo uma aproximação bem grande entre atores e plateia.  O texto chama a plateia para a cena.  E, também, provoca choro e risos; estes, pelo patético de algumas cenas, provocados por algumas falas e algumas atitudes do protagonista.

 

            Não tenho a menor dúvida de que O ESTRANHO CASO DO CACHORRO MORTO fará uma bela carreira e marcará o ano teatral de 2014.  Para mim, já está marcando.  Vou revê-lo.

 

 

 


 

 

            Antes de fechar a cortina: prepare-se para uma linda surpresa no final do espetáculo.

 

 

 


 

 

 

Para quem estiver interessado, todas as 5ªs feiras, após o espetáculo, haverá debates sobre AUTISMO.  Aqui está a programação:

 

 


 

 

 

(FOTOS: PRODUÇÃO / DIVULGAÇÃO DO ESPETÁCULO)