domingo, 24 de outubro de 2021

 

“SUJEITO

A

REBOQUE”

ou

(O “SISTEMA” NOS SUFOCA.)

ou

(QUALQUER UM DE NÓS

PODERÁ SER 

“O PRÓXIMO”.)


(OBSERVAÇÃO: A temporada deverá ser prorrogada até o final de novembro.)


        Com raríssimas e inexplicáveis exceções, todos os que vão a um Teatro, para assistir a uma peça, fazem-no por vontade própria, movidos por algum interesse e, evidentemente, na expectativa de deixar a sala de espetáculo satisfeitos, felizes com o que acabaram de assistir, porque foram lá com o desejo de gostar, de aplaudir. É com esse propósito que sempre vou e, quando a peça corresponde às minhas expectativas, fico feliz; se extrapola, chego ao “estado de graça”, algo indescritível, embora Clarice Lispector tenha chegado próximo (“Quem já conheceu o estado de graça reconhecerá o que vou dizer. Não me refiro à inspiração, que é uma graça especial que, tantas vezes, acontece aos que lidam com arte.- Sugiro que leiam a crônica “Estado de Graça”.). Quando, porém, o espetáculo é ruim, o oposto do que eu esperava ver, os sentimentos de frustração, arrependimento, pena, desolação, raiva e, até mesmo, ódio, e outros semelhantes tomam conta de mim, e não consigo disfarçar.



        Na última 6ª feira, 22 de outubro de 2021, a convite de STELLA STEPHANY, assessora de imprensa (JSPONTES COMUNICAÇÃO), fui ao Teatro PetraGold, Sala Marília Pêra, para assistir a uma montagem que seria feita “on-line”, no que não poderia ser classificada como TEATRO, porém a produção e os envolvidos no projeto optaram por encenar o texto de HERTON GUSTAVO GRATTO presencialmente. E, já que falei no dramaturgo, confesso, com toda a minha sinceridade, que ele era a minha maior motivação para eu querer assistir à peça, uma vez que gosto muito da maioria dos seus textos. “Moléstia” é imbatível, e, agora, este “SUJEITO A REBOQUE”.

        Por total falta de tempo – não é outro o motivo -, esta crítica será mais curta (Espero.), na medida do possível, fugindo, um pouco, às minhas características, dc me dar o direito de dissecar item por item do espetáculo, de dar um mergulho abissal, até atingir o fundo do oceano, porém procurarei fazer uma análise completa, mas nem por isso extensa do espetáculo, em cujo “release” é apresentado como pertencente ao gênero “comédia dramática”. Até certo ponto, considero essa classificação meio equivocada. O público ri? Sim. Mas de nervoso, de tensão, de ódio a um dos dois personagens da trama.   


  

 

 

SINOPSE:

Através de uma história tragicômica, um homem que, ao tentar tirar, do depósito do DETRAN, o seu carro rebocado, acaba embaraçado num labirinto “kafkiano” e absurdo.

A peça reflete sobre a incomunicabilidade e a indiferença, hoje, tão presentes nas relações interpessoais.

Colocando uma lente de aumento da relação humana com a burocracia, a peça nos leva a refletir sobre até que ponto estamos reféns do “sistema”, essa entidade sem rosto nem endereço, que dita as regras a que somos submetidos.

 

 


Vou iniciar minhas considerações sobre a peça, comentando alguns pontos presentes na supra “SINOPSE”.

O “labirinto ‘kafikiano’” existe, sim, porque “habemos um Kafka entre nós”, o jovem e talentoso dramaturgo HERTON GUSTAVO GRATTO. Franz Kafka, um autor nascido na atual República Tcheca, falecido em 1924, autor de romances e contos, como “A Metamorfose" e “O Processo”, por exemplo, considerado, pelos críticos, como um dos escritores mais influentes do século XX, deve estar feliz, no seu túmulo, pelo “discípulo brasileiro”. Da mesma forma, devem estar festejando os autores mais consagrados do “Teatro do Absurdo” (Eugène Ionesco, Samuel Beckett, Arthur Adamov, Harold Pinter, Fernando Arrabal, Jean Genet e Edward Albee, que fazem parte da “diretoria do clubinho dos absurdistas”.). Por favor, não entendam que estou direcionando holofotes demais ao nosso jovem dramaturgo, querendo compará-lo a nenhum desses consagradíssimos autores, contudo, não podem deixar de admitir, os que assistiram ou assistirão à peça, que há um pouquinho deles todos, pitadas ou pílulas, em “SUJEITO A REBOQUE”. Foram fonte, para que HERTON saciasse a sua sede.


