terça-feira, 24 de outubro de 2017


CURRAL GRANDE
 

(AMADURECIMENTO

A OLHOS VISTOS.

ou

EU É QUE MUDEI?)
 
 

 



            Acontece, com relativa frequência, de eu assistir a um espetáculo num dia não muito propício a nem sair de casa. Ocorre com todo mundo, creio eu. A probabilidade de não gostar ou de gostar pouco de um espetáculo teatral, nessa situação, é muito grande, como ocorre a qualquer pessoa. Eu sou humano, graças a Deus.

Quando isso acontece, procuro assistir, novamente, à peça, a não ser que ela seja um fracasso total, daquelas que não devem ser recomendadas nem ao pior inimigo, daqueles equívocos sem retorno. Faço isso, para ratificar ou retificar a minha primeira impressão, querendo, sempre retificar. Acho uma atitude muito saudável, coerente, e me reservo o direito de fazê-lo, para não cometer injustiças, se bem que, quando a montagem não me agrada, jamais escrevo sobre ela. Às vezes, não escrevo por outros motivos: total falta de tempo e acúmulo de trabalho.

Assisti, salvo engano, ao espetáculo “CURRAL GRANDE”, em cartaz, por mais um final de semana, ainda, no Teatro Serrador (VER SERVIÇO.), na primeira temporada carioca, no ano passado, na Sede das Cias, e a montagem não me tocou. Faltou algo que me fizesse apreciá-la como um bom espetáculo. Não me perguntem o porquê, que não saberei responder agora, mas o fato é que não me entusiasmei com ele, embora não o tivesse considerado um daqueles “equívocos”; muito longe disso.

Ocorre que a peça voltou ao cartaz, no Teatro Serrador, e eu fiz questão de revê-la, para conferir até onde eu tinha razão, ou não.

Fiz isso, há três dias, e mudei bastante o meu conceito sobre o espetáculo.

Não que ele me tenha arrebatado, a ponto de eu ter vontade de vê-lo mais vezes, como faço, habitualmente, entretanto, assisti a um espetáculo muito mais maduro, mais azeitado e, principalmente, feito, com muita garra e determinação, por quatro bons jovens atores, numa prova de grande resistência à campanha sórdida, que vem sendo desenvolvida contra as artes, em geral, atingindo, principalmente as Artes Plásticas e o TEATRO.


 
 
 
 

 
SINOPSE:
 
O espetáculo, que foi montado pelo COLETIVO PONTO ZERO, de atores da Bahia, agora radicados no Rio, trata de um tema desconhecido por muitos brasileiros: a existência dos chamados “currais do governo”, que funcionavam como "campos de concentração" de sertanejos, no Ceará, durante a seca de 1932, e provoca uma reflexão sobre os processos de “higienização social” nas grandes metrópoles ainda hoje.
 

 
 
 
 


            O grande diferencial do espetáculo, a meu ver, está no conteúdo do texto; ou melhor, na sua temática, uma vez que raríssimas pessoas, julgo eu, tenham conhecimento dela, que mostra o quanto o ser, dito, humano é cruel, o que muito nos incomoda e envergonha, com a agravante de ser, infelizmente, um assunto, de certa forma, atual, ainda que tratado e cometido camufladamente, nos dias de hoje.

            Como consta, na sinopse, o texto, de MARCOS BARBOSA, com direção de EDUARDO MACHADO, reconta os horrores de um processo de “higienização social”, no Ceará, durante a seca de 1932, quando foram instalados sete “currais do governo”, no interior do Estado, para impedir a migração dos sertanejos para a capital.

Muitos dos que conseguiram escapar desse destino foram parar em outras cidades, principalmente algumas capitais mais ao sul ou sudeste, com destaque para São Paulo e Rio de Janeiro, duas granes metrópoles, as quais, com muita força, sangue e suor, ajudaram a construir.

            Não é, mais ou menos, o que os governos das grandes cidades fazem atualmente, quando há algum evento de grande monta ou a visita de uma autoridade muito “importante”? As cidades ficam “livres” dos seus mendigos e moradores de ruas, isolados, trancafiados, em abrigos, ou sabe-se lá onde, enquanto durar a efeméride, voltando a padecer suas dores, ao relento, passando frio e fome, sem a menor condição de civilidade e sem o amparo governamental.

