segunda-feira, 11 de março de 2024

“FORTALEZA”

ou

(“ESSES MOÇOS, POBRES MOÇOS...

AH! SE SOUBESSEM O QUE EU SEI...”

- LUPICÍNIO RODRIGUES.)

ou

(UMA AGRADÁVEL SURPRESA TEATRAL.)




         Que diferença pode haver entre um espetáculo que conseguiu captar altas cifras, além de patrocínios e apoios, e outro cuja produção arca com parcos recursos próprios, para concretizar o sonho de montá-lo? Se os dois forem BONS, sinceramente, NENHUMA, a não ser, obviamente, a “embalagem”. Para mim, não importa se o presente vem embrulhado luxuosamente ou se o pacote foi feito em “papel de pão”. O que interessa é o que está dentro da caixa. Chega a ser um certo exagero, assumo, a comparação, mas a imagem foi criada propositalmente, para deixar bem claro que a qualidade de um espetáculo teatral, a meu juízo, depende muito mais de que sejam, no mínimo, bons o texto, a direção e a interpretação.

 

 


 

         O que dizer, por exemplo, da cenografia, dos figurinos e da iluminação do espetáculo “FORTALEZA”, ao qual assisti no último sábado (09 de março de 2023), no simpático e agradável Espaço Abu, um endereço alternativo, em Copacabana (VER SERVIÇO), de facílimo acesso, o qual, desde sua inauguração, em 2019, só apresentou, de tudo o que eu vi lá encenado – e foi muita coisa -, bons espetáculos? Considerando-se o caráter de “primo pobre” da peça, em termos de recursos financeiros, não muita coisa a ser dita, além de que os três elementos de apoio e criação estão perfeitamente a serviço da montagem.

 

 


 

A cenografia, assinada por PAULO DENIZOT, resume-se a um armário de ferro ou aço, desses encontrados em vestiários, com cinco ou seis compartimentos, deitado no chão, com as portinhas voltadas para cima. De dentro dele, os atores retiram objetos a serem utilizados em algumas cenas. É preciso que se diga que o Espaço Abu é muito pequeno, comportando apenas uma média de 40 espectadores, por sessão, dependendo da configuração compatível com cada peça, o que, indubitavelmente, é um problema para os cenógrafos, os quais não podem se “expandir” muito. Para um profissional da cenografia, competente e criativo, é um desafio, porém fácil de ser contornado, como o fez DENIZOT. Sobre o único elemento cênico, ainda tenho a dizer que considero ótima a ideia de o público contribuir com o cenário, ao ser convidado, terminado o espetáculo, a deixar alguma coisa escrita nas faces brancas do móvel, alguma mensagem, qualquer coisa relativa à peça. No momento em que não houver mais espaço a ser preenchido, as pessoas poderão continuar a escrever sobre o linóleo branco, que reveste o piso do espaço cênico.

 

 


 

Os figurinos, assinados por HUMBERTO CORREIA, estão completamente adequados aos dois personagens. São únicos, durante toda a encenação, dando-nos a impressão de serem peças do próprio guarda-roupa dos atores. Se são ou se apenas nos dão essa ideia, isso não faz a menor diferença, uma vez que funcionam muito bem em cena. E é o que basta.

  


PAULO DENIZOT também se encarregou da iluminação. Assumo que, decorridos uns 20 minutos iniciais de peça, comecei a achar que o desenho de luz parecia muito simples e “inadequado”, noção que, aos poucos, foi sendo modificada, até que eu ficasse deslumbrado com a luz de uma determinada cena – não darei “spoiler” –, que vale por todo o espetáculo.   

 

 



Salvo engano, pela primeira vez, em 11 anos de blogue, praticando a crítica teatral, já tendo escrito mais de 800, é a primeira vez que inicio uma dissertação sobre uma peça pelos três componentes acima comentados, porém isso tem a ver com o parágrafo com o qual iniciei esta minha visão crítica do espetáculo.

 

 


 

 

SINOPSE:

Com quantos amigos se destrói uma “Fortaleza”?

A peça joga luz sobre a construção da masculinidade, por meio da relação de dois melhores amigos.