                     


Penso que o objetivo do texto de “SUJEITO A REBOQUE” vai além do que, apenas – e já seria muito – propor uma reflexão acerca da “incomunicabilidade e a indiferença, hoje, tão presentes nas relações”. Ele faz uma grave denúncia sobre a falta de empatia, “doença” dos nossos dias, caminhando para uma epidemia - se é que já não pode ser considerada uma -, de falta de amor e respeito ao próximo, e contra a capacidade de um Homem, dito “ser racional”, pôr em prática a racionalidade, característica que o difere dos outros animais, os “irracionais”, os quais, por exemplo, só matam para se  defender e às suas proles ou para matar a fome, além de outras tantas ações positivas, que o Homem não pratica. Não estaria na hora de trocarmos os adjetivos, invertendo-lhes a aplicação?



A “lente de aumento da relação humana com a burocracia”, da qual a “SINOPSE” diz que o autor do texto se utiliza, não me parece um exagero, pois, guardadas as devidas proporções, estamos bem perto das situações “bizarras” que vemos encenadas, a última, em especial. Aliás, já vi casos muito semelhantes serem abordados em telejornais; e, quanto à primeira, eu mesmo vivi algo bem parecido. No que diz respeito a sermos “reféns do ‘sistema’”, não há nada a discutir ou não existem meios para contestar tal nefasta verdade. Nós os somos mesmo. E não dispomos de armas para, pelo menos, tentar lutar contra ele. E, quando tentamos fazê-lo, nadamos contra a corrente e, extremamente exaustos e vencidos, vamos dar à praia.



O “sistema” – perdão pela, talvez, “absurda” comparação – guarda uma certa identidade com o flagelo que vimos enfrentando há quase dois anos, a COVID-19. Em que aspecto? Poderão, os que me leem, já estar querendo me enquadrar como um “absurdista” também – e, talvez, eu o seja -, porém, antes que pensem em me internar num manicômio, direi por que cheguei a tal analogia. Um vírus, algo identificável apenas sob a potência de lentes de aumento, é capaz de fazer milhões de vítimas fatais, mundo afora, sem que quase nada possamos fazer para combatê-lo e vencê-lo; apenas, ainda, conseguimos uma certa defesa, por meio de uma vacina (VIVA O SUS! VIVA A CIÊNCIA! VIVA OS CIENTISTAS!). O “sistema” é um “ser” amorfo e indetectável, até mesmo pelo mais possante telescópio da NASA; só é percebido, sentido, quando atua. E é o tempo todo, em qualquer lugar, em qualquer situação. Um “ser do mal, criado pelo demônio – só pode ser - para infernizar a vida dos humanoides, até, se possível, levá-los às raias da loucura ou a responder a ele com reações extremamente agressivas, chegando à morte, por assassinato ou suicídio, em certos casos. Um filme de 1972, baseado num fato real -isso é muito importante -, “Um Dia de Cão”, estrelando Al Pacino (Sonny) e John Cazale (Sal) ilustra bem o que acabo de dizer.



E olha só como não consigo cumprir minhas promessas! Já estamos diante de um “textão”, e falta muito a ser dito ainda. Vou tentar finalizar as considerações sobre o texto, que considero impecável. HERTON utiliza diálogos bem ágeis, o que vai propiciar bastante dinamismo às ações. Usa um vocabulário bem característico dos dois personagens, sendo direto e cruel, por vezes, mas realista ao extremo, em certas frases. Mas isso é totalmente necessário. Não sei se chega a chocar o espectador, mas incomoda-o, com certeza. O autor vai criando situações de embate, que fazem com que a plateia, mesmo sem querer, tome partido do personagem considerado uma “vítima” do tal maldito “sistema”, este representado por um burocrata, que tem um paralelepípedo no lugar do coração, por “fidelidade às leis, ao que preconizam os ditames da lei”. É incrível como o dramaturgo leva os espectadores à proximidade, não de um dia, mas de um momento de fúria, como vontade de subir ao palco e espancar o intransigente funcionário burocrata, por total empatia com relação a um homem que paga por um erro não cometido e por uma distração.



A peça é curta, dura 50 minutos E não precisava de mais que isso. Na metade, porém, quando, depois de muito sofrer, o pobre do cidadão honesto e contribuinte, consegue reaver seu automóvel, que fora, erradamente, rebocado, pelo fato de o motorista, ter estacionado num local onde não havia uma placa que indicasse ser um ponto proibido para estacionamento (Isso já me ocorreu.), eu olhei para o relógio e me fiz, internamente, duas perguntas: Mas a peça, apesar de boa, só dura 30 minutos, aproximadamente? Se não acabou, o que o HERTON vai aprontar, o que ele pode fazer, para “dar linha a essa pipa”? E não é que o espetáculo continua e o dramaturgo nos põe diante de uma situação totalmente esdrúxula, pior, ainda, que a primeira; macabra, irracional, incompreensível, revoltante, mas que já soube ter ocorrido, várias vezes, na vida real?!



Chega de falar do texto e passemos a voltar nossos aplausos à ótima direção de EMILIO ORCIOLLO NETTO, mais conhecido como um bom ator do que como diretor, atividade na qual também demonstra talento. EMILIO conseguiu extrair o melhor de cada um dos dois atores, levando-os a despertar, no público, comiseração e ódio, no que cada um dos personagens traz de suas características pessoais, não deixando que o espetáculo despencasse para uma comédia rasgada ou para um melodrama. Ele dosa as duas coisas e atinge o tom certo, para fazer com que tudo o que o autor deseja que chegue aos espectadores aconteça da forma mais natural possível. O Teatro do Absurdo exige isso: que o improvável e o “estranho” sejam ditos e executados com a maior naturalidade possível. É bom, também, falar que, sob sua batuta, não há, no espetáculo, espaços para “barrigas”. Dessa forma, consegue dinamizar bastante as ações, com marcações perfeitas, levando as pessoas a não ficarem quietas, acomodadas, inertes, em suas poltronas.



De que adianta um texto de primeira qualidade e um diretor competente, que soube decodificar, nas palavras do dramaturgo, todas as mensagens que este queria passar e traduziu-as num belo trabalho de condução dos atores, se estes não conseguem acompanhar toda essa qualidade e fazer a coisa certa? Acho que já deu para perceber que o meu entusiasmo por esta montagem se concentra, principalmente, nos dois elementos já analisados e no trabalho dos dois ótimos atores, LEONARDO PAES LEME e GUSTAVO NOVAES, dois profissionais cujos nomes podem representar pouco, para o público amante do TEATRO, mas cujos trabalhos merecem ser conhecidos, e reconhecidos, uma vez que são dois profissionais do maior gabarito.

A idealização do projeto é de JOÃO CAMPANY.



LEONARDO é mais um ator das telas (cinema e TV) do que das tábuas. Raríssimos trabalhos dele eu assisti no TEATRO e, como não sou chegado às telas (todas), confesso que não me lembrava bem se suas atuações nos palcos, porém digo duas coisas: que ele deveria se dedicar mais ao TEATRO e que, de agora em diante, procurarei não perder uma peça em que ele atue. Em “SUJEITO A REBOQUE”, ele faz, duplamente, a “vítima do sistema”. E o faz muito bem, convence o público de seu drama pessoal.

Quanto a GUSTAVO NOVAES, um ator paulistano, também se trata de um profissional que se dedica muito mais ao cinema e à TV, em cerca de 30 anos de carreira, motivos pelos quais, a não ser que esteja sendo traído por minha memória, eu nunca o vi ocupando um palco de TEATRO e que foi, para mim, uma gratíssima surpresa. Ele interpreta o “representante do sistema” e, como não poderia deixar de ser, para que isso incomode bastante o espectador e o tire de sua zona de conforto, faz uso de muito tom de deboche, ironia, escárnio, insensibilidade, registados na sua voz e nas máscaras faciais e inflexões das quais faz uso, o tempo todo, sem deixar de falar do texto, é claro. Que ódio do personagem! Também não quero perder mais nenhum trabalho de palco do GUSTAVO.



