sábado, 22 de março de 2014


A BALA NA AGULHA

 

(BATALHA DE EGOS ou DUELO ENTRE UM REVÓLVER E MUITAS PALAVRAS.)

 

 


 

 

Nada pode ser mais prazeroso do que ir a um teatro, tendo de ficar engarrafado por 2 horas e 15 minutos (desesperador), cheio de expectativa por um espetáculo e, depois de 70 minutos, sair de lá em total estado de graça, uma vez que a peça superou, em muito, aquela expectativa. Foi o que ocorreu na última 5ª feira (20/03/2014), depois de ter visto A BALA NA AGULHA, um texto primoroso de NANNA DE CASTRO, dirigido, excepcionalmente, por OTÁVIO MARTINS, interpretado por um trio de atores que me representam: o brilhante EDUARDO SEMERJIAN; um jovem, não menos competente, JÚLIO OLIVEIRA; e uma grande dama da cena brasileira, infelizmente, tão bissexta entre nós, cariocas, DENISE DEL VECCHIO.

 

Não tenho o hábito de recorrer a sinopses alheias; faço-as, de próprios dedos e teclado, de acordo com a minha decodificação do enredo, entretanto, contando com a generosidade e a compreensão de quem redigiu a que consta no programa da peça, por considerá-la perfeita, tomo a liberdade de transcrevê-la, com mínimas adaptações, antes de iniciar minhas considerações sobre o espetáculo:

 

 
“A BALA NA AGULHA” é a história do embate entre um grande “ATOR” de TEATRO, que chegou aos 60 anos doente, sem dinheiro e esquecido, e um jovem “ator”, galã, que desponta, com enorme sucesso, na TV.  Durante uma peça que estão representando, o ator mais velho, CHICO VALENTE, aponta uma arma para o jovem ator, CADU, e o obriga a duelar com ele pela própria vida, numa espécie de “reality show”, onde apenas o melhor ator sobreviverá.  CÉLIA DE CASTRO, atriz que está na plateia, antiga amiga de CHICO e atual colega de trabalho de CADU, na televisão, sobe ao palco para tentar intermediar o conflito e evitar o pior.  Mas o envolvimento afetivo dela com CHICO, no passado e, no presente, com CADU, torna-se mais um ingrediente explosivo neste duelo entre a maturidade e a juventude, o permanente e o descartável, a tradição e a inovação, a entrega por amor e as estratégias em busca do sucesso.   Um drama carregado de humor mordaz e ironia, com uma linguagem enxuta e ágil, que coloca a plateia dentro da trama e a surpreende a cada momento.
 

 


 

Já assisti a vários espetáculos que se encaixam na classificação de “metateatro”, entretanto confesso que, até hoje, nunca havia visto essa ideia, que deixou de ser original faz muito tempo, tão bem explorada e concebida no papel, como neste texto.  Logo, isso o torna muito original e criativo.  No caso, uma companhia de teatro se propõe a encenar o clássico ESPERANDO GODOT, do mestre Samuel Beckett.  Entretanto, dentro da encenação, ainda podemos saborear trechos de Henrik Ibsen e Anton Tchekhov.  Que luxo!

 

CHICO VALENTE é um velho ator, que dedicou a vida ao teatro, mas que está sem dinheiro e esquecido do grande público.  A possibilidade de montar um clássico da dramaturgia universal reacende nele suas esperanças de voltar a atuar e a ganhar bem.  O problema é que o escolhido, por CÉLIA (produtora da montagem), para contracenar com ele é CADU, um jovem galã da televisão, sem muitas referências culturais ou experiência nos palcos.

 

O universo em que corre a trama é o das luzes, dos focos, das purpurinas, o universo das artes – o TEATRO e a TV, no caso -, mas poderia ser transposto para qualquer outra atividade profissional, em que pode ocorrer o “simples” fato de um profissional competente, vencedor, ganhador de prêmios, porém “velho”, se ver ameaçado pela juventude de um incompetente, ignorante, protegido e despreparado dono de uma carinha bonitinha e um corpinho saradão, mas que “vende muito sabonete” (no caso do texto, cursos de inglês).  Esse detalhe pode levar muitos espectadores a se identificar com algum dos dois contