quarta-feira, 18 de outubro de 2023

“MEU CORPO ESTÁ AQUI”

ou

(EU TENHO O QUE TE DAR.

E VOCÊ, O QUE TEM

PARA ME DAR?)

 



(UMA INFORMAÇÃO: A sigla "PcD", assim como está grafada, significa "Pessoa com Deficiência". Ela é invariável em gênero e número. Assim, o correto é empregar apenas "a, as PcD".)    


         Recebo, diariamente, convites para assistir a peças de TEATRO. Às vezes, um ou outro se destaca, por conter algo “diferente”, fora do que seja comum, em se tratando de uma montagem teatral.  Quando NEY MOTTA (Assessoria de Imprensa) me encaminhou um “e-mail”, convidando-me, em nome da produção, para assistir a “MEU CORPO ESTÁ AQUI”, em cartaz no Teatro Glaucio Gill (VER SERVIÇO.), eu bem sabia do que se tratava, uma vez que já havia sido contatado por duas queridas pessoas amigas, envolvidas no projeto, as quais haviam me falado, por alto, dele: JULIA SPADACCINI, uma das dramaturgas e diretoras da peça, e PEDRO FERNANDES, um dos seus atores.

 

 


         No corpo da comunicação acima referida, NEY dizia se tratar de uma exibição amorosa da humanidade de um grupo de pessoas que ainda permanece profundamente marginalizado em nossas discussões. Uma peça que pretende influenciar, mobilizar - pessoas e estruturas -, promovendo um importante efeito no olhar e na escuta da sexualidade entre pessoas com deficiência (PcD)”. Sem pôr ou adicionar uma vírgula, que seja, é exatamente isso o que aquelas pessoas têm a nos mostrar.

 

 

         “MEU CORPO ESTÁ AQUI” não é um espetáculo de TEATRO convencional. Que isso fique bem esclarecido! Ainda que sejam quatro atores, todos com algum tipo de “deficiência”, o quarteto deve - E TEM QUE - ser enxergado como um grupo de pessoas a falar de suas experiências pessoais, não como personagens, mas como seres humanos, reais e “diferentes”, porém tão humanos e dignos de respeito e compreensão – NÃO DE PENA – da parte de uma sociedade ainda preconceituosa e “fechada” à empatia, na sua maioria, infelizmente. São quatro vozes, porta-vozes, falando, corajosa e abertamente, sobre seus relacionamentos, seus corpos, seus desejos. Suas falas vão de encontro aos preconceitos e à ignorância que habitam em muitas pessoas.

  

 

         Há uma dramaturgia muito bem costurada, que mescla uma série de depoimentos, coletados da experiência dos quatro artistas, ficcionalizados por JULIA SPADACCINI, também PcD (deficiência auditiva), e CLARA KUTNER, “retratando o jogo entre as pulsões e os obstáculos que se apresentam nas experiências de afeto e sexualidade em corpos com deficiência”. Não me lembro de já ter visto, em TEATRO, semelhante experiência, a qual, de antemão, aplaudo, chancelo e considero de “utilidade pública”. Um tema original e inédito, nos palcos, que se aprofunda na reflexão desses corpos invisibilizados socialmente.

 

 

 Michel Blois, Julia Spadaccini, 

Cláudia Marques e Clara Kutner.

 



 SINOPSE:

“MEU CORPO ESTÁ AQUI” é um espetáculo teatral inédito, baseado nas experiências pessoais de BRUNO RAMOS, HAONÊ THINAR, JULIANA CALDAS e PEDRO FERNANDES, atrizes e atores "PcD" (Pessoas com Deficiência), no qual eles próprios estão em cena, falando, corajosa e abertamente, sobre seus relacionamentos, seus corpos, seus desejos. 

 

 



Ainda é um incomensurável tabu falar em sexo, neste país, principalmente depois de quatro anos de retrocesso (2019 / 2022 = 4 anos cronológicos que equivalem a 40 de atraso, ódio, intransigência e preconceitos.). Quando se trata de abordar a sexualidade das PcD, o prejulgamento se torna mais robusto. Tenho a impressão de que a grande maioria das pessoas acha que essa criaturas não têm vida sexual ativa e, mais ainda QUE HORROR! -, não têm direito a uma. É exatamente nesse sentido que afirmei considerar esta peça como de “utilidade pública”. Só não aprende quem não quiser, porque, de uma forma didática, bem proativa, direta e eficiente, os quatro artistas em cena nos esclarecem sobre a importância de seus corpos e a dinâmica de sua sexualidade. Ser, ou não, um agente no sexo é uma escolha de cada um. Se não for pelos meios usuais, habituais, que o seja por outros, não convencionais, porém, nem por isso, menos válidos, os quais podem levar o indivíduo ao prazer sexual pleno, porque todos têm direito à felicidade, venha ela por este ou aquele vetor.

