sábado, 31 de maio de 2014


SAMBA FUTEBOL CLUBE

 


 

(DIVERTIMENTO SEM ALIENAÇÃO)

 

 


 

 

            O juiz trila o apito, pela terceira vez, e começa a partida, exatamente às 19h30min, numa sexta-feira de final de outono, 30 de maio de 2014, diretamente do estádio do CCBB (Teatro II).


            Essa foi a forma original de se anunciar que iria começar o espetáculo SAMBA FUTEBOL CLUBE, um excelente musical, que parte do esporte bretão para falar de duas das preferências nacionais: o samba e o futebol.  No lugar das campainhas, dos gongos ou, mesmo, das tradicionais pancadinhas ou batidinhas de Molière (alguém se lembra disso?), o ator Chris Penna, com uniforme de juiz de futebol, entra em cena, três vezes, dando, respectivamente, um, dois e três apitos, como indicativo da proximidade do início da peça.
  

            Aos olhos de qualquer um poderia passar por mais uma experiência oportunista, "para se ganhar dinheiro", por conta da realização desta tão despropositada Copa do Mundo, realizada no Brasil, um dos maiores absurdos que já se viu, nesta terra abençoada por Cabral e amaldiçoada pelos (des)governantes.  Mas não é nada disso.


            SAMBA FUTEBOL CLUBE é um espetáculo delicioso, para ser degustado aos poucos e com muito prazer, pois se trata de um belíssimo trabalho de pesquisa, irretocavelmente levado ao palco.


            Podem pensar - o que seria até natural - aqueles que são aficionados por futebol que o espetáculo só seria do interesse desse tipo de pessoa e que só a eles agradaria.  No caso, pode-se até visualizar uma plateia formada, exclusivamente ou em sua grande maioria, por homens.  Mas ocorre que a peça é para todos e agrada a todos, até àqueles que possam vir a não se interessar pelo esporte de origem inglesa.  Não é uma partida de futebol; é um espetáculo de TEATRO, sobre futebol, e que explora, muito bem, de forma inteligente e leve, o universo desse esporte.

 

 


Elenco: Em cima (da esquerda para a direita): Luiz Nicolau, Pedro Lima, Cristiano Gualda, Jonas Hammar.  Abaixados (no mesmo sentido): Daniel Carneiro, Rodrigo Lima, Gabriel Manita e Alan Rocha.

 

 


            Em SAMBA FUTEBOL CLUBE, os oito atores se alternam entre o time dos jogadores e o dos torcedores e cada um encarna dois personagens: o ídolo e o fã torcedor.  A partir deste jogo de duplos, são criadas as diversas situações dramáticas.  Os atores formam, também, a banda do espetáculo, executando, ao vivo, todas as músicas.  É um espetáculo multimídia, que mistura música, teatro, dança e vídeo.


            Para que o espetáculo tomasse a forma como é apresentado ao público, foi feita uma excelente pesquisa musical e outra sobre a história do futebol entre nós, trazido por Charles Miller, um brasileiro, de ascendência inglesa, nascido no Brás, mas que foi estudar na Inglaterra.


O ótimo roteiro é assinado por GUSTAVO GASPARANI, que, além de excelente ator (está em cartaz, na terceira temporada vitoriosa, agora no Teatro Poeirinha, com uma instigante montagem de Ricardo III), já demonstrou ser uma referência dentre as pessoas que melhor sabem fazer TEATRO MUSICAL no Brasil.  São dele cinco espetáculos que fizeram muito sucesso nos últimos anos: Otelo da MangueiraOpereta CariocaOui, Oui...A França é Aqui!, A Revista do Ano e As Mimosas da Praça Tiradentes, que cumpriram temporadas de sucesso de público e crítica, entre os anos de 2005 e 2012, sendo assistidos por mais de 150 mil pessoas, indicados a mais de 40 prêmios, e renderam a GASPARANI os Prêmios Shell 2009 de melhor autor e 2012 de melhor ator.  Já provou seu talento tantas vezes e, agora, com este seu novo espetáculo só faz ratificar a sua marca nesse gênero.  GUSTAVO adaptou ou utilizou, na íntegra, textos de grandes nomes da literatura brasileira, em todos os gêneros, tais como Paulo Mendes Campos, José Lins do Rêgo, Nélson Rodrigues, Carlos Drummond de Andrade, Ferreira Gullar e Armando Nogueira, além de textos de sua autoria.  Uma verdadeira seleção de craques, não acham?


            A peça não mostra o futebol como sendo “o ópio do povo”, como se costuma dizer.  Apresenta-o como uma manifestação popular, que surgiu, ainda no século XIX, como esporte de elite, praticado por pessoas da sociedade, mas que caiu no gosto do povo, até se tornar, realmente, o esporte nacional, a partir da conquista, pela primeira vez, em 1958, de uma Copa do Mundo.


            Coincidentemente, ontem, o ator Tonico Pereira, grande profissional do TEATRO, postou, em sua página de uma rede social: “Sabemos que o futebol é usado politicamente, mas sabemos, também, que, antes de tudo, é cultura!!!”  É a mais pura verdade, Tonico, e uma pena que os maus políticos e os ditadores façam uso dele para se promoverem ou para fortalecer um regime de exceção.


            Assim foi em 1970 e assim está sendo agora, às vésperas de uma Copa do Mundo, que poderia, e deveria, ser realizada em qualquer outro país que não fosse o Brasil, tão carente de tudo.  Nem é preciso falar da fortuna absurda aplicada nesse evento elitista e tão afastado dos verdadeiros interesses da população.  Também desnecessário seria falar do quanto essa conquista da realização do torneio em território nacional pode vir a granjear votos para os atuais governos, federal, estadual e municipal.  Mais desnecessário, ainda, seria falar do quanto se vem roubando, dos bolsos do povo, para engordar contas bancárias pessoais.


            Com relação a 1970, quando o Brasil se tornou tricampeão mundial de futebol, o ditador de plantão usou esse esporte como instrumento para calar a boca daqueles que sofriam com o regime e se manifestavam contra ele e, principalmente, para ocultar as barbáries e os assassinatos cometidos nos porões da ditadura.  Usou-se o futebol como veículo para a alienação do povo e, infelizmente, por mais algum tempo, essa estratégia funcionou.  Quem sabe, até hoje, não seja mais ou menos assim?  A Copa do Mundo de 2014 está aí para mostrar isso, ainda que muitos venham se manifestando contra tal aberração.


            Mas o futebol, pelo qual não morro de amores, é, acima de tudo, cultura e, entre nós, encontrou um solo fértil para crescer e produzir seus frutos.

 

 


 

O espetáculo se caracteriza por ser leve, genuinamente recreativo, que se propõe a entreter o público, porém não deixa de ser, também, crítico, quando aborda a Copa de 70, cena em que, ao som de Pra Frente, Brasil, se não estou enganado, os atores assumem posições de bocas, ouvidos e olhos tapados, como impunha a ditadura, enquanto é projetada a manchete de um jornal da época, alusiva à repressão.


            Em outro momento, foge à sua proposta principal, quando, de forma interessante, porém um pouco exagerada, presta uma homenagem àqueles jogadores que, por uma razão ou por outra, caíram no ostracismo e não souberam, talvez, aproveitar seus momentos de glória, para garantir um futuro e uma velhice tranquilos.  O exagero a que me refiro é com relação a um texto, dito pelo ator ALAN ROCHA, que me pareceu um pouco piegas e fora do contexto.  Creio que poderia, e deveria, ser retirado do roteiro, sem causar qualquer prejuízo à cena da homenagem aos antigos craques. 

 

            Vamos a uma pequena sequência de observações sobre a ficha técnica:

 

            ROTEIRO E DIREÇÃO – GUSTAVO GASPARANI: excelentes os dois.  Os textos que não foram escritos pelos grandes escritores já citados saíram da inteligência e da competência do GUSTAVO.  São ótimos, à exceção, como já foi dito, daquela história do jogador que perde o filho, bebê, afogado numa piscina e acaba por se entregar à depressão e às drogas.  No roteiro dos textos, que está no programa da peça, não encontrei nenhum que pudesse conter aquela narrativa, o que me poderia fazer crer ser da autoria do roteirista, contudo foi extraído de uma entrevista do ex-jogador do Bangu, Marinho, protagonista daquela tragédia.


            ELENCO – ALAN ROCHA, CRISTIANO GUALDA, DANIEL CARNEIRO, GABRIEL MANITA, JONAS HAMMAR, LUIZ NICOLAU, PEDRO LIMA e RODRIGO LIMA.  Quero todos jogando no meu time.  Há vaga para qualquer um deles.  Todos estão atuando de forma irrepreensível, “batendo um bolão”, jogando em quatro posições – interpretando, cantando, dançando e tocando instrumentos, vários, até violino – dominando a bola, avançando com ela e marcando muitos gols.  Um elenco coeso, que não nos possibilita mencionar um destaque.  Todos têm seus momentos de solos e sabem aproveitar muito bem quando a bola lhes cai aos pés.  CRISTIANO, JONAS, LUIZ E PEDRO já são velhos conhecidos dos espetáculos musicais e, a cada trabalho, se superam.  Os outros quatro foram das melhores surpresas que tive nos últimos tempos.

            Ainda com relação ao elenco, é importante realçar um aspecto, que vem se tornado uma constante nos últimos musicais a que tenho assistido.  Um detalhe muito interessante e que faz a diferença: a versatilidade do artista brasileiro.  Refiro-me ao fato de todos, neste espetáculo, tocarem diversos instrumentos musicais, a ponto de formarem, eles mesmos, a banda que os acompanha em seus números.  E se comportam profissionalmente, embora, em suas carteiras de trabalho, se destaque a profissão: ATOR.


            DIREÇÃO MUSICAL – NANDO DUARTE: ótima.  Muito bons os arranjos.


            DIREÇÃO DE MOVIMENTO E COREOGRAFIA – RENATO VIEIRA: muito boas.  Durante cerca de duas horas de espetáculo, dividido em dois tempos, ou melhor, dois atos, a movimentação dos oito atores em cena, assim como as marcações e as coreografias são determinantes para o dinamismo do espetáculo.


            CENOGRAFIA – MARCELO LIPIANI: boa, se bem que, necessariamente, comedida, já que o grande destaque para a ambientação do espetáculo está nas projeções, o que merecerá um comentário abaixo.


            FIGURINOS: MARCELO OLINTO: muito bons.  Bastante coloridos e diversos, contribuem bastante para a beleza plástica do espetáculo.


            ILUMINAÇÃO: PAULO CÉSAR MEDEIROS: dispensa comentários.  Nada além de um “excelente”.


            PREPARAÇÃO E ARRANJOS VOCAIS: MAURÍCIO DETONI; magnífico trabalho.  Colocou as vozes certas na interpretação das muitas canções, em solo ou em grupos, e o resultado agrada bastante aos ouvidos.  Destaca-se o fato de que todos os atores são excelentes cantores.


            CENOGRAFIA DIGITAL: THIAGO STAUFFER (STUDIO PRIME): Pela primeira vez, vejo esta rubrica numa ficha técnica.  Tenho visto, ultimamente, este elemento sob a forma de “videografismo”.  Não sei se são, exatamente, a mesma coisa; acho que não.  Só sei que considero muito interessante a utilização desse recurso cenográfico, de projeções de imagens de diversos tipos, que tem sido uma atração à parte em alguns musicais mais recentes, como é o caso de Cazuza – Pro Dia Nascer Feliz, o Musical e Se Eu Fosse Você, para citar apenas dois exemplos.  Em SAMBA FUTEBOL CLUBE, a utilização das imagens projetadas no telão, ao fundo do cenário, é de uma qualidade incrível e de uma precisão cirúrgica, não ocorrendo a menor falha de sincronia entre o que é projetado e as ações dos atores em cena.  Penso que já estava na hora de ser adicionada uma categoria nova às premiações sobre TEATRO: cenografia digital.  Seria um exagero?


            PESQUISA MUSICAL: ALFREDO DEL PENHO: belíssimo trabalho.  A pesquisa de ALFREDO fez emergir, do fundo do baú, excelentes pérolas do cancioneiro brasileiro ligadas à temática do futebol.  Aqui, cabe um parêntese: apesar de o título trazer a palavra “samba”, muitas das 42 canções que fazem parte da trilha sonora da peça não pertencem a tal ritmo; há marchas, rocks, toadas, baiões, xaxados e outros representantes da genuína música brasileira.


            VISAGISMO: BETO CARRAMANHOS: ótimo.  BETO aproxima bastante os atores dos traços dos personagens, partindo das principais características destes.  É ótima e hilária, por exemplo, a caracterização de CRISTIANO GUALDA, no segundo ato, em Cristiano Geralda (acho que é o nome do personagem), numa alusão ao aspecto de metrossexual do jogador português Cristiano Ronaldo.


            Cerca de mais trinta nomes completam a ficha técnica, o que prova o apuro como foi desenvolvido o projeto, até ele estrear no palco do CCBB.

 

 


 

 

            Cabe aqui um agradecimento a GUSTAVO GASPARANI e a todos os envolvidos neste belo projeto, pela tentativa de resgatar a ideia de que o futebol ainda pode voltar a ser um esporte popular, a despeito de ter iniciado no seio das elites.  É muito importante isso, no momento em que tanto esforço é feito pelas “autoridades governamentais” para afastar o povão dos estádios, com o infeliz advento desta Copa do Mundo “da FIFA”.
 

            No espetáculo, por exemplo, há um momento, no texto, em que se fala de um Maracanã que abriga cem mil pessoas, que fala da “geral”, do Maracanã como sendo “a nossa catedral”...  É outra, bem inferior a atual lotação do Maracanã.  A "geral" desapareceu, dando lugar a assentos numerados.  Pouco restou da antiga "catedral".  Parafraseando o poeta Drummond, esse Maracanã do espetáculo é apenas um retrato na parede.  Mas como dói!


            Na hora em que é cantada a canção Nega Manhosa, de Herivelto Martins, não contive um risinho, em função de a letra dizer que a mulher deve pegar uma “nota de cinquenta” (naturalmente, outra moeda, que não o real), deixada pelo marido sob o rádio, e utilizá-la para ir à feira, jogar no bicho e reservar o troco para que ele vá ao jogo do seu time de coração, no Maracanã.  Hoje, com R$50,00, não se pode nem pensar em ir ao Maracanã.


            Concluindo, saí do CCBB muito feliz com o espetáculo que vi e o recomendo muito a quem goste ou não de futebol, mas, principalmente, a quem aprecia o bom TEATRO.  Isso o espectador vai encontrara lá, com certeza.


            Aproveito, também, para lembrar que o espetáculo vai até o dia 14 de julho, portanto será exibido durante todo o transcorrer da Copa do Mundo, de 5ª a 2ª feira, sempre no horário das 19h30min.  Que tal trocar a alienação por uma programação cultural de verdade e de qualidade?

 

 


Esta foto foi tirada no final do espetáculo, quando os atores sugerem que a plateia volte a ligar seus aparelhos celulares e leve uma foto como recordação.  Uma iniciativa muito simpática para com aqueles que aplaudem de pé o espetáculo.

 

 


Eu e Cristiano Gualda.

 

 

 


Eu e Jonas Hammar.

 

 

 

(FOTOS: PRODUÇÃO / DIVULGAÇÃO DO ESPETÁCULO, MR. ZIEG – site sobre musicais - e MARISA SÁ.)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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