segunda-feira, 21 de abril de 2014


À SOMBRA DAS CHUTEIRAS IMORTAIS

 

 

(O NÉLSON RODRIGUES QUE EU APLAUDO DE PÉ.)

 

 

 

 


 

         
  

            Por mais de uma vez, já me manifestei quanto a não engrossar a legião de pessoas, da classe teatral (a maioria) ou não, que idolatram NÉLSON RODRIGUES na condição de dramaturgo.  Sob pena de ser execrado por essa multidão, só tenho a pedir – e esperar – que respeitem a minha opinião, assim como procuro respeitar a alheia.

 

            Há, entretanto, uma outra faceta do NÉLSON, por demais conhecida e também festejada por seus admiradores, de cujo exército, neste caso, faço parte, de armas em punho.  Trata-se do NÉLSON RODRIGUES cronista, tanto na categoria “futebol”, uma de suas grandes paixões (aliás, para ele, no lugar de “futebol”, leia-se Fluminense Futebol Clube, em se tratando de “paixão”, sinal de sabedoria e bom gosto), quanto nas outras, que tratam das coisas da vida, principalmente do amor, assinando ele mesmo ou sob o pseudônimo de Susana Flag, por anos seguidos, na coluna Minha Vida é Pecar, em O Jornal, extinto matutino carioca.  Desse NÉLSON, sou fã de carteirinha.  Muitas dessas crônicas já foram transportadas, com muito sucesso, para o palco.

 

            Agora, aproveitando-se de um dos assuntos que dominam a mídia no momento, a Copa do Mundo, que bate à nossa porta, já no quintal, HENRIQUE TAVARES, teve uma excelente ideia, a de basear-se numa das mais conhecidas e admiradas crônicas do escritor, O GRANDE DIA DE OTACÍLIO E ODETE, e transformá-la numa deliciosa peça de teatro, enxertando-lhe trechos de outras crônicas, como COMPLEXO DE VIRA-LATAS, O CRAQUE NA CAPELINHA e O MAIS BELO FUTEBOL DA TERRA, numa fusão coesa, poucas vezes vista em trabalhos afins.

 

 

 


Gláucio Gomes, Anderson Cunha, Ingrid Conte e César Amorim

 

 

            A peça cobre o período que vai da Copa do Mundo de 1950, quando a derrota do Brasil para o Uruguai, em pleno Maracanã, reforçou a péssima imagem que o brasileiro tinha de si mesmo, à conquista do primeiro campeonato mundial, em 1958.

 

            Peço licença ao adaptador do texto e diretor da peça, para reproduzir parte do que ele escreveu no programa do espetáculo: “Nélson enxergou, no futebol, um teatro que envolve todas as paixões humanas.  Seus textos são épicos, originais e têm grande força poética.  Ao falar de um grande craque ou do velório de um velho jogador obscuro, ele apenas usa o futebol como pretexto para mergulhar em suas obsessões: o heroísmo e o medo, a multidão e o indivíduo, vida e morte”.

 

            São sessenta minutos que passam como e fossem seis.  Um espetáculo alegre, leve, divertido; simples e oportuno, feito com muita paixão e competência.

 

            HENRIQUE TAVARES, tanto na adaptação do texto como na direção, assumiu uma responsabilidade muito grande, contudo, com sua inteligência, talento e vasta experiência no ramo, contando com um excelente grupo de colaboradores, conseguiu dar vida a um dos mais recomendáveis espetáculos do momento.

 

            Assim como há atores shakespeareanos, não seria nenhuma blasfêmia dizer que, para representar NÉLSON RODRIGUES, não basta ter talento e decorar, simplesmente, um texto do autor.  Não; é preciso que seja um ator rodrigueano.  Sim, é necessário que ele saiba mergulhar no universo do dramaturgo e vivê-lo com muita verdade, representando-o da maneira como ele é, sabendo dizer suas frases de efeito, marcadas por um vocabulário único, cheio de epítetos típicos de sua linguagem; ou seja, o “óbvio ululante”.