Muito mais do que responder a perguntas, propõe questionamentos e reflexões, deixando que cada espectador saia com a sua própria interpretação.

O texto inédito, de JOSÉ PEDRO PETER, narra a história de dois amigos de infância, PH (CARLOS MARINHO) e Bruno (JOSÉ PEDRO PETER), que veem sua amizade acabar, por causa de preconceitos, inseguranças e pressão dos pais e colegas de escola.


 

 


 

“FORTALEZA” só vem ratificar o meu ponto de vista de que a maior viga de sustentação de um espetáculo teatral reside na boa qualidade do texto, o qual, efetivamente, deve girar bem torno de uma boa ideia, de uma boa história. A dramaturgia aqui é de JOSÉ PEDRO PETER, que, em teatro, se destaca mais como produtor. Embora já tenha feito alguns trabalhos como ator e adaptador de texto (“A Última Ata”, espetáculo recente, é um dos bons exemplos.), pela primeira vez, se apresenta como autor, o que o credencia a continuar investindo na profissão. A história é excelente e a maneira como ele a conta, de forma não linear, do ponto de vista cronológico, é admirável. O grande mérito desta peça começa pelo texto.

 

 


 

O fato de uma dramaturgia ser atemporal e universal, sob os meus critérios, já conta positivamente, e se ela se pontua com mais pertinência nos dias atuais, considero isso melhor ainda, como é o caso de “FORTALEZA”, trazendo à tona, para reflexões e debates, alguns importantíssimos “vieses” numa relação interpessoal, como amizade, “bullying”, sexualidade, descoberta da sexualidade, remorso, culpa e perdão, entre dois amigos de infância.

 

 


Não posso me estender muito nos meus comentários, ainda que a vontade de esmiuçar cada aspecto importante do texto seja enorme, por estar muito atarefado, com pouquíssimo tempo disponível, e, principalmente, para – mais uma vez vou dizer – não dar “spoilers”. Tenho que me policiar muito quanto às duas justificativas, principalmente quanto à segunda, para não roubar o prazer aos que ainda irão assistir à peça. Há muitas surpresas durante a peça.


 

 

PH, personagem de CARLOS MARINHO, é quem conta a história, alternando-se entre narrador e personagem. Ele e Bruno, interpretado por JOSÉ PEDRO PETER, são “melhores amigos!” desde a infância, mas o tempo presente, para os dois é quando já se tornaram adultos, na casa dos 35 aos 40 anos. Isso é um indicativo de que, no texto, sobra espaço para admiráveis “flashbacks”. Conquanto vivesse uma vida aparentemente “tranquila”, já casado, com mulher e filhos, PH carrega uma culpa e um arrependimento de/por algo que, aos poucos, vai sendo desvendado e compreendido pelo público; e não consegue ficar em paz com o seu passado. “Ele apenas sobrevive”, como diz o dramaturgo. E como existem PHs por aí, infelizmente, resultado de uma educação rígida e equivocada de um pai extremamente preconceituoso, um ignorante “fascista”, daqueles que dizem que “prefiro ter um filho ladrão do que (sic) viado (sic)”. Um boçal, que “tem certeza” de que “a AIDS é doença de viados (sic) e só eles a transmitem”. Toda a estrutura humana de PH foi construída à sombra de mentiras, de farsas, de “fake news”, tão ao gosto da “ignorantalha abjeta e  fascista”, a ponto de fazer dele um atormentado refém do que aconteceu com seu melhor amigo no passado, carregando uma culpa por algo que ele não é capaz de reverter. Aliás, ninguém.

 

 



 

Durante a infância, enquanto ainda não tinham discernimento para discutir e entender coisas da sexualidade e da masculinidade, tudo fluía como uma regato manso entre a dupla, entretanto, chegada a adolescência, com o desabrochar do interesse pelo corpo, o próprio e o alheio, parece que uma “Babel” desmoronou sobre eles, os quais passaram a ter dificuldade de comunicação, por conta de divergências de pensamentos. Tudo em virtude das “verdades” em que PH acreditava, fomentado pela “educação” de um pai intolerante e insipiente para seu filho “macho”. “PH não mede esforços, para deixar claro seu ponto de vista preconceituoso e o machismo, herdados do pai.” (Trecho extraído do “release” a mim enviado por GUILHERME SCARPA - assessoria de imprensa.). Um dos pontos altos dessa “distorção” é o rapaz não aceitar que Bruno aprecie a obra de um grande poeta, o cantor e compositor Cazuza, porque o pai lhe dissera que não se pode gostar de um cantor “gay”, que está com AIDS e é um perigo, pois transmite a doença até por toque em outra pessoa.  