Nenhum deles tem nome (Acho que a "vítima" se chama ANTAR, mas isso, praticamente, não é notado pelo público.), na peça, pois representam duas coletividades: a dos homens de bem, no melhor sentido da palavra, e a dos canalhas, idem. O personagem de LEONARDO, como já afirmei é a vítima, o oprimido, e o de GUSTAVO é a personificação do “sistema”, o opressor.

A peça se passa em dois espaços: uma repartição do DETRAN e o IML (Instituto Médico Legal), mas o cenário, a cara da burocracia, de FERNANDA TEIXEIRA, é o mesmo, pois ambos guardam relações de semelhança. São dois “espaços burocráticos” (ou “burrocráticos”), com mesa, cadeiras (para os requerentes), arquivos, muitos papéis e carimbos... Simples, porém perfeitamente adaptado à proposta do espetáculo.



Os figurinos, de MARIANA BARRETO ORCIOLLO, esposa de EMILIO, discretos e de acordo com os personagens, não apresentam nada de especial a ser comentado, a não ser o fato de o do funcionário burocrata, seja no DETRAN, seja no IML, permanecer o mesmo, o que eu entendi como sendo uma espécie de “característica desse tipo de gente”. Será que “viajei na maionese”? Os figurinos do personagem de LEONARDO sofrem pequenas modificações.

Nada de especial a comentar sobre a iluminação, assinada por LUCIANO XAVIER, a não ser que ela é correta e bem aplicada a cada cena. Uma análise muito superficial, não é mesmo? Concordo! Talvez porque eu tenha me ligado tanto aos outros elementos (Falha minha!), que deixei de prestar a devida atenção a este importante elemento, numa montagem teatral, pelo que me penitencio.



 

 

FICHA TÉCNICA:

 

Texto: Herton Gustavo Gratto

Idealização: João Campany

Direção: Emilio Orciollo Netto

 

Elenco: Leonardo Paes Leme e Gustavo Novaes

 

Cenografia: Fernanda Teixeira

Figurino: Mariana Barretto Orciollo

Iluminação: Luciano Xavier

Direção de Movimento: Úrsula Mandina

Trilha Sonora: Plínio Profeta

Fotos: Cristina Granato e Guilherme Maia

Produção: Leonardo Paes Leme

Direção de Produção: Maria Alice Silvério

Assessoria de Imprensa: JSPontes Comunicação – João Pontes e Stella Stephany

 

 




 

SERVIÇO:

 

Local: Teatro PetraGold (Sala Marília Pêra)

Endereço: Rua Conde de Bernadotte, 26 – Leblon – Rio de Janeiro - RJ

Telefone: (21) 2529-7700

Dias e Horários: Todas as 6ªs feiras de outubro e novembro, às 20h

Valor do ingresso: R$60,00 (inteira) e R$30,00 (meia entrada)

Vendas pelo SYMPLA ou na bilheteria do Teatro (até uma hora de antecedência do dia da sessão)

Capacidade Presencial: 117 espectadores (em obediência ao distanciamento social)

Indicação Etária: Livre

Duração: 50 minutos

Gênero: Comédia Dramática

 

 



Não tenho a menor vergonha, o menor pudor, em dizer que fui ao Teatro PetraGold com uma expectativa “x”, não muito alta, com não muita empolgação, e saí de lá com a certeza de que aquele “x” se multiplicou a uma elevada potência, em função de tudo o que já disse sobre esta montagem, o que me faz recomendá-la, na certeza de que aqueles que aceitarem a minha recomendação não terão motivos para arrependimento. Muito pelo contrário, apesar de eu já estar avisando que esqueçam um pouco a comédia e se preparem para violentos golpes na boca do estômago, dos quais, muitas vezes, carecemos, a fim de que acordemos para a realidade e nos organizemos, para lutar contra e destruir esse maldito “sistema”.


(Foto: Gilberto Bartholo)


(Foto: Gilberto Bartholo)



(Os atores e o diretor.)



FOTOS: CRISTINA GRANATO

e

GUILHERME MAIA.




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Um comentário:

  1. Parabéns pelo texto Gilberto. Sinto morar longe nessas horas, gostaria de assistir o espetáculo. 😊

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