 

            Poderia fazer desfilar, aqui, uma dezena ou mais de nomes de atores e atrizes que parecem ter nascido para representar NÉLSON, mas, para não cometer injustiça, por omissão, vou me fixar na pauta em questão, restringindo-me a dizer que o quinteto de atores convidados a fazer parte do elenco de À SOMBRA DAS CHUTEIRAS IMORTAIS pode ser incluído no rol dos atores rodrigueanos:

 

            GLÁUCIO GOMES interpreta o protagonista Otacílio, aquele que vivia sob a dúvida de vir ou não a ser traído pela jovem e bela esposa, com quem se casara havia pouco tempo.  Essa mesma dúvida o perseguirá, quanto à decisão de matar ou não a esposa, antes, durante ou após o jogo final entre Brasil e Suécia, depois que um tio, não só lhe comunica uma traição da esposa, com seu melhor amigo, e com detalhes, como também lhe cobra uma atitude de “lavagem da honra”.  O ator, que não costuma frequentar a mídia, é excelente e dá ao personagem o tom exato como este deveria se comportar, sem nenhum excesso, o que poderia levá-lo ao ridículo.  Afinal, marido traído, quase sempre, foi explorado de forma caricata no TEATROGolaço!!!

 

            INGRID CONTE interpreta, com correção, Odete, a esposa “adúltera”, sem cometer qualquer deslize na interpretação.  Sua beleza e leveza em cena, a despeito de sua pouca experiência nos palcos, em função de sua idade, são fundamentais na concepção da personagem, que precisa passar uma ideia de quase pureza e total fidelidade ao marido.  Ponto para a atriz.

 

            ANDERSO CUNHA faz o personagem CUNHA, o melhor amigo de Otacílio e o pivô de uma “quase-quem-sabe” tragédia, além de atuar como narrador, em pequenas passagens, assim como o fazem os demais do elenco.  ANDERSON tem um ótimo “time” para a comédia (já o demonstrou tantas vezes) e, aqui, é responsável por alguns dos mais engraçados momentos da peça.  Um craque, esse ator!!!

 

            CRICA RODRIGUES (o sobrenome não é coincidência; é neta de NÉLSON) tem uma participação mais discreta na trama, mas é firme e muito engraçada na pele de Madame Crisálida, a falsa cartomante, que poderia selar o destino do casal Otacílio e Odete Marca bem o adversário.

 

            CÉSAR AMORIM representa dois personagens: o Tio, que irrompe, na casa de Otacílio, com o propósito de alertar o sobrinho para a traição da esposa, e O Homem da Capelinha.  Nesta cena, CÉSAR está impagável, apoiado no excelente texto, quando, durante o velório de um “perna-de-pau”, ex-jogador do América, disserta, para Otacílio, sobre a “pobreza” em que se transformaram os velórios, desde que foram transferidos das próprias residências dos mortos para a “frieza” das capelinhas de cemitérios, roubando, inclusive, às viúvas a “oportunidade de viver seu momento de Sarah Bernhardt.  A cena é hilária e provoca muitas gargalhadas.  Gol de placa!!!

 

 


Gláucio Gomes, Ingrid Conte e Anderson Cunha

 

 

A cenografia, de JOSÉ DIAS, é bastante interessante: apenas algumas cadeiras em cena, um aparador (na época em que se passa a história, chamava-se “bufê”) e um velho aparelho de rádio, sobre o móvel, todos reproduzindo o mobiliário da década de 50 (estilo chipandelle, se não estou enganado, menos o rádio).  Tão logo abriu o pano, a visão do cenário sacudiu a minha memória afetiva, quando me permiti viajar no tempo, para a final da Copa de 58 (na cena, era a transmissão da final da Copa de 50), para o quintal da casa de minha avó, onde toda a numerosa família se reunira, ao redor de um velho aparelho de rádio, a válvulas, semelhante ao da cena, para ouvir a consagração do Brasil.  A transmissão era péssima, diretamente da Suécia.  Não se conseguia entender bem, ou quase nada, o que o locutor tentava descrever e, quando o adversário, a Suécia, que veio a perder de 5x2, fez o primeiro gol, eu, que estava ali mais para brincar com os meus primos do que para torcer pelo escrete, aportuguesamento para “scratch” (Olha o NÉLSON aí, gente!), aos nove anos de idade, saí pulando e gritando “Gooooooooool!”, sem saber que estava festejando o tento do adversário. Tomei muitos “cascudos” (NÉLSON ataca de novo.), até entender o mico que estava pagando (Será que NÉLSON entenderia esse negócio de “pagar mico”?).

