“HOMENS PINK”
ou
(UM JUSTO
TRIBUTO A NOVE CORAJOSOS
DESBRAVADORES.)
ou
(LGBTs’ 60 +.)
O “Festival de Curitiba”, a
cada ano, mais se consolida como um evento diversificado e democrático, que
vive abrindo espaço para as minorias e/ou segmentos da sociedade que lutam,
bravamente, para serem reconhecidos como células de uma sociedade que, muitas
vezes, faz questão de não enxergar à sua volta ou que, quando o faz, reage de
forma preconceituosa. Além de abraçar espetáculos com elencos formados por
negros ou por atores que desfraldam a bandeira da causa “LGBTQUIAPN+”, nesta 33ª
edição, o “Festival” agregou, à sua programação, tanto na mostra principal
“Lúcia
Camargo”, como nas paralelas, espetáculos centrados no etarismo,
peças representadas por artistas da terceira idade. Assim foi com “Bom
Dia, Eternidade”, “A Velocidade da Luz” e “HOMENS PINK”, todos com elencos acima
dos 60 anos de idade, sendo o último um monólogo que mergulha no
universo dos homens gays, de sexagenários para cima.
O projeto “Homens
Pink” é uma realização da “La
Vaca Companhia de Artes Cênicas”, fundada em 2008, do qual fazem parte um filme documentário, dirigido por RENATO TURNES, realizado em coprodução
com a Vinil Filmes; uma “performance
documental”, solo do artista; e uma peça, também um solo, este o espetáculo
a que assisti no “Festival de
Curitiba”.
Quanto ao filme, assisti a ele em 2020
ou 2021, não me lembro bem,
durante a pandemia de COVID-19,
e confesso que não me agradou muito; ou quase nada. Hoje, depois de ter
assistido à peça, questiono-me, achando que, quando o filme chegou até mim, eu
já estava farto de tanto ficar em casa, com os olhos fixados nas telas. Pode isso
ter sido um forte motivo para eu não ter gostado do documentário.
O espetáculo esteve em cartaz no Rio de Janeiro, após o horror da
pandemia, mas confesso que, por não ter gostado do filme, não me interessei em
assistir à peça. Quiseram o destino e os “DEUSES
DO TEATRO” que eu tivesse a oportunidade de conferir a obra teatral no
palco do Teatro José Maria Santos,
na capital paranaense. E o melhor de tudo: ter gostado bastante do que vi, a
ponto de dedicar uma boa parte do meu tempo a escrever esta crítica.
SINOPSE:
“HOMENS
PINK” é um espetáculo documental, um solo, criado a partir dos depoimentos de um
grupo de senhores gays.
Infâncias fora da norma, juventudes à sombra
do regime militar, o fervo como resistência, a devastação da AIDS,
a passagem do tempo, sob o ponto de vista dos sobreviventes.
Memórias ameaçadas de apagamento, registradas
em documentos, objetos, fotos e vídeos de acervos particulares, que se misturam
às lembranças do ator RENATO TURNES
e compõem um espetáculo que celebra o orgulho das ancestralidades dissidentes.
Não se trata de um espetáculo muito
acima da medida de um “sarrafo
considerado normal”, nada de “pirotecnias
cênicas”, entretanto deve ser visto por todos, velhos e novos, homens e
mulheres, gays ou não, como um documento da realidade de pessoas acima dos 60 anos de idade, em plena atividade
laboral e sexual – Por que não?” -,
lutando, duplamente, contra o preconceito e, ainda, na esperança do direito de
serem felizes, aceitos e respeitados como cidadão, que são. A dramaturgia, de
RENATO TURNES, foi baseada nas próprias vivências e lembranças do autor, e
ator e nos depoimentos, verdadeiras pulsantes entrevistas, concedidas por nove senhores gays, ouvidos pelo dramaturgo, nas cidades de Florianópolis e São
Paulo. São eles: Carlos Eduardo Valente,
Celso Curi, José Ronaldo, Julio Rosa, Eduardo Fraga, Luis
Baron, Tony Alano, Paulinho Gouvêa e
Wladimir Soares. Eles falam dos “primeiros
desejos; o fervo da juventude, num país sob a ditadura militar; a devastação da
AIDS; a festa como território de resistência... O envelhecer do homem gay,
celebrado nas vozes de orgulhosos sobreviventes”.
TURNES não precisou nem de uma hora, para
dizer a que veio: apresentar uma obra teatral que celebra o orgulho da
ancestralidade LGBTQIAPN+, a qual, de forma corajosa e, até mesmo,
desafiadora, se manteve, e ainda se mantém, a grande maior parte de suas vidas,
“out
of the closet” (“fora do armário”). É um espetáculo que se propõe a atualizar
memórias de resistência.
A ideia da realização do projeto partiu
de uma observação do autor/diretor/ator, o idealizador
do projeto: Ele percebeu que homens gays que povoarem a sua época de “adolescente
viado” passaram a “não existir”, ou seja, ficaram esquecidos,
no tempo, numa espécie de “cancelamento”, pelas pessoas em
geral, inclusive por membros da comunidade gay, após o advento das AIDS,
que ceifou tantas vidas preciosas. Chamou-lhe a atenção a existência, já
naquela época, de “uma geração mais velha que já era conectada com o universo LGBTQIAPN+.
Eles sabiam as melhores músicas, tinham mais conhecimento da moda, eram um
modelo para nós mais jovens. Com o passar dos anos, comecei a questionar por
onde andavam essas pessoas, e iniciaram-se os questionamentos sobre o processo
de envelhecimento e invisibilidade. A questão de não se sentir mais confortável
em certos ambientes. Assim como toda a sociedade, esta comunidade também é
atingida por não estar mais nos padrões de beleza e consumo.”, nas palavras de
RENATO TURNES, em entrevista ao jornalista Sandro Moser.
Pelo que vi no palco,
não percebi qualquer objetivo de vitimização. Pelo contrário, o
espetáculo, ainda que apresente relatos recheados de dor e tristeza, também tem
seus momentos de humor e é uma celebração, uma devida reverência ao destemidos
que vieram antes, uma luz sobre a ancestralidade gay. Os entrevistados e RENATO
riem de si mesmos. E, quando rimos de nós mesmos, é sinal de que estamos no caminho
certo.
Há muito realismo e
verdade em tudo o que é dito na peça, que se inicia com o ator exibindo fotos
dos homens entrevistados, sob um interessante efeito de luz. A propósito, aqueles
homens se dispuseram a colocar à disposição da montagem fotos, fitas VHS e objetos
de seus acervos pessoais, para ilustrar a encenação.
É muito bom o texto, descomplicado e direto, de RENATO TURNES, que
deixa bem claro quão difícil e sofrido é, ainda nos tempos de hoje, ser um “homem velho gay”, visto em muitos casos,
creio que para a maioria deles, como “uma sentença de
invisibilidade e solidão”. Nem mesmo no meio de seus pares gays mais novos,
conseguem, muitas vezes, exercer sua cidadania e protagonismo. Um apagamento
dentro do próprio gueto. Mas tudo isso é abordado com muita sensibilidade e bom
humor pelo dramaturgo. Aqueles homens
“ousaram
viver, plenamente, em tempos de repressão, enfrentando a ditadura militar e,
depois, a devastação causada pela epidemia de AIDS nos anos 1980. Uma
resistência marcada tanto pela luta quanto pela celebração” merece
estar num palco de TEATRO, acrescento eu.
O
mais importante, na peça, é o texto, é transmitir o que é dito e o que pode, e
deve, ser depreendido, nas entrelinhas. Estamos diante de uma produção um tanto
franciscana, em termos de elementos cênicos, mas, de certa forma, desnecessários
mesmo. O figurino é simples, mas funciona muito bem, e o cenário
se resume a uma cadeira e uma espécie de cabideiro, ou arara, que expõe peças
de figurino e adereços usados nas cenas. Gostei muito do desenho de luz.
Todos
os relatos são interessantíssimos, mas há um, em especial, desde quando foi
lembrado durante a entrevista coletiva, da qual participei, concedida por RENATO TURNES. Trata-se da história
de Julio
Rosa, o qual, aos 13 anos de idade, foi expulso de
casa pelo pai e, indo viver nas ruas, acabou sendo adotado por uma travesti,
que o protegeu e ofereceu-lhe estudo, não permitindo que ele caísse na
prostituição e contribuiu para que o rapaz se tornasse um cabelereiro respeitado,
profissão que exerce até hoje, perto de se tornar um septuagenário.
Dispenso
qualquer outro comentário, a respeito da interpretação de RENATO TURNES, além de que ela é muito
correta, verdadeira e, por isso mesmo, convincente.
FICHA TÉCNICA:
Dramaturgia: Renato Turnes
Direção Artística: Renato Turnes
Interpretação: Renato Turnes
Assistência de Criação: Karin Serafin
Cenário: (Não divulgado.)
Figurinos e Máscara: Karin Serafin
Iluminação e Projeções: Hedra Rockenbach
Edição de Vídeos: Marco Martins
Imagens VHS: Carlos Eduardo
Valente e Dominique Fretin
Trilha Sonora Original: Hedra Rockenbach
Arte Gráfica: Daniel Olivetto
Fotos: Maringas Maciel (e outras coletadas na internet)
Produção: Milena Moraes
Realização: La Vaca Companhia de
Artes Cênicas
Artistas provocadores: Anderson do Carmo, Vicente Concilio, Fabio
Hostert e Max Reinert (A partir das memórias de: Carlos Eduardo Valente, Celso Curi, José Ronaldo, Julio Rosa, Eduardo
Fraga, Luis Baron, Tony Alano, Paulinho Gouvêa e Wladimir Soares. Acervos
pessoais, gentilmente, cedidos pelos entrevistados.)
Apoio: Rumos Itaú
Cultural e SESC
Aplaudo
o RENATO TURNES dramaturgo, bem como ao diretor
e ator,
e, a julgar pela maneira, carinhosa e respeitosa, como o público recebeu, e recebe,
o espetáculo, em todas sessões esgotadas, acredito que seu objetivo foi
totalmente alcançado: sensibilizar o público gay ou não do tributo que todos os
nove entrevistados merecem. E VIVA O TEATRO! E
VIVA A COMUNIDADE LGBTQUIAPN+ QUE FAZ TEATRO E VIVE DELE, COM MUITO SUOR E
DEDICAÇÃO!
(Foto: Annelize Tozetto, durante entrevista coletiva.)
FOTOS: MARINGAS MACIEL
(E outras coletadas na internet.)
É
preciso ir ao TEATRO, ocupar todas as salas de espetáculo, visto que a arte educa e
constrói, sempre; e salva. Faz-se necessário resistir sempre mais. Compartilhem esta crítica,
para que, juntos, possamos divulgar o que há de melhor no TEATRO brasileiro!
Nenhum comentário:
Postar um comentário