terça-feira, 21 de agosto de 2018


MOLÉSTIA


(TENSÃO E INTENÇÃO.
ou
AS APARÊNCIAS ENGANAM.)






            O Rio de Janeiro vem perdendo espaços para o TEATRO numa proporção, infelizmente, maior que a da abertura de novas salas. Ainda bem que o povo do TEATRO se adapta a essa triste realidade, resiste bravamente, e aproveita qualquer novo espaço, para desenvolver seus trabalhos, mesmo que isso seja feito “no grito”, sem patrocínios e quase sem apoios, muitas vezes sem boas condições técnicas também.

            No Humaitá (Rua Visconde de Irajá, 98), vem funcionando, já há algum tempo, um espaço alternativo, chamado Reduto, localizado num casarão, abrigando um complexo gastronômico-cultural, com bares, restaurantes, um lindo espaço externo e, o principal, uma sala para a apresentação de espetáculos intimistas, com acomodação para um pequeno e privilegiado grupo de 30 pessoas. Foi lá que, no último sábado (18 de agosto de 2018), tive a oportunidade de assistir a uma peça instigante, impactante, de temática muito forte, pesada, mas que, nem por isso, não deve ser varrida para baixo do tapete. Ao contrário, a montagem deveria ser levada a um número maior de pessoas, uma vez que trata de um assunto que frequenta os noticiários, diariamente, em todas as mídias. A peça aborda o abuso sexual praticado contra crianças. Mais uma vez, infelizmente, a pedofilia é o foco de uma peça teatral, desta vez, pelas mãos ainda incipientes de HERTON GUSTAVO GRATTO, um jovem e ator e poeta, que está vendo seu primeiro texto dramático representado, tornado público, sob uma excelente e criativa direção, também de outro jovem ator, MARCÉU PIERROTTI, o qual também se arrisca, pela primeira vez, num trabalho de direção.

            Ainda que bastante incomodado e mexido – o TEATRO é ótimo para isso -, saí do Reduto muito feliz pelo resultado do espetáculo que me proporcionaram o autor, o diretor e o quarteto de atores.






SINOPSE:

            O casal BRENO (FELIPE DUTRA) e MABEL (CAMILA MOREIRA) hospeda, em sua casa, CADU (CIRO SALES), amigo de longa data, desde a infância, passada próximo a BRENO, dando oportunidade para aprofundarem suas relações dúbias de amizade e atração física. O casal é pai de THIAGO, um menino cuja idade não é revelada, mas fica patente que é muito pequeno.

CADU vinha do cumprimento de dois anos de prisão, por estupro contra uma adolescente de 15 anos. Havia sido condenado a mais tempo, porém houve uma revisão no processo e ele se viu livre da pena.

 CADU é professor e passou a trabalhar numa escola (católica) em que THIAGO estuda, por indicação do casal amigo, além de conquistar a amizade e a confiança do menino.

Mas a confiança entre eles - o casal e o hóspede - é quebrada, quando BRENO e MABEL são chamados à escola, uma vez que fora descoberto que THIAGO, uma criança autista, fora abusado sexualmente.

Todos os indícios apontam para CADU, disparando um agressivo jogo de manipulação, que também envolve a diretora da escola em que o menino estuda, a IRMÃ CONCEIÇÃO, MADRE SUPERIORA (DEBORAH FIGUEIREDO, numa trama que revela as sombras, melindres e julgamentos das personagens e da criação da criança.







            A montagem, muito bem cuidada, por sinal, ainda que franciscana, reúne duas linguagens, para passar a mensagem desejada pelo autor, TEATRO e cinema, este em perfeita harmonia com aquele, servindo de grande apoio à ação dramática. Tal prática não é nenhuma novidade. Muitas peças, ultimamente, têm-se valido dessa combinação, algumas com resultados não tão positivos, até desastrosos, o que não acontece aqui; muito pelo contrário. O espetáculo não poderia existir, pelo menos no ótimo nível em que se dá, sem a utilização das imagens projetadas na parede, em função do espaço físico onde ocorre a encenação e as brilhantes ideias de ocupação desse espaço, por parte da direção. Em apresentações fora do Reduto, a concepção cênica e a utilização das imagens terão de sofrer radicais modificações e, certamente, darão lugar a outro espetáculo, totalmente diferente do que vi.

            Gostei bastante da peça, pela proposta e por diversos fatores, que passo a dissecar, começando pela direção, de MARCÉU PIERROTTI, já que acabei de mencioná-la. O diretor executa um trabalho correto e bastante inventivo, sabendo utilizar cada canto do local em que se dá a representação, imprimindo um tom bem realista ao trabalho e extraindo, de cada ator, uma “verdade” que contagia o público, mesmo o espectador mais insensível, que nem sabe por que está ali. Sim, isso, a “obrigatoriedade” de ir ao TEATRO, acontece. O que ocorre, de verdade, é que ninguém consegue sair daquela sala da mesma forma como entrou.






            A função de MARCÉU vai além do que, simplesmente, cuidar das marcações e indicar, aos atores, o que cada um deve fazer em cena. Ele não só funciona como uma espécie de “guia”, percebendo a forma mais confortável para que cada ator represente, da melhor forma possível, o seu personagem. Ele não se apresenta, neste espetáculo, apenas, como um “montador de cenas”. Essa visão de quem dirige uma peça de TEATRO cedeu espaço a um outro tipo de direção, surgindo a figura do encenador, aquele que se preocupa com o todo, que participa, diretamente, de todos os elementos que vão dar forma ao espetáculo. É aquele que estende seus tentáculos à idealização dos figurinos, da cenografia, da iluminação, da sonoplastia, do visagismo... E, inclusive, durante o processo de montagem, está sempre em contato com o dramaturgo, quando este é vivo, obviamente, para dar e receber sugestões, dentro de como ele pensou em conceber a encenação. É o “maestro” regendo seus regidos. É assim que vejo sua ótima participação neste projeto.

            É muito boa a sua ideia, que também não é original, mas é bem executada, de que os próprios atores modifiquem as posições dos elementos cenográficos, limitados a uma mesa e três cadeiras, além de poucos objetos de cena, como um telefone, uma garrafa de vinho e três taças, por exemplo. O responsável pelo cenário é MARCÉU. Também são os atores que operam a câmera de um telefone celular, com o objetivo de “gerar novas perspectivas ao espectador”, o qual “é convocado a testemunhar não apenas a história contada, mas também a beleza e os ruídos da engrenagem teatral que se desvela no palco”.




            Sem uma boa composição musical, o trabalho do maestro se torna muito difícil. O mesmo se dá com relação às tarefas do encenador, quando o texto não “facilita”, eufemismo para dizer que não é bom. MARCÉU tinha em mãos um bom texto, de HERTON, bastante simples, descomplicado, direto e enxuto, direto, com diálogos muito significativos e muito bem arquitetados. É um texto que atinge, logo nas primeiras cenas, o espectador e não permite que este se distancie delas. HERTON parte de acusações mútuas, difíceis de serem provadas, gerando uma situação em que qualquer um dos quatro personagens poderia ser o verdadeiro culpado por aquele abuso. A cada cena, a cada situação, a cada diálogo, a plateia vai formulando um julgamento, partindo do que está vendo e ouvindo e de suas próprias vivências e conhecimentos do caráter humano, da vida real e dos personagens. E isso pode ir mudando e confundindo, salutarmente, a cabeça do espectador, o que é muito bom.

            A atenção na peça, que o texto e a direção despertam no público, pelo que este vai vendo e ouvindo, também se deve muito ao excelente trabalho do quarteto que forma o elenco: FELIPE DUTRA (BRENO), CAMILA MOREIRA (MABEL), CIRO SALES (CADU) e DEBORAH FIGUEIREDO (MADRE SUPERIORA). Apesar de ter citado o nome de FELIPE DUTRA, seguindo a ficha técnica, não posso avaliar seu trabalho, nesta peça, uma vez que, no dia em que assisti a ele, o ator foi substituído por MARCÉU PIERROTTI.

As quatro atuações são merecedoras de elogios. Cada um conseguiu construir um estereótipo perfeito para seus personagens.




