terça-feira, 4 de outubro de 2016


DEMÔNIOS

 

 

(LIBERTE OS SEUS

OU ASSUMA-OS...


...E ARQUE COM AS CONSEQUÊNCIAS!)

 




            Falarei de um espetáculo, que cumpriu uma curta temporada e já saiu, infelizmente, de cartaz, porém eu não poderia deixar de escrever alguma coisa sobre ele, por sua qualidade e por tudo o que representa para o moderno TEATRO.

            “DEMÔNIOS” é o nome da peça, escrita em 1983, com texto, inédito, no Brasil, do dramaturgo, romancista e poeta sueco, LARS NORÉN, que teve direção - mais uma excelente - de BRUCE GOMLEVSKY, foi interpretado por um quarteto de ótimos atores, contando com o próprio BRUCE (FRANK), além de GUSTAVO DAMASCENO (THOMAS), LUIZA MALDONADO (KATARINA) e THALITA GODÓI (JENNA). Ficou em cartaz, na Sala Multiuso, do SESC Copacabana, apenas de 25 de agosto a 18 de setembro próximos passados.

            A brevidade nestes comentários deve-se, tão-somente, à minha escassez de tempo, não correspondendo, proporcionalmente, ao grau de satisfação e aprovação que a peça me causou. Gostei demais. Do texto, da direção, da interpretação do quarteto de atores, do cenário...

 


 
SINOPSE:
 
A peça revela a conflituosa e doentia relação entre FRANK (BRUCE GOMLEVSKY) e KATARINA (LUIZA MALDONADO), que decidem convidar o casal vizinho, JENNA (THALITA GODÓI) e THOMAS (GUSTAVO DAMASCENO), enquanto estão à espera do irmão de FRANK para a ida ao funeral da mãe dos dois.
O que começa como um encontro amigável, entre os dois casais, vai se transformando numa noite de revelações, humilhações, provocações sexuais e ataques exibicionistas, recheados de violência, conflitos conjugais e perversões sexuais ao extremo.
Aos poucos, JENNA e THOMAS vão sendo arrastados para dentro do jogo perverso do casal “anfitrião”, dando suporte à dramaturgia de NORÉN, que dá ênfase à vida a dois, à fragilidade das relações e ao sentimento que divide amor e obsessão.
 

 
 
 

O autor do texto, de muito boa qualidade, alíás, não faz qualquer tipo de concessão nem se preocupa em poupar ninguém. O que seria uma reunião entre amigos, vizinhos, com o objetivo de estreitar mais os laços de uma amizade apenas aparente, ou para dividir a insatisfação de conviver um com o outro, transforma-se num lavar de roupa suja, numa discussão da relação, a quatro, sem que haja alguém mais forte ou mais bem preparado que o outro. Quando menos se espera, algum franco atirador move sua metralhadora, mira-a em direção a alguém e dispara uma saraivada, que pode ser fatal.

É tudo tão incrivelmente louco, cruel, agressivo, tudo para incomodar, mesmo, o espectador, tirá-lo de sua zona de conforto e atraí-lo para aquela casa “estranha”, transformada num ringue, no qual é travada uma luta pela sobrevivência, como um representante da raça “humana”, dividida em “rounds”, um mais violento que o outro.

Nada é premeditado. Os embates vão surgindo, estimulados pelo consumo de bebidas e o desejo de soltar, cada um, o seu demônio interior. JENNA e THOMAS, como dois sapos ou ratos do campo, duas presas, são atraídos, hipnoticamente, por duas víboras e empreendem todos os esforços para se livrarem do veneno que irá imobilizá-las, facilitando, aos predadores, o banquete do dia.

É uma peça “pesada”, o que para BRUCE GOMLESVSKY, é só tirar de letra. Para quem já dirigiu e/ou atuou em tantos espetáculos instigantes e totalmente realistas, como “Festa de Família” e “O Funeral”, por exemplo, este é mais um.



 

A peça se desenvolve em torno de conflitos pessoais e intercasais, ou interpessoais, e é marcada, da primeira à última cena, por um realismo assustador.  

O dramaturgo, ainda vivo e em atividade laboral, aos 72 anos, é, hoje, o nome mais conhecido e encenado, internacionalmente, da moderna dramaturgia sueca, digno de se sentar nas cadeiras que foram utilizadas por Strindberg e Bergman, e prima por percorrer, na calada da noite, os becos escuros e perigosos da vida humana, psicológica e familiar, topando com tipos estranhos, exóticos e desprovidos de equilíbrio mental e emocional. Cria-os a partir da realidade que vê.

Segundo BRUCE, no que faço coro com ele, “Podemos dizer que os personagens de LARS NORÉN revelam, ao público, as pulsões mais puras do ser humano, os demônios adormecidos em cada um de nós. Em nossos trabalhos, procuramos dramaturgos de variadas e destacadas expressões artísticas, que fogem da estética convencional”. Isso é uma das marcas da CIA. TEATRO ESPLENDOR.

“O texto de NORÉN é mais uma opção que potencializa a nossa proposta teatral e abre opções de encenação nada previsíveis. Nessa montagem, o público vai assistir ao espetáculo como se fosse um ‘voyeur’, continua o diretor.

Nesta montagem, BRUCE optou por uma configuração semelhante à utilizada em “Festa de Família” e “O Funeral”, ou seja, fugiu do tradicional palco italiano e fez com que as ações transcorressem numa espécie de arena, com o público circundando o espaço cênico, vendo, de cima, no caso da peça em análise, o que acontece lá embaixo, ao mesmo tempo em que se sente participando da ação, deste “encontro social”. Essa ideia potencializa a tensão que o espetáculo provoca e causa reações bem diversas no público. Vi quem escondia o rosto com as duas mãos, ou fechava, temporariamente, os olhos, ou voltava o rosto para o lado, diante de alguma cena que lhes soava como “agressiva”, ou “chocante”, ou sei lá o quê. De uma forma ou de outra, a peça mexe com todo mundo. Provoca, provoca, provoca...



 

            Há um quê de TEATRO DO ABSURDO no ar. É difícil aceitar aquela situação, a passividade de uns, alternando-se com a violência de outros, todos se revezando, vez por outra, nessas atitudes. É preciso que o espectador saiba, antes - leia sobre o espetáculo - o que vai assistir, para não ser surpreendido pelo inusitado, pela transgressão, pelo desconforto, e não com o que estão acostumados, em seus particulares “ways of life”. E não estou me referindo, absolutamente, às cenas em que a atriz LUIZA MALDONADO desfila, pelo espaço cênico, completamente nua. Não é a nudez do corpo que provoca desconforto; é a nudez da alma.

            Há um tom meio macabro, logo nas primeira cena, quando FRANK adentra a sala, carregando uma pequena urna, com as cinzas da mãe, e a coloca sobre a mesa da sala, como quem ali deposita qualquer outro objeto, e se prolonga, posteriormente, na hora em que o marido, num dos ataques, não contidos, de fúria, despeja o conteúdo da tal urna na cabeça da esposa, após esta o acusar de impotência sexual.

O desajuste e o desapego familiar entre FRANK e KATARINA não se limitam à casa dos dois. Vindo de outra cidade, para o funeral da mãe, o irmão de FRANK prefere adiar sua chegada, passando a noite, ele e a esposa, num motel, de beira de estrada, apenas para não perder um jogo de futebol americano, pela TV, pondo em segundo plano o sentimento pela morte da matriarca. Também havia uma cizânia entre KATARINA e a falecida mãe de seu marido, fato que leva a nora a ignorar, talvez até comemorando, a morte da sogra.



 



FRANK e KATARINA vivem cobrando, um do outro, que façam terapia, sob acusações, mútuas, de que o outro apresenta um desequilíbrio emocional, que pode ser corrigido e sanado por um terapeuta, porém nenhum deles é capaz de olhar para dentro de si e enxergar sua própria doença. 

A reunião daqueles quatro enlouqueceria qualquer terapeuta, seja individual ou de casais, já que a psicopatia, ali, se manifestava em todos os níveis, chegando às raias da mais profunda crueldade entre seres “humanos”, tudo isso muito bem arquitetado pelas cenas e pelos diálogos cáusticos e agressivos, criados pelo autor do texto.