 



Quem são os quatro seres humanos / atores em cena? BRUNO RAMOS, surdo, não oralizado; HAONÊ THINAR, pessoa amputada; JULIANA CALDAS, que nasceu com nanismo; e PEDRO FERNANDES, que tem paralisia cerebral, com cognitivo preservado, usuário de cadeira de rodas.

 

 




 

Creio não haver a menor dúvida de que “o corpo fala”. E clama por ser “ouvido”. Sobre isso, assim se manifesta CLÁUDIA MARQUES, responsável pela direção de produção e coordenação geral do projeto: “O nosso corpo é um importante veículo de comunicação. É através dele que expressamos nossos desejos, nossas angústias e nossas satisfações. Estar com o corpo presente e pleno é fundamental, para se sentir segura e potente. Seja qual corpo for, de que forma for, de que tamanho for. O corpo é a nossa identidade, a nossa assinatura visível. (...)”. Disse tudo; e mais alguma coisa. Uma verdade inquestionável.

 

 

Julia Spadaccini, Cláudia Marques 

e Clara Kutner.


Já imaginava encontrar, naquele trabalho, muita verdade, pelo que conheço, e admiro, dos textos anteriores de JULIA SPADACCINI, por seu estilo de escrever para o TEATRO, fácil de se entender e agradável de se ouvir, sem “dourar a pílula”, mas confesso que me deparei com algo muito mais vigoroso, visceral do que esperava, para o que, certamente, ela e CLARA KUTNER contaram com a cumplicidade dos quatro artistas. Ninguém economizou coragem e intensidade na construção deste espetáculo. Algumas palavras podem soar como “pesadas”, mas são todas necessárias, ocupando o lugar exato de fala de cada um dos “actantes”. Confesso que me senti bastante constrangido, quando a atriz JULIANA CALDAS, logo nos primeiros minutos da peça, se encarregou de um texto, “picante e extremamente despudorado”, de forma bem “safada”, olhando nos meus olhos, a cerca de dois metros de distância de mim, dizendo o que ela e seu copo poderiam me oferecer. Podem imaginar, não? Não foi, porém, nada desrespeitoso nem direcionado à minha pessoa, particularmente, mas ao espectador que ocupasse a poltrona em que me sentei. Acho que era uma marcação das diretoras. Ou não?! Na verdade, não gosto desse tipo de “interatividade”, mas... Deixa para lá! Poderia ter sido outro assistente, que não se incomodasse, mas fui eu. Que fazer?

 


 

Tudo, absolutamente tudo, o que sai da boca do quarteto foi escrito para ser dito de tal forma a provocar uma profunda reflexão no público. Este, por sua vez, se sente conectado, o tempo todo, com os artistas, por conta das semelhanças que podem existir – e, realmente existem - entre eles e todos nós, as quais são encobertas pelo preconceito e pela falta de conhecimento. “Pessoas com deficiência vivem em um corpo e em uma essência que é viva. Não precisam desfrutar de suas histórias no silêncio, nem ser infantilizadas, em tentativas de apagamento que remontam a concepções culturais e históricas a respeito do que é considerado ‘normal’”. Trecho muito interessante, retirado do “release” da peça.

  



Um detalhe marcante, nesta obra, é que as PcD em cena não se colocam como seres vitimizados; ao contrário, riem de suas próprias “diferenças”, e é possível, ao espectador, dar boas risadas e, até mesmo, gargalhadas em algumas passagens. A da história da “Branca de Neve e os Sete Anões” machistas, na versão de JULIANA CALDAS, por exemplo, é um grande achado das autoras. Não é uma peça “pesada”; é “leve”. E mesmo uma cena, que poderia, talvez, ser “chocante”, de nudez de um dos quatro, de um corpo “não-padrão” (Que bobagem é essa de "padrão"!), é recebida com respeito e atenção pela plateia. É muito bom saber, ter a certeza de que aqueles quatro seres humanos não estão ali expostos como peças que representavam “aberrações” humanas, como em antigos museus de “excentricidades”, como o que se viu nas peças “O Homem Elefante” e “Barnum, o Rei do Show”, por exemplo. 

 


 

Segundo JULIA SPADACCINI, “Precisamos de PcD protagonizando filmes, peças, programas de TV. Especialmente num cenário de amor e sexo. A peça vem para jogar luz, justamente, nessa grande invisibilidade que acomete o corpo com deficiência, seus desejos, amores e sexualidade.”.  E não há como discordar dela, depois de ter assistido ao espetáculo. E CLARA KUTNER, a outra dramaturga, completa: “Penso o 'MEU CORPO ESTÁ AQUI' como uma ‘peça desejo-manifesto’, na qual os atores se misturam, se embolam, celebram seus corpos, com algumas histórias tristes, uma dose alta de ironia e muitas perguntas que não temos como responder. Queremos levantar questões e embaralhar a lógica da eficiência.” Aplaudo as duas, com o maior entusiasmo.