           

A iluminação, de AURÉLIO DE SIMONI, como sempre, é muito boa e importante na peça.

 

            PATRÍCIA MUNIZ acertou em cheio nos figurinos de época.  O do primeiro personagem a entrar em cena, o de ANDERSON CUNHA, já me fez soltar uma boa gargalhada.  “Cafona”, diríamos hoje, mas já usei igual.

 

            Embora não haja, no programa da peça, a autoria da trilha sonora, ela também foi escolhida pelo diretor.  É muito agradável, para os da antiga, como eu, e para qualquer pessoa de sensibilidade apurada e que aprecia uma boa música, ouvir EU NÃO EXISTO SEM VOCÊ, de Tom e Vinícius, na deliciosa voz de veludo de Maysa, e ATIRASTE UMA PEDRA, de Herivelto Martins, cantada pelo, também, "aveludado" Nélson Gonçalves.  Ainda há, ao final da peça, um toque mais contemporâneo, a cargo de Jorge Ben Jor, com sua Umbabarauma.

 

            A produção está nas mãos de CARLA FAOUR, de quem estamos saudosos no palco.

 

 


Ingrid Conte, César Amorim, Anderson Cunha e Gláucio Gomes

 

 

            E por falar em saudosismo, é bom lembrar que a peça não é uma sessão nostalgia; não é endereçada aos saudosistas de plantão, porém apresenta uma proposta de trazer, para o presente, um passado cronológico ou "crono-ilógico", ao mesmo tempo, de certa forma, atemporal.

 

            O espetáculo fica em cartaz de 5ª a sábado, até o dia 24 de maio, sempre às 19h30min, no Teatro SESI, sendo que, inaceitavelmente, não há sessões aos domingos, pois, segundo informações do próprio teatro, há receio de assaltos e ataques às pessoas que procuram um lazer no Centro do Rio de Janeiro, aos domingos, por se transformar num local deserto e sem policiamento, por total culpa do Estado e do Município (isto quem diz sou eu), o que, de certo, não faltará na Copa, que se aproxima e à qual me oponho totalmente.

 

            Parafraseando o meu amigo Jorge Leão (foi dado o crédito), “o HENRIQUE TAVARES, com esta peça, conseguiu fazer o que o Tostão fazia: jogar sem bola”.

 

            Não deixem de assistir a este espetáculo, feito para entreter e resgatar um momento da nossa história recente, pelas palavras do grande cronista NÉLSON RODRIGUES.

 

 

 


Nélson Rodrigues.  Quem sabe, neste momento, não estaria sendo escrita uma das crônicas presentes na peça?

 

 

 

(FOTOS: FLÁVIA FAFIÃES – PRODUÇÃO / DIVULGAÇÃO DO ESPETÁCULO)

 

 

 

5 comentários:

  1. Gooooooooooooooooooooooooooooooooooooool !!!!!!!!

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  2. muito minuciosa a leitura da peça e muito boa. a peça realmente é o que se pode chamar de um espetáculo. Henrique Tavares mais uma vez acertou em cheio e todo o elenco de palco e técnico está perfeito. É uma peça para se ver várias vezes. Ivan Lima

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  3. Caro Gilberto, obrigado por resenha tão bem escrita, lendo me dá vontade de fazer cada vez melhor.
    adorei sua estória da final de 58.
    convido o leitor para conferir a peça no palco.abraço. GG

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