segunda-feira, 21 de abril de 2014


UMA VIDA BOA

 


(À PROCURA DE UMA RAZÃO PARA VIVER  E SER FELIZ.)

 


 

 


Amanda Vides Veras, Daniel Chagas e Juliane Trevisol

 

 

            O TEATRO, além de ser um veículo de entretenimento, também é vetor para reflexões e tomadas de consciência.  Esta é, sem dúvida a grande proposta do espetáculo UMA VIDA BOA, que vem sendo encenado no Teatro OI Futuro Flamengo, onde ficará em cartaz até o dia 25 de maio, de 5ª a domingo, às 20h.

 

            Escrita por RAFAEL PRIMOT, que me confidenciou ter sido um processo de criação muito difícil, longo e dolorido, obviamente pelo tema abordado, e dirigido, muito bem, por DIOGO LIBERANO, a trama procura chamar a atenção do espectador para a necessidade, ou melhor, a obrigatoriedade de nos voltarmos para a questão da pluralidade, da aceitação do outro como ele é, com suas qualidades e “defeitos”, que todos temos, já que “ninguém consegue esconder tudo por muito tempo”. 

 

No caso, a questão gira em torno da aceitação de uma mulher, que nasceu fêmea, na anatomia, mas que tem um interior macho, o que gera toda uma gama de preconceitos e mazelas, que conduzem, via de regra, a um desfecho triste, fatídico e totalmente desnecessário, o que exatamente ocorre na peça.  Bastaria que aceitássemos a singularidade que cada um traz consigo, desde que nasce, e que a respeitássemos e garantíssemos a esse ser humano manifestar seus desejos e paixões, seus anseios e direitos, como cidadão e membro de uma comunidade maior, chamada SER HUMANO.

 

 


Daniel, Amanda e Juliane

 

           

Adorei a frase do autor do texto, no programa da peça: “Ainda bem que somos tão diferentes e, ao mesmo tempo, tão igualmente imperfeitos”.

 

            A história é baseada num fato verídico, ocorrido há 20 anos, nos Estados Unidos, e que também deu origem a um filme, MENINOS NÃO CHORAM, o qual levou a atriz Hillary Swank a ganhar o seu primeiro Oscar de Melhor Atriz, em 1999.

 

Os personagens são identificados pelas iniciais de seus nomes, mas o fato é que essas iniciais, que não identificam ninguém, podem, ao mesmo tempo, sugerir que se refiram a cada um de nós, dependendo de como possamos nos encaixar num dos três personagens da peça: B, na verdade, Teena Renae Brandon, uma menina que nasceu mulher e assumiu uma identidade masculina; L, uma cantora medíocre, em busca do estrelato; e J, um ex-presidiário, violento e manipulador.

 

B, que sofria o preconceito da minúscula cidade em que nascera, Lincoln, desde pequena, a começar em casa, pela própria mãe, aos vinte anos, resolveu abandonar a família e passou a viver numa cidade próxima, à procura de independência e felicidade, apresentando-se como um rapaz, travestida em roupas masculinas, com o seio comprimido pra uma bandagem elástica e usando cuecas, dentro das quais costumava utilizar uma meia enrolada, para mostrar às meninas o volume de um pênis, desejo incontido, que havia em sua cabeça masculina.

 

 


Juliane, Amanda e Daniel

 

Disfarçada, sob essa nova “identidade”, muito “romântico e atencioso” em se tratando de relacionamentos amorosos, o “transhomem” se apaixonou por Lana Tisdel, uma adolescente de 19 anos, cantora medíocre, com quem iniciou um romance, e passou a conviver também com John Lotter, um ex-presidiário, amigo de L, violento e manipulador, como já mencionado, e outros moradores desajustados de uma cidade do interior, de forte marca religiosa, sem grandes atrativos e perspectivas para a juventude.
 

            Não demorou muito para que o segredo de B fosse descoberto por J, o qual, não aceitando “ser enganado”, na companhia de um amigo, estuprou e assassinou a indefesa vítima, de forma brutal.  Primeiro, com tiros e, depois, com golpes de faca, para se certificarem de que haviam consumado o bárbaro ato de intolerância, numa noite de “réveillon”.  É, sem dúvida, até hoje, um dos crimes mais violentos e comentados dos arquivos policiais americanos.

 


Daniel, Amanda e Juliane

 

            É triste e, principalmente, assustador saber que, apesar de todos os avanços da sociedade brasileira, no sentido da, mais que certa, aceitação de tudo o que se refere à diversidade sexual, ainda estamos cercados de situações análogas à vivida pelos personagens da peça.  Ainda ontem, por conta de uma feliz (ou infeliz) coincidência, ouvi, enquanto dirigia, num programa de rádio, sobre diversidade e pluralidade, uma entrevista com uma mulher, bissexual, da Bahia, responsável por um movimento de proteção às mulheres lésbicas e bissexuais, que, segundo ela, em todo o Brasil, são vítimas de estupros e de outras barbaridades, por parte de homens, para que elas “aprendam a se comportar como mulheres”.  E o que é pior, segundo ela: isso, muitas vezes, com a conivência da própria família da “pervertida”, tendo sido ela mesma, a entrevistada, uma das vítimas desse verdadeiro atentado à liberdade e à dignidade humana.   