O casal, representado por MARCÉU e CAMILA, vive uma relação “escorregadia”, frágil, longe de parecer uma real vida feliz, em comum; uma relação desgastada pelo tempo e, mais ainda, por terem um filho autista, com o que não sabem lidar. São pais ausentes, culpados e cientes de sua ausência na educação do menino. BRENO demonstra uma grande insegurança, no seu papel de macho, marido, chefe da família. MABEL tem dificuldade de resistir ao assédio de CADU, já que tiveram um relacionamento, breve, ao que parece, quando mais jovens. A insegurança atribuía ao personagem BRENO também está, de certa forma, caracterizando MABE, preocupada com a reeleição do pai a um cargo político. Os dois atores estão excelentes em suas representações.

            Não menos interessantes são as participações de CIRO SALES e DEBORAH FIGUEIREDO. O CADU, de CIRO, é um personagem sedutor e passa a imagem de um cínico contumaz, entretanto a força de sua interpretação, pelo menos para mim, deixou claro que estava sendo sincero, quando numa situação-limite, se viu jogado às feras, acusado de ser o molestador da pobre criança. Seu personagem, por conta do seu poder de sedução, é carismático e, ao mesmo tempo, dúbio. Em todas as suas cenas, o ator se destaca e demonstra que, ainda bastante jovem, já merece uma atenção maior dos críticos e jurados de prêmios de TEATRO. Quanto a DEBORAH, só tenho a dizer que fiquei encantado com sua interpretação da diretora da escola, que se vê numa situação de difícil solução, principalmente por ter de ser dissimulada, ao conduzir a discussão sobre quem seria o(a) pedófilo(a) e como chegar a uma solução para aquele doloroso impasse. 


 


            Extraio, do “release” da peça, um trecho, por considerá-lo muito interessante e bastante de acordo com o que pude ver: “As relações entre os quatro vão se revelando e se desdobrando a cada cena, que subvertem o eixo temporal: a trama se desenrola em dois tempos, alternando instantes de passado e de presente, em uma encenação que coloca a ação muito próxima à plateia, envolvendo o público numa eletrizante experiência de tensão pelo que acaba de ver e curiosidade pelo que está por vir”.

            FERNANDO NICOLAU executa um correto trabalho de iluminação, em consonância com as intenções do diretor.


 





FICHA TÉCNICA:

Dramaturgia: Herton Gustavo Gratto
Direção: Marcéu Pierrotti
Supervisão Cênica: Eleonora Fabião
Supervisão Plástica e Visual: Lívia Flores
Assistência de Direção: Filipe Leon

Elenco: Ciro Sales (Cadu), Camila Moreira (Mabel), Deborah Figueiredo (Madre Superiora) e Felipe Dutra (Breno)
Ator “stand-in”: Marcéu Pierrotti

Cenografia: Marcéu Pierrotti
Figurino: Ticiana Passos
Iluminação: Fernando Nicolau
Fotos: Filipe Leon
Programação Visual: Luísa Figueiredo e Ciro Sales
Realização: Otimistas Artes e Projetos, Marcéu Pierrotti e Reduto








SERVIÇO:

Temporada: De 04 de agosto a 02 de setembro (Possibilidade de se estender por mais uma semana).
Dias e Horários: Sábados e domingos, às 20h.
OBSERVAÇÃO: Como todas as sessões estão com a lotação esgotada, vem sendo apresentada uma SESSÃO EXTRA, aos sábados, às 21h30min.
Local: Reduto
Endereço: Rua Conde de Irajá, 98, Humaitá – Rio de Janeiro.
Valor do Ingresso: R$30,00 (inteira) e R$15,00 (meia entrada).
Duração: 50 minutos
Indicação Etária: 16 anos.







            Recomendo, com empenho, o espetáculo, que merece outras temporadas, além da atual, por ser mais um agente multiplicador das campanhas contra a pedofilia no Brasil.






(FOTOS: FILIPE LEON.)




E VAMOS AO TEATRO!!!

OCUPEMOS TODAS AS SALAS DE ESPETÁCULO 
DO BRASIL!!!

COMPARTILHEM, À VONTADE, ESTA CRÍTICA, PARA QUE, JUNTOS, POSSAMOS DIVULGAR O QUE HÁ DE MELHOR NO TEATRO BRASILEIRO!!!




GALERIA PARTICULAR:
(FOSTOS: ALEXANDRE POMAZALLI.)



Aplausos I.


Aplausos II.




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