            Para a maioria das pessoas, creio, principalmente as que não respiram o oxigênio do TEATRO, a palavra “sucesso”, em termos de espetáculo teatral, se traduz por bilheterias concorridas, lotações esgotadas e críticas favoráveis à peça. Sim, isso “também” é sucesso. Mas, para o realizador, o profissional de TEATRO, em qualquer área ou setor, o sucesso é ver a realização de um projeto sair perfeito, dentro do que foi planejado, proporcionando felicidade aos comprometidos com o projeto, envolvidos nele. “DEMÔNIOS” é sucesso mesmo e merece uma nova temporada.

            O primeiro grande e agradabilíssimo impacto que o espectador sofre, ao adentrar o Mezanino do SESC Copacabana vem por conta do magnífico cenário, de BRUCE e BEL LOBO, reproduzindo um moderno e confortável apartamento de classe média, que ocupa todo o espaço que sobra, tirando o lugar do público. Trata-se, porém, de um apartamento sem paredes, sem divisões de cômodos, uma ideia genial, que deixa à mostra, quarto, sala, banheiro e cozinha, apenas com seus móveis e utensíios, para diferençá-los, tudo muito desorganizado. O caos interior dos personagens se reflete no caos físico dos objetos cênicos, na desarrumação do imóvel. Propositalmente, FRANK e KATARINA quebraram as paredes que separam os cômodos; simbolicamente, quebraram as paredes dos seus escaninhos e deram liberdade aos seus demônios. Teríamos coragem para tal?



 
 
A realidade e a praticidade do cenário permitem, aos atores, um deslocamento, em cena, muito dinâmico e variado. Como não há, na ficha técnica, o nome de alguém responsável pela direção de movimento, creio que todas as marcações e deslocamentos foram orientados pelo próprio diretor artístico, BRUCE GOMLEVSKY.

Digno de todos os elogios é o brilhante trabalho de iluminação, de ELISA TANDETA, fazendo com que dialoguem personagens e luz, para evidenciar as intenções do autor da peça, tão bem decodificadas pela direção.

São bem interessantes, discretos e vestindo, “comme il faut”, os personagens, os figurinos, de ANDRÉA FLEURY, sem destaques maiores.

Quanto ao elenco, sempre admirei o trabalho de BRUCE GOMLEVSKY, tanto atuando como dirigindo, mais uma vez, aqui, em destaque, principalmente se considerarmos quão difícil é dirigir e atuar ao mesmo tempo, ainda que conte com uma boa assistente de direção, como DULCE PENNA.

O elenco, de uma forma geral, se mostra muito homogêneo, com um destaque para o magistral trabalho de LUIZA MALDONADO, o seu grande momento no palco. Jamais a tinha visto de forma tão intensa e exuberante, plena em cena, honrando a personagem que lhe foi reservada. Todos, porém, têm seus momentos de “solo”, quando podem demonstrar seu potencial de ator/atriz. BRUCE dispensa comentáros. GUSTAVO DAMASCENO, tantas vezes dirigido por BRUCE, faz um trabalho brilhante, compondo um personagem contido e reprimido, louco por deixar explodir o que estrá incógnito dentro de si. THALITA GODÓI não faz por menos. Talvez a que tenha menos "horas de voo", dos quatro, consegue construir, irrepreensivelmente, sua personagem, tão louca quanto os outros, embora passe a imagem de lobo em pele de cordeiro.          

 
 



 
FICHA TÉCNICA:
 
Autor: Lars Norén
Tradutor: Karl Erik Schollhammer
Direção Artística: Bruce Gomlevsky
 
Elenco: Bruce Gomlevsky, Gustavo Damasceno, Luiza Maldonado e Thalita Godói
 
Cenografia: Bel Lobo e Bruce Gomlevsky
Figurinista: Andrea Fleury
Iluminador: Elisa Tandeta
Assistente de Direção: Dulce Penna
Projeto Gráfico: Maurício Grecco
Fotos: Dalton Valério e Rubens Cerqueira
Assessoria de Imprensa: Leandro Bertholini
Direção de Produção: Luiz Prado
Realização: Cia. Teatro Esplendor
 

 


 

 

Serve, acima de tudo, o espetáculo, um dos melhores da atual safra, como um alerta para que soltemos os demônios adormecidos dentro de cada um de nós, mas com parcimônia e controle, para não acabarmos num manicômio, quiçá o destino daqueles quatro personagens da peça.

 

(FOTOS: DALTON VALÉRIO

e

RUBENS CERQUEIRA)

 

 
 


 


 



 



 



 




  
 


 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário