domingo, 11 de maio de 2014


DESALINHO
 
 
(UM SONHO BORDADO EM FILIGRANAS DE OURO ou UMA ODE À MORTE “BRANCA”.)
 
 
Está em cartaz, na arena do Espaço SESC Copacabana, às 3ªs e 4ªs, às 20h30min, até o dia 11 de junho, o espetáculo DESALINHO, peça inspirada, livremente, na grande poeta portuguesa Florbela Espanca, cuja vida, de apenas trinta e seis anos, foi plena, embora tumultuosa, inquieta e cheia de sofrimentos íntimos, que a autora do texto soube transformar em poesia da mais alta qualidade, carregada de erotização.
DESALINHO: substantivo masculino = falta de alinho, desarrumação; no sentido figurado, perturbação do ânimo ou da razão.
O texto é de MARCIA ZANELATTO, que, “apoiada em poemas de Florbela Espanca e Fernando Pessoa, trouxe, de volta, ao palco, o lirismo de uma história fadada à tragédia: o amor entre dois irmãos”.  Sabe-se, por alguns de seus biógrafos, que Florbela nutria uma paixão incondicional e incontível, não sei se correspondida, por seu irmão, Apeles, falecido, de forma trágica, num acidente de aviação.
A autora da peça transcendeu a realidade e criou uma personagem, MARIANA, aficionada por Florbela, e que via, nos versos da poeta lusa, um esteio para a sua vida.  Na realidade, Florbela não matou o irmão, menos ainda esteve internada em alguma instituição para tratamento psiquiátrico, como se dá na encenação.
A dramaturgia da peça prende a atenção do espectador pelos jogos de palavras e pelo apuro no vocabulário.  E, por fugir ao aspecto denotativo, leva-o – o espectador – a saborear os vocábulos e seus matizes semânticos, de forma a viajar profundamente pelo universo da grande poeta e sentir o eco do que lhe vai na alma.  Estamos diante de um delicado bordado de filigranas de ouro no mais puro linho egípcio.
 
Gabriel Vaz, Carolina Ferman e Kelzy Ecard.
 
MÁRCIA situou a protagonista num sanatório psiquiátrico, em função de a moça ter matado seu irmão, num crime passional.  Naquele lúgubre e insalubre ambiente, as histórias de seu passado, vivido na realidade ou na sua própria fantasia, vêm à tona, talvez por remorso e pela culpa que carrega, sob a forma de alucinações, sempre diante de uma enfermeira, com quem a moça se envolve afetivamente ou, talvez, mais por necessitar de uma cumplicidade em seus devaneios.
Pode-se considerar o texto um manifesto pela liberdade de amar, de pensar, de ser, de viver e conviver, e um grito contra todas as formas de opressão e de julgamentos, que, por vezes, projetam mais foco sobre tantas vidas que já vivenciam, naturalmente, o sofrimento e a desdita.
Uma ode à morte “branca”, aquela que não faz sofrer, mas que liberta, também poderia funcionar como uma definição epitética para este texto.
A direção do espetáculo é uma atração à parte.  Considero ISAAC BERNART um dos melhores e mais versáteis atores de sua geração.  Além disso, desde que resolveu enveredar pelo campo minado da direção, não fez outra coisa a não ser acertar.  A delicadeza é marca registrada do seu trabalho.  E, para citar apenas dois exemplos, assim como em DESALINHO, não há como não senti-la em QUERIDA HELENA SERGUEIVNA e CALANGO DEU – OS CAUSOS DE DONA ZANINHA, duas belíssimas pinturas, emolduradas pelo talento, a sensibilidade e a delicadeza de ISAAC.  Aqui, ele deu asas à sua incomensurável sensibilidade e também trabalhou muito no bordado deste DESALINHO.  E como!  Existem, na peça, algumas marcações de cena que são trabalho de gente muito profissional, que enxerga além do normal, como, por exemplo, a caminhada sobre os livros, que a protagonista faz, associada ao texto que vai dizendo.  É obra de gênio!  Muito boa, também, é a cena inicial, em que os dois irmãos (ainda não sabíamos qual seria a relação entre os dois personagens) brincam de pique-pega, em torno da arena, acima das poltronas.
 
No elenco, não se pode poupar elogios ao belíssimo trabalho de CAROLINA FERMAN, que faz a protagonista e que já vem me encantando há algum tempo, em vários outros papéis.  Talento e presença de palco abundam nessa jovem atriz, que se destaca com relação às de sua época.  Diz seu texto com tanta naturalidade e verdade, que é difícil controlar a emoção.  Grande atriz!
O papel do irmão é feito por outro jovem bom ator, GABRIEL VAZ.  Comedido nas emoções, entretanto sem reprimi-las, o ator mantém o mesmo tom sereno e terno do personagem, ao longo de cerca de uma hora de duração do espetáculo.  Um bom trabalho.
Agora, chegou a vez de falar de uma das mais completas atrizes brasileiras: KELZY ECARD.  Uma operária do TEATRO, no sentido mais amplo e positivo do termo, KELZY é uma atriz que emociona só por sua figura.  Sua presença, na ficha técnica da peça, aparece como “atriz convidada”.  Eu trocaria por “participação mais-que-especial”.  Como sempre, valoriza qualquer cena de que participa e, da forma mais generosa possível, ilumina a atuação de seus companheiros de trabalho.  Quando contracena com CAROLINA, dificulta a nossa respiração.  Atuação irretocável.

 
 
Gabriel Vaz, Carolina Ferman e Kelzy Ecard.
 
 
A luz, boa, como sempre, é do competente AURÉLIO DE SIMONI.
 
A cenografia, muito franciscana, sem nenhuma conotação negativa, é de DÓRIS ROLLEMBERG: uma mesa para refeições, um banco (do tipo mocho) e uma pequena escada de dois degraus, dos que são utilizados em hospital.  O “mobiliário” está colocado sobre um piso circular, em forma de uma mandala.  Fiquei intrigado sobre o que poderiam significar aqueles traços no chão.  Supus várias interpretações e minha inquietação levou-me a procurar a cenógrafa e perguntar-lhe sobre a sua proposta.  Gentilmente, ele me deu a resposta, que, com o seu consentimento, transcrevo:
Quando li o texto, fiquei completamente arrebatada.  Uma poesia a ser levada para a cena.  Trabalho sempre a partir da ideia de ocupação de espaço, espacialidade/tempo e cinética. Assim, propus que a cena deveria ser vista de longe, escondida.  Dessa forma, o espaço reduzido nasceu dessa ideia do afastamento (concreto) do espectador e da cena.  A imagem de um abismo ou de um buraco negro me veio como um pressentimento, de forma que acabou por resultar em um espaço mandálico, onde as linhas e traçados podem indicar os movimentos de expansão e retração.  O grafismo é uma questão que também me acompanha.  A Márcia (Zanelatto) diz que é um olho, mas pode ser o que espectador quiser.  É ele quem deve completar esse desenho”. 
E eu completo: o círculo limite da mandala pareceu-me a fronteira entre o presente e o passado.  O centro do traçado, seguindo a visão da dramaturga, também me pareceu um olho, que tudo vê e pouco percebe;  ou que nada vê, porque não há nada de real para ser visto.  Os raios do desenho, voltados para a plateia, parecerem apontar para cada espectador, como a dividir com eles aquele sofrimento ou para lembrá-los de que eles também poderiam estar dentro daquela mandala. 
Boas são a direção musical de ALFREDO DEL PENHO e JOÃO CALLADO, os figurinos de DESIRÉE BASTOS e a direção de movimento de MARCELLE SAMPAIO.
DESALINHO é um bom motivo para você ir ao TEATRO. 
Para concluir, dois momentos de Florbela Espanca, bem relacionados ao texto da peça, para deleite e reflexão:
           1) “O meu mundo não é como o dos outros; quero demais, exijo demais.  Há, em mim, uma sede de infinito, uma angústia constante, que nem eu mesma compreendo, pois estou longe de ser uma pessoa; sou, antes, uma exaltada, com uma alma intensa, violenta, atormentada, uma alma que não se sente bem onde está, que tem saudade… sei lá de quê!”
           2) “Afinal, quem é que tem a pretensão de não ser louca?...  Loucos somos todos, e livre-me Deus dos verdadeiros ajuizados, que esses são piores que o diabo!
 
 

Eu, Márcia Zanelatto e Cássio Pandolph.
 
 
Eu e Kelzy Ecard.
 
 
Regina Cavalcanti, Leo Ladeira, eu e Cássio Pandolph.
 
 
Reunião de amigos: Cássio, eu, Kelzy, Leo e Regina.
 
 
 
A premiada figurinista Carol Lobato e eu.


 
(FOTOS: JOÃO JÚLIO MELLO – PRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO DO ESPETÁCULO e REGINA CAVALCANTI)
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

2 comentários:

  1. Parabéns Gilberto, seu texto é tão lindo e delicado quanto o espetáculo!

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  2. Belíssimo texto. Quando assisti imaginei que as linhas eram as grades da cela da personagem, mas aqui minha mente viajou ainda mais!

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