Bruno é vítima da intolerância, da desinformação, da estupidez e do machismo, expresso ou estrutural, generalizado. Não importa. É vítima, assim como, o amigo PH, de certa forma, também o é. Mas é Bruno quem sofre uma pesada carga de humilhação e perseguição, em virtude de sua orientação sexual, não assumida, por medo de ser quem é, por receio de sofrer mais do que já sofria. No fundo, também, é aquele que sabe o que quer, porém não tem a coragem suficiente para fazer valer sua natureza humana, por viver numa sociedade machista e intolerante. Ou será que não sabia? Vivia em constante conflito consigo mesmo, sem coragem (Ou seria condição?) de "chutar a porta do armário". A pressão que sofria fazia com nem ele mesmo tivesse certeza de seus instintos sexuais.

 

 



 

O texto traz, de forma muito pertinente e precisa, referências dos anos 1980 e 1990, tais como o já citado Cazuza, a banda de “rock” inglesa “Oasis” (1991–2009), fitas VHS e revistas pornôs, vendidas em bancas de jornal, dentro de um saco plástico preto, apenas para maiores de idade, mas que eram adquiridas por adolescentes e jovens menores de 18 anos, mediante um “agrado” ao jornaleiro “corrupto” do bairro. Os dois personagens, adolescentes típicos naquela época, não eram exceção a essas referências – menos PH, com relação a Cazuza - e tinham como um dos passatempos preferidos, assistir a filmes pornôs, um na casa do outro, com direito a “sessões de masturbação”. E foi exatamente durante a descoberta da sexualidade, sob o domínio dos hormônios masculinos, que começou a ser destruída a “FORTALEZA” que os protegia. A partir daquela fase, tão difícil para qualquer adolescente, começou a se deteriorar uma linda amizade em que PH servia de exemplo para Bruno, na visão dos pais deste, porém a recíproca não era verdadeira. É o momento em que o “bullying”, na escola, começou a tomar forma e Bruno passou a ser o “boiola” do grupo. Principalmente os homens que orbitam na faixa dos 35/40 anos se identificarão com as mensagens da peça e poderão entender melhor como foi formada a geração de homens dessa faixa etária, o que não quer dizer que os mais velhos também não o consigam.



A presença da banda “Oasis”, um dos ícones da juventude mundial daquela época, nesta peça, vai muito além de contribuir com uma canção para compor a ótima trilha sonora, obra de DANIEL DIAS DA SILVA. A canção é “Wonderwall”, cuja tradução mais pertinente é “porto seguro”, em forma adjetivada, como alguém que protege, dá sustentação e é indispensável à existência de uma outra pessoa. Os dois amigos eram fãs da banda e, em especial, de “Wondewall”, cuja tradução de alguns versos aqui está: “Eu não acredito que alguém / sinta o mesmo que eu sinto por você agora. / E todas as estradas / que temos que percorrer são tortuosas. / E todas as luzes / que nos levam até lá são ofuscantes. / Há muitas coisas que eu / gostaria de dizer a você, / mas eu não sei como, / porque, talvez, / você será aquele que me salva. / E, depois de tudo, / você é meu protetor”.


