“UM JULGAMENTO –
DEPOIS DO INIMIGO
DO POVO”
ou
(OBRA-PRIMA
RESUME TUDO.)
Poucas
vezes, aguardei, com tanta ansiedade, a estreia de um espetáculo de TEATRO,
como aconteceu com “UM JULGAMENTO – DEPOIS DO INIMIGO DO POVO”, que,
para a tristeza de milhares de pessoas, acabou de cumprir, no 03 de
novembro de 2025, uma pequeníssima temporada, de apenas três semanas,
no Teatro II do CCBB – Rio de Janeiro. Um problema técnico no meu
computador deixou-me sem poder escrever minhas críticas por uma semana.
Poderia, até mesmo, para alguns, não fazer sentido eu escrever uma crítica a um
espetáculo já fora de cartaz, entretanto jamais me perdoaria, se não reservasse
um bom tempo para escrever estas palavras, pelo simples fato de ter sido um
dos melhores espetáculos a que já assisti em toda a minha vida de “rato de
TEATRO”, de mais de 60 anos. Uma OBRA-PRIMA resume tudo!
Este espetáculo
é das coisas mais importantes que já desfilaram pelo Centro Cultural
Banco do Brasil do Rio de Janeiro (CCBB – RJ), nos seus 36 anos
de existência, e chegou a provocar cenas esdrúxulas e reprováveis, do lado de
fora do Teatro, com espectadores revoltados, por não terem
conseguido adquirir seus ingressos, já que estes se esgotavam, tão logo eram
colocados à venda, no primeiro dia da semana.
A peça
foi baseada num dos grandes sucessos do dramaturgo norueguês ENRIK IBSEN,
um dos fundadores do TEATRO realista moderno. Antes de iniciar os
comentários críticos sobre o espetáculo em tela, não vejo como prosseguir nestes
escritos, sem, antes, falar um pouco sobre o autor e a obra que deu origem a
esta, apoiando-me em informações extraídas da Wikipédia, checadas,
minuciosamente, por mim, e com adaptações.
HENRIK IBSEN (1828-1906),
dramaturgo norueguês, é considerado um dos principais autores do chamado drama
realista moderno. “Um Inimigo do Povo” retrata
o conflito existente entre o individual e o coletivo, mostrando
de que forma a população de uma pequena cidade-balneário da Noruega,
transforma o médico local, de cidadão honrado em um inimigo do povo, por conta
de suas convicções a respeito da qualidade das águas que serviam aos banhos
públicos, fonte de riqueza e de sustento para toda a cidade.
A história, em 5 atos, seguindo uma estrutura típica do drama
realista do final do século XIX, que, por sua vez, herdara tal
divisão do TEATRO do neoclassicismo, passa-se numa cidade do
interior da Noruega, cuja maior fonte de renda advém de sua Estação
Balneária. O Dr. Stockmann inquieta-se com as doenças que
turistas e concidadãos apresentam e resolve investigar a água da cidade. Para
sua surpresa, apercebe-se de que está poluída, aparentemente devido a
lançamentos de “lixívia”, contendo impurezas dos curtumes da
cidade. Homem da ciência, sente-se no dever de levar a verdade ao povo, mas a
sua denúncia representará o fechamento do balneário por dois anos, além de
provocar uma suspeição geral sobre as suas qualidades, mesmo depois das obras
necessárias para resolver a questão. Isso causaria um transtorno para a cidade,
que deixaria de lucrar com o turismo. Não denunciar o fato, contudo, vai contra
os ideais éticos de Stockmann.
A insistência do Dr. Stockmann, em fazer prevalecer a verdade,
torna-o “persona non grata” para a população, sobretudo ao
defender a ideia de que os valores daquela cidade estão sustentados sobre a
mentira e de que o povo não tem a razão, ou seja, a maioria não tem o
monopólio da verdade. Ele se torna, assim, um inimigo do povo e
conta apenas com o apoio de sua família e de alguns poucos membros da
comunidade, que passam a sofrer represálias por conta disso. A convicção do
médico, em relação à verdade, contudo, faz com que ele se mantenha firme em
seus propósitos até o fim, mesmo sabendo que seu relevante papel naquela
comunidade jamais seria retomado.
“UM INIMIGO DO POVO” foi
escrita em 1882 e tem sido considerada, por muitos, como a peça
de IBSEN mais polêmica e direta. Com uma grande coragem, ele apresenta
um “desmentido integral” de toda a sua obra anterior, que
defendera a importância da “verdade absoluta”. Na peça, IBSEN
demonstra a capacidade de ver e analisar os dois lados da questão,
colocando em dúvida a verdade incondicional, que tanto defendera em
obras passadas, e delineando um personagem dotado de traços idealistas.
Passemos à SINOPSE de “UM JULGAMENTO – DEPOIS DO INIMIGO DO POVO”:
SINOPSE:
Inspirada no clássico de HENRIK IBSEN, “Um Inimigo do Povo”,
a peça acompanha o médico e cientista Thomas Stockmann (WAGNER
MOURA), que é desacreditado, por denunciar a contaminação das águas de um
balneário que sustenta a economia local, dependente do turismo.
Ao tentar alertar as autoridades, para que protejam a população e os
turistas que frequentam o balneário contaminado, ele vê suas intenções fracassarem
e acaba condenado, como “Um Inimigo do
Povo”, acusado de querer prejudicar, intencional economicamente, a cidade e de
ignorar a vontade da maioria.
A denúncia é vista como um ataque ao progresso da cidade.
O espetáculo, de forma magnífica, transporta a trama para o Brasil
de 2025.
Pessoas do público, formando um "júri", são convidadas a subir ao palco e decidir se ele é o verdadeiro “inimigo do povo”, promovendo reflexões sobre ética, poder e a verdade na sociedade contemporânea.
“UM JULGAMENTO...” é fruto de
uma “gestação em dois ventres”, desenvolvida, durante dois anos, pela diretora
CHRISTIANE JATAHY e o ator WAGNER MOURA, os quais pesquisaram
diversos textos, com o objetivo de criar um trabalho juntos. Movidos pela
admiração mútua e pelo desejo comum de abordar temas que dialogassem de forma
profunda com a realidade atual, chegaram à escolha de “UM
INIMIGO DO POVO”, uma magnífica ideia, extremamente bem
realizada. Os dois optaram por uma versão da peça original,
voltada apenas para um julgamento diferente, sem juízes nem advogados, em
que os personagens se acusam e se defendem mutuamente, contando com a
participação de alguns espectadores, sorteados em cada plateia, para darem os
seus votos. UMA IDEIA GENIAL!!!
CHRISTIANE
JATAHY, sob a minha óptica, é uma das
mais inquietas, criativas e geniais diretoras do TEATRO brasileiro, com
uma vitoriosa e premiada carreira, no Brasil e no exterior, e tem
uma extensa pesquisa em adaptações de clássicos para o TEATRO, como “Julia”, baseada em “Senhorita Julia”, de Strindberg“; “E Se Elas Fossem Para
Moscou?”, a partir da obra "As Três Irmãs", de Anton Tchekhov; "A Floresta Que Anda", uma livre adaptação
de "Macbeth", de Shakespeare; “Nossa Odisseia”, a partir da "Odisseia", de Homero; e, ainda, do bardo inglês, seu
clássico “Hamlet”. Uma de suas principais digitais é amalgamar, de
forma genial, em seus trabalhos de direção, variadas
linguagens: TEATRO, cinema, audiovisual,
documentário, videoinstalação..., sempre com ideias
originais e criativas, como aplicou nesta direção, que considero
sua OBRA-PRIMA, dos seus espetáculos a que assisti.
Um dos
aspectos que mais fizeram com que eu me apaixonasse por esta montagem é a
incrível ideia de criar um texto original, que começasse alguns
anos depois de onde a peça de IBSEN termina. Aqui, o Dr. Thomas
Stockmann é, novamente, julgado, nos dias atuais. Esse
detalhe é incrivelmente pertinente, visto que os temas centrais da peça são
universais e, acima de tudo, hodiernos. Basta voltar os olhos para o Brasil
de 2019 até os dias de hoje. Um século atrás, IBSEN já abordava
problemas que, hoje, prejudicam, frontalmente, as pessoas, como verdade,
“fake news”, valor e importância da ciência, democracia,
ecologia, ética e até o cancelamento,
levantando o dilema entre o imperativo moral e o capital.
Entre outras coisas, esta produção
joga luzes sobre a lógica dos tribunais (É bastante curioso
o resultado dos julgamentos, a cada sessão.), ao trazer o protagonista
de IBSEN para o ano de 2025, em busca de uma
reparação. Ele quer recuperar sua dignidade e, diante de um novo
“júri”, submete-se a um novo veredito.
Tudo o que está reunido no palco - todos os elementos que entraram na montagem desta peça - é merecedor de estrondosos
aplausos. Confesso que tive que conter o meu intenso desejo de, mais de uma
vez, aplaudir em cena aberta, para não atrapalhar a concentração dos atores, em
algumas cenas profundamente impactantes e interpretadas com a maior potência,
em termos de verdade cênica, por parte do trio de atores, como, principalmente, o momento em que o médico e o irmão vão às vias de fato.
Como foi gratificante poder ver e
aplaudir, à farta, o estupendo talento de WAGNER MOURA, que retorna aos
palcos, após 16 anos, dedicado ao audiovisual, linguagem na qual
é um campeão de prêmios, em filmes e produções para a TV e o “streaming”. A última vez em que o aplaudi muito, num palco, foi em 2008, ao interpretar o protagonista de "Hamlet", numa audaciosa montagem do mestre e inesquecível Aderbal Freire-Filho, no Teatro Casa Grande, Rio de Janeiro. A naturalidade e a intensidade com que o ator se joga na construção de seu
personagem é impressionante e emocionante. Que orgulho desse artista!
Os dois companheiros de cena de WAGNER,
DANILO GRANGHEIA e JULIA BERNAT, acompanham o trabalho do colega,
em termos de qualidade artística e visceralidade. DANILO interpreta o
personagem Peter Stockmann, irmão do protagonista, ex-prefeito da
cidade e representante das autoridades locais. O que se inicia como um
julgamento transforma-se em uma disputa familiar, revelando os conflitos por
trás da rivalidade entre os irmãos. Admirador antigo dos trabalhos do ator, a partir
desta peça, vejo ampliada a minha valorização. Trabalho impecável do ator. JULIA, uma ótima atriz, que
trabalha sob a direção de CHRIS desde 2001,
é uma intérprete de muitas possibilidades e defende, com unhas e dentes, sua
personagem, Petra Stockmann, filha do Dr. Stockman,
a qual não mede esforços para exigir uma retratação pública, com relação à
condenação do pai, por sua atitude ética. Verdade pura na personagem.
O elenco também conta
com participações, em audiovisuais, de Marjorie Estiano (esposa do
protagonista), Jonas Bloch (sogro), Tatiana
Henrique (cientista) e os meninos Salvador e José Moura (filhos
de Thomas Stockmann).
No que diz respeito aos artistas
de criação que contribuíram para esta OBRA-PRIMA, realço
a cenografia e a iluminação, assinadas por THOMAS
WALGRAVE, conceituado cenógrafo belga; a fotografia do
filme, obra de PAULO CAMACHO; o figurino, criado
por MARINA FRANCO; e o desenvolvimento de vídeo e projeção,
a cargo de JULIO PARENTE. A coordenação de produção é de HENRIQUE
MARIANO.
Uma interessante novidade: Em cada
cidade, um ator e uma atriz locais atuam como "coordenadores do júri",
conduzindo as regras do julgamento e intermediando o diálogo entre este e
personagens, sujeitos a interessantes improvisações, que funcionam com a maior
realidade. No Rio de Janeiro, JULIANA FRANÇA e STELLA
RABELLO exercem tal função. Na sessão em que estive presente, no dia 26
de outubro, um domingo, JULIANA fez essa ponte.
Curioso, e interessante também é que o
desfecho muda a cada apresentação, de acordo com o veredito do público. O mesmo
pode ser dito sobre a reação da plateia a esse veredito, projetado no palco. Mas a
pergunta permanece: THOMAS STOCKMANN É UM INIMIGO DO POVO? Para mim, NÃO!!!
Qualquer espectador atento consegue
enxergar a poluição das águas como uma magnífica metáfora,
para denunciar a “sujeira” na estrutura social daquela
cidade, em vários setores: no governo, na imprensa, no comércio e na sociedade
em geral, como ocorre até hoje, em qualquer parte do planeta.
FICHA
TÉCNICA:
UM PROJETO DE CHRISTIANE JATAHY E
WAGNER MOURA
Texto: Christiane Jatahy, Lucas Paraizo e Wagner Moura
Concepção e Direção Christiane Jatahy
Elenco: Wagner Moura, Danilo Grangheia e Julia Bernat
Participação especial no filme: Marjorie Estiano
No filme: Jonas Bloch, Salvador Moura, Antonio Falcão e Antonio Rabello
Participação “on-line”: Tatiana Henrique
Cenografia, Iluminação e Colaboração Artística: Thomas Walgrave
Figurinos: Marina Franco
Direção de Fotografia e Câmera: Paulo Camacho
Criação Sistema de Vídeo: Julio Parente
Desenho de Som e Mixagem: Pedro
Vituri
Coordenador de Produção: Henrique Mariano
Assessoria de Impensa: Factoria (Daniella Cavalcanti)
Fotos: Caio Lírio
Produção: Axis Produções
Patrocínio: Banco do Brasil
Realização: Centro Cultural Banco
do Brasil
Esta peça tem grande impacto no palco, sobre o público, constituindo-se em uma “declaração de guerra do individualista à sociedade”. Apesar do pessimismo social, deixa antever, porém, uma vaga esperança da melhoria dos indivíduos e das instituições.
Por oportuno, faz-se necessário dizer que,
por motivos mais que óbvios, deixo de publicar o SERVIÇO da peça,
a qual, infelizmente, parece não ter a menor possibilidade de
voltar ao cartaz, por aqui ou em qualquer outra parte do país, dados os
compromissos, que não são poucos, assumidos WAGNER MOURA, que,
inclusive, está cotado para uma indicação e premiação, como Melhor Ator,
na próxima edição do “Oscar”, com o filme “O Agente Secreto”.
Estivesse ainda em cartaz a peça, e eu não titubearia em REMOMENDÁ-LA,
COM TODAS AS MINHAS FORÇAS E
ME CANDIDATAR A ASSISTIR A ELA MAIS DE UMA VEZ.
FOTOS: CAIO LÍRIO.
É preciso ir ao TEATRO, ocupar todas as salas de espetáculo, visto que a arte educa e
constrói, sempre; e salva. Faz-se necessário resistir sempre mais. Compartilhem esta crítica,
para que, juntos, possamos divulgar o que há de melhor no TEATRO BRASILEIRO!
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