            Antes desta reestreia carioca, a montagem circulou pelo país, propondo, sempre, uma reflexão a partir deste triste episódio histórico: o quão recorrentes e atuais são outras práticas semelhantes de discriminação e higienização social nas grandes metrópoles brasileiras.
 
 
 


Compartilhando o “release” da peça, enviado por RACHEL ALMEIDA (ASSESSORIA DE IMPRENSA RACCA COMUNICAÇÃO), Construído a partir de cenas curtas, o espetáculo reúne múltiplas linguagens, estabelecendo um ‘jogo’ com formas estéticas diferentes. Os atores BRISA RODRIGUES, BRUNNA SCAVUZZI, CARLOS DARZÉ e LUCAS LACERDA se revezam em mais de 40 personagens, partindo da construção realista à caricatura, do teatro épico narrativo à contação de história. A encenação faz referência, também, ao século passado, fazendo uso de técnicas da radionovela e do cinema mudo”.

            O texto não traz nenhum grande destaque, apesar de construído dentro das boas normas dramatúrgicas, e seu maior mérito é, de certa maneira, como diz o próprio diretor da peça, EDUARDO MACHADO, “...desenterrar esses mortos, dar voz a essas pessoas, que não aparecem nos livros de história”.

E ele não se refere, apenas, às pessoas que passaram por essa infâmia, no início da década de 1930, mas, também, a “uma grande população que não nunca esteve na historiografia oficial”.

Para um dos atores do espetáculo, LUCAS LACERDA, encenar a peça é uma forma de se propor uma reflexão maior acerca do problema, uma vez que, “Embora os currais do governo não tenham sido, necessariamente, como os campos de concentração da Alemanha, muitas pessoas foram mortas, em situação deprimente e vexatória. E, para a gente, a grande questão da peça, essa ‘higienização social’, a segregação, esse processo de limpeza social é o que se vê, até os dias de hoje, para maquiar a realidade”.

“O texto, que mistura drama e humor (mais aquele que este), é resultado artístico da pesquisa de mestrado do professor e dramaturgo MARCOS BARBOSA, que sentiu vontade de escrever “CURRAL GRANDE' depois de ter assistido a uma reportagem do programa ‘Fantástico’, em 2000”' segue o “release”.
 
 
 



            O texto mistura ficção com fatos reais, contados ao dramaturgo, por sua avó, que vivenciou, de muito perto, aquela realidade da migração e dos campos. Outra referência para a criação da dramaturgia foi o livro “Isolamento e Poder: Fortaleza e os Campos de Concentração na Seca de 1932”, de Kênia Sousa Rios, disponível na Internet.

            A peça é dividida em 8 pequenas cenas, além de um prólogo, muito providencial, durante o qual os atores, de forma clara e didática, dizem, ao público, o que irão ver encenado. Sem essa introdução, algumas pessoas poderiam não entender muita coisa do que se passa em cena.

É bom o espetáculo e merece ser visto, na sua última semana em cartaz, na atual temporada, porque aborda um tema inusitado, é bem escrito, conta com uma boa direção, criativa, com alguns detalhes e cenas que se destacam, como a Cena 2, que se passa dentro de um vagão de carga; a Cena 3, sobre um “Carnaval em Fortaleza”; a Cena 4; “Interrogatório do Estado do Ceará”; e a Cena 6, intitulada “Campo dos Urubus”, sobre as quais falarei, mais um pouco, adiante, além de duas que ganham o formato de radionovela.

O melhor de tudo, no espetáculo nos é oferecido pelo jovem elenco. Todos desempenham bem seus vários papéis, mas gostaria de jogar um foco mais forte sobre BRISA RODRIGUES, na Cena 6, na qual a atriz esbanja talento, ao interpretar um menino doente, retardado mental, ou coisa que o valha. Excelente trabalho! Os demais também têm alguns momentos de protagonismo e dão conta do recado. Na Cena 6, ficam evidentes os traços da crendice popular do povo interiorano e de sua crença no sobrenatural.  
 
 
 



            Em alguns instantes, o espetáculo parece um pouco lento, arrastado, contudo isso é proposital, reflexo da seca em que estão envolvidos os pobres flagelados. É preciso que isso fique bem claro. É proposital.