 

As feridas podem ser curadas, mas as cicatrizes são eternas e, indelevelmente, atuam como afiados punhais a nos ferir, todas as vezes que olhamos para elas. Segundo DANIEL DIAS DA SILVA, a peça é “uma espécie de ‘Dom Casmurro’ moderno”. O Espaço Abu não é só um desafio para o cenógrafo; também o é para o diretor, uma vez que, por ser pequeno e comportar duas pequenas arquibancadas, com cadeiras, para o público, num formato de quase uma “meia arena”, já, de certa forma, “impõe” uma dinâmica de direção, ou, pelo menos, a limita, deixando sobrar uma área muito restrita para que o diretor “se vire” em traçar boas marcações e empreenda um ritmo dinâmico ao espetáculo, para que não se formem “barrigas” durante a apresentação. Com bastante experiência no TEATRO, quer como ator, quer como diretor, DANIEL transpôs todos as muralhas que tinha à sua frente e realizou um ótimo trabalho de direção, tirando partido de cada fala, sugerindo mais que mostrando. São excelentes os anticlímax; ou falsos clímax, que ele consegue, contando com o talento do par de atores. Poucas pessoas percebem, enquanto aguardam o início da peça, sons de vozes e gritos de crianças num recreio escolar.

 

 


 

Para finalizar estas considerações, resta-me exaltar o trabalho de CARLOS MARINHO e JOSÉ PEDRO PETER, como PH e Bruno, respectivamente. Fico muito feliz, quando consigo aplaudir o talento de jovens atores, empenhados em apresentar um trabalho que convença o espectador, assim como o faça rir, quando for necessário, e mexa com o seu sentimento. Melhor ainda é quando provocam empatia, naqueles que a têm, naturalmente; ou seja, tudo o que consegui enxergar na dupla. Ambos abraçaram seus personagens com muito afinco e, sobretudo, amor. Cada personagem que um ator representa é como se fosse parte de si próprio, até mesmo quando a “persona” é o oposto da pessoa. Se represento um assassino estuprador, muito embora eu não seja um e abomine esse tipo de “gente”, preciso “amar” o personagem, defender, “com unhas e dentes”, esse meu “filho”, que eu criei, para poder contribuir com a minha parte, a fim de que uma história ficcional se torne o mais possível verossímil. Assim agem MARINHO e PETER em cena, dando-nos a impressão de que estamos diante de uma verdadeira “lavação de roupa suja”, como se atores e personagens fossem um elemento uno, indivisível, tal é a naturalidade com que atuam.  


 

 

 


 

 


 FICHA TÉCNICA:

Dramaturgia: José Pedro Peter

Direção: Daniel Dias da Silva

 

Elenco: Carlos Marinho e José Pedro Peter

 

Cenário: Paulo Denizot

Figurino: Humberto Correia

Iluminação: Paulo Denizot

Assistente de Direção: Vitor Almeida

Movimento de Corpo: Marcelo Aquino

Assessoria de Imprensa: Dobbs Scarpa

Fotos: Roberto Cardoso

Arte: Cristian Schumman

Coprodução: Territórios Produções

Produção e Realização: PEDROPETERPROD

 

 


 



 

 


 SERVIÇO:

Temporada: De 02 de março a 01 de abril de 2023.

Local: Espaço Abu. 

Endereço: Avenida Nossa Srª. de Copacabana, nº 249 - Loja E – Copacabana – Rio de Janeiro.

Dias e Horários: Sábados, domingos e 2ªs feiras, às 20h.

Valor dos Ingressos: R$ 60 (inteira) R$ 30 (meia-entrada).

Duração: 70 minutos.

Indicação Etária: 14 anos.

Gênero: Drama.


 


 



 

         Não resta a menor dúvida de que a temática explorada na peça é bastante “pesada”, forte, sofrida, e a história poderia ter sido contada de uma forma até chocante. O autor não poupou palavras “duras”, no texto, embora também nos alivie, de vez em quando, com toques de humor, mas a direção encontrou uma atalho para tornar a aspereza mais suave, sem deixar, porém, de chamar a atenção do público para a importância do tema, cada vez maior, nos dias de hoje. Se não fosse a cumplicidade de uma equipe e a brilhante interpretação do elenco, eu, talvez, não estivesse aqui, dando as últimas “marteladas” no teclado, para dar forma a este texto. 

        RECOMENDO, COM EMPENHO, O ESPETÁCULO! 

 

 




FOTOS: ROBERTO CARDOSO.

 

 


GALERIA PARTICULAR:

(Fotógrafos Diversos.)



Com José Pedro Peter.



Com Carlos Marinho.




Com Daniel Dias da Silva.


 

 

 

 

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