 

 


 

BRUNO RAMOS, HAONÊ THINAR, JULIANA CALDAS e PEDRO FERNANDES talvez nem devessem ter suas participações no espetáculo avaliadas como "interpretações teatrais", uma vez que ali não estão como personagens, mas falando por suas identidades civis, como cidadãos. Por outro lado, ao abrir os seus porões interiores, franqueando-nos a entrada neles, despidos de todo e qualquer pudor, alma aberta e lavada, os quatro se comportam de forma bastante natural, utilizando as técnicas de interpretação que aprenderam em suas formações profissionais. BRUNO, HAONÊ, JULIANA e PEDRO nos brindam com um trabalho que não merece qualquer reprovação, guardadas as limitações naturais que cada um apresenta, o que acaba sendo compensado por outras virtudes artísticas.

  


 

Quantos aos outros elementos que entram numa montagem teatral, além do texto, da direção e do elenco, pouco falarei, a não ser que, de uma forma geral, todos os artistas de criação perceberam que o protagonismo da peça está nas mãos da atuação do elenco e do texto e, da forma mais correta possível, assumiram um posto de “coadjuvantes”, ainda que “de luxo”, cada um dando sua indispensável colaboração ao produto final da encenação.    

 

 

BELI ARAÚJO, por exemplo, responsável pela cenografia, vislumbrou a necessidade de usar, no espaço cênico, apenas cadeiras, para servir aos atores. Ela também assina o figurino, muito simples, trajes do dia a dia, com alguns detalhes especiais que servem a algumas cenas.

  

 

Um dos nossos mais celebrados iluminadores, com muito merecimento, PAULO CESAR MEDEIROS, criou um desenho de luz não tão simples, como o cenário e o figurino, e bem marcante em algumas cenas. A utilização de refletores, ao fundo, voltados para a plateia é excelente, passando a impressão de aproximar mais artistas e público, "empurrando" aqueles na direção deste. Uma variada paleta de cores dá um toque de beleza acentuada a várias cenas. 

 


 


Os quatro em cena não ficam sentados, como pôde parecer, quando falei da cenografia, o que, certamente, tornaria a peça monótona, mas, sim, se movimentam bastante, durante os 60 minutos de duração do espetáculo, obedecendo à boa direção de movimento, de LAURA SAMY.

 

 


 


 FICHA TÉCNICA:

Texto: Julia Spadaccini e Clara Kutner

Pesquisa de Dramaturgia: Marcia Brasil

Colaboração de Texto: Bruno Ramos, Haonê Thinar, Juliana Caldas e Pedro Fernandes

Direção: Clara Kutner e Julia Spadaccini

Diretor Assistente: Michel Blois

 

Elenco: Bruno Ramos, Haonê Thinar, Juliana Caldas e Pedro Fernandes

 

Cenografia: Beli Araújo

Figurino: Beli Araújo

Iluminação: Paulo Cesar Medeiros

Direção de Movimento: Laura Samy

Música: Luciano Câmara

Visagismo: Cora Marinho

Assessoria de Imprensa: Ney Motta

Programação Visual: Felipe Braga

Fotografia: Renato Mangolin

Redes Sociais: Rafael Teixeira

Audiodescrição: Graciela Pozzobom

Intérpretes de Libras: Jadson Abraão e Thamires Alves Ferreira

Direção de Produção e Coordenação Geral do Projeto: Cláudia Marques

Produção: Fabricio Polido

Realização: Fábrica de Eventos

 

 



 SERVIÇO:

Temporada: De 07 a 30 de outubro de 2023.

Local: Teatro Gláucio Gill.

Endereço: Praça Cardeal Arcoverde, s/nº, Copacabana, RJ. (Ao lado da Estação Cardeal Arcoverde, do Metrô Rio).

Dias e Horários: Sábados e segundas-feiras, às 20h; e domingos, às 19h.

Valor dos Ingressos: R$40,00 (inteira) e R$20,00 (meia-entrada).

Horário de Funcionamento das Bilheteria: De segunda a sexta-feira, a partir das 16h, sábado e domingo, a partir das 14h.

Vendas antecipadas online: https://funarj.eleventickets.com

Classificação Indicativa: 16 anos.

Duração: 60 minutos.

Gênero: Teatro Documental.

OBSERVAÇÃO: Durante a temporada, em todas as sessões, haverá intérprete de Libras e acessibilidade para autistas; também uma sessão com áudiodescrição, no dia 23/10.

 


 

 

 


         Este espetáculo merece, e MUITO, ser visto e aplaudido, pelo número maior de pessoas possível, e recomendado, amplamente, pelo que representa de “libertação” para as "PcD". E para a libertação, também, do preconceito e da ignorância dos que não conseguem enxergar essas pessoas como iguais.

  

 


FOTOS: RENATO MANGOLIM.

 

 

GALERIA PARTICULAR:

 

Com Pedro Fernandes.


Com Julia Spadaccini.


 

Com Pedro Fernandes, Suzana Nascimento 

e Alexandre Lino. 

 

 

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