            Um espetáculo montado com muito sacrifício e parcos recursos tem de se valer da criatividade e de elementos simples, que ganhem relevo em cena. Isso se reflete nos figurinos, do próprio COLETIVO PONTO ZERO, composto por peças básicas, de cor cinza, que se adaptam a qualquer personagem, com o acréscimo de poucos adereços.

            O mesmo pode ser estender ao cenário, de ERIC FULY e EDUARDO MACHADO, modesto, porém totalmente a serviço da montagem. Basicamente, estão em cena uma cadeira de ferro, uma espécie de “rack”, também de ferro, sobre o qual fica um velho aparelho de rádio, e uma armação, em forma de um cubo, de ferro, com as suas paredes laterais e a frontal vazadas , com a do fundo fechada por tiras, creio que de persianas largas e verticais. Esse cubo é virado de faces, para o público, por vezes, dependendo da cena.

            É bastante simples a iluminação, de ÉLTON PINHEIRO, obedecendo à ambientação, com um destaque interessante: cada vez em que surge uma dúvida ou uma situação limite ou de grande tensão, a cena é iluminada, por alguns segundos, com uma luz mais forte, vermelho-alaranjada, dialogando com o momento, como se fosse um grito de alerta.

Na Cena 2, é bastante interessante a solução utilizada pelo diretor, fazendo com que os quatro atores se desdobrem em vários personagens, utilizando caracterizações diferentes, apenas nas cabeças, as quais são projetadas para fora da parede de “persianas”, passadas por entre as frestas. Nessa cena, os retirantes embarcam num trem de carga, depois de terem matado o fiscal e obrigado o maquinista a seguir viagem. A violência surge como reação a uma violência maior.

A Cena 4 chama a atenção por ser utilizada a linguagem do cinema mudo. Enquanto um casal de atores contracena, fazendo mímicas, os outros dois estão sentados no chão, projetando as legendas, ao fundo, com a utilização, bem precária, de um retroprojetor, que concede, porém, à cena, um charme ímpar, com. Como não poderia deixar de ser, um “charleston”, como fundo musical.

            Nas duas cenas em forma de radionovela, os atores assumem a voz e a postura dos radioatores da primeira metade do século passado, sem esquecer de ilustrar tudo com sonoplastias e “jingles”, tudo produzido ao vivo. Essas duas cenas, pelo humor que trazem, servem de uma válvula de escape para as tensões que o resto do texto propõe.
 
 
 

 
FICHA TÉCNICA: 
Texto: Marcos Barbosa
Direção: Eduardo Machado
Direção Musical: Pedro Maia e Ricardo Borges
Elenco: BRISA RODRIGUES, BRUNNA SCAVUZZI, CARLOS DARZÉ e LUCAS LACERDA
Cenário: Eric Fuly e Eduardo Machado
Figurino: Coletivo Ponto Zero
Modelista: Suely Gerhardt
Iluminação: Élton Pinheiro
Operação de Luz: Marcus Lobo
Fotografia: Ricardo Borges e Marília Cabral
Programação Visual: Uriel Bezerra
Coordenação de Produção: Lucas Lacerda
Produção Executiva: Geovana Araújo Marques
Realização: Coletivo Ponto Zero
 


 


 
SERVIÇO: 
Temporada: De 06 a 28 de outubro de 2017.
Local: Teatro Municipal Serrador. 
Endereço: Rua Senador Dantas, 13, Centro (Cinelândia) – Rio de Janeiro.
Telefone: (21) 2220-5033.
Dias e Horários: De 5ª feira a sábado, às 19h30min.
Valor dos Ingressos: R$40,00 (inteira) e R$20,00 (meia entrada).
Funcionamento da Bilheteria: De 3ª feira a sábado, das 16h às 20h.
Lotação: 276 pessoas.
Duração: 70 minutos.
Classificação Etária: 12 anos.
Gênero: Drama.
 

 
            “CURRAL GRANDE” fez parte do meu cardápio teatral de uma semana em que todos os sete espetáculos a que assisti merecem recomendação. Este, especialmente, pela garra do grupo e pela temática abordada.
            Cheguei à conclusão de eu mudei, porque o espetáculo amadureceu.

       E vamos ao TEATRO!
 

           



(FOTOS: RICARDO BORGES

E

MARÍLIA CABRAL.)
 
 
 

 


 
 
 
 
 
 
 
 

 
 
 


 




 







 

 


















































































































 


 

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