 


Juliane e Daniel

 

            A dramaturgia, de RAFAEL PRIMOT, é ótima.  Se não fosse ridículo o trocadilho, diria que é “um primot”.  Pronto!  #fui ridículo!  Os diálogos são, na maioria das vezes, curtos, porém muito incisivos, ásperos, ácidos e bem próximos à realidade linguística de cada um dos personagens.  O que não falta é ação e cenas violentas, mas “toleráveis”, que fazem a plateia se envolver emocionalmente com a trama.

            A direção, de DIOGO LIBERANO, é segura e atenta aos limites que cada um dos três personagens deve atingir, para não cair nos clichês que todos conhecemos.  É interessante que se perceba o dedo do diretor quanto a esse aspecto.  A própria personagem B, que procura esconder sua verdadeira identidade, sob uma aparência masculina, mantém toques de romantismo e delicadeza, próprios da mulher, em suas cenas mais íntimas com L.  Com relação a isto, não há nenhuma apelação.  É tudo feito com muita sobriedade e delicadeza. 

            Falemos do elenco:

            Protagonizando o espetáculo, estamos diante de uma das grandes revelações deste ano, no TEATRO, ainda com muitos meses pela frente, para terminar.  Trata-se de AMANDA VIDES VERAS, que faz B.  Guardem bem este nome, mas, antes, deem uma conferida no OI Futuro Flamengo.  A jovem atriz desempenha um trabalho comovente e convincente, o que, para ela, deve ter sido um enorme desafio, muito bem vencido.  Em cena, é perfeita sua atuação e transformação num homem.  Fora do palco, trata-se de uma linda, meiga e gentil mulher.  Nada além do “milagre” do “saber fingir”, que só o TEATRO proporciona às pessoas.  Mas não a todas; apenas às que demonstram talento para isso.

 


Amanda Vides Veras

            DANIEL CHAGAS, em seu primeiro grande trabalho em TEATRO, creio eu (pelo menos, o primeiro de que tenho conhecimento), também executa, com maestria, sua função.  É tão impactante a sua interpretação, que confesso ter tido o ímpeto de subir ao palco para impedir seus maus, ou melhor, péssimos tratos a B.  A partir da cena da revelação da verdadeira identidade da transsexual, eu e acho que todos os outros espectadores compramos a briga de B, assumimos a sua defesa e passamos a odiar J, essas loucuras que o “faz-de-conta’ do TEATRO pode gerar.  Depois, dá até vontade de rir de nós mesmos.  Mas isso só acontece quando os atores são bons e executam seus papéis com talento e muita “verdade”.

            JULIANE TREVISOL é a terceira ponta do triângulo (não amoroso), que também tem uma boa atuação em cena, não se destacando tanto, em função da menor força dramática de sua personagem.  Mesmo assim, a atriz sabe tirar partido do melhor do seu texto, nas cenas que a favorecem, e faz um belo trabalho.



Amanda e Juliane
           

           Um destaque especial, no espetáculo, vai para a bela iluminação, responsabilidade de DANIELA SANCHEZ.  Um primor!  Uma das melhores que vi até agora, na temporada de 2014.

            Também merecem destaque os figurinos e o visagismo, de BRUNO PERLATTO, a trilha sonora original, de DIOGO AHMED PEREIRA e a cenografia, de BRUNELLA PROVIDENTE.  Todos esses elementos contribuem bastante para a beleza plástica do espetáculo.

            UMA VIDA BOA é daqueles projetos que deveriam ser encampados pelas autoridades ligadas à educação e levados aos jovens, em parceria com as escolas, para que estes, com sua força persuasiva, pudessem ajudar na luta contra o preconceito e a favor das minorias, apenas em números; aliás, cada vez mais, crescentes.

 










 

            Um excelente espetáculo, que recomendo e aponto como um dos melhores deste ano, até o presente momento.  Espero que, após o encerramento da temporada, a peça possa se transferir para outros espaços e permanecer, por muito tempo, em cartaz, para que um número maior de pessoas possa assistir a ela.

            E VIVA A DIVERSIDADE!!! 

E VIVA O TEATRO BRASILEIRO!!!  

 


Juliana Trevisol, Daniel Chagas, eu e Amanda Veras Vides

 

 

 

 

 

(FOTOS DA PRODUÇÃO / DIVULGAÇÃO DO ESPETÁCULO E DE MARISA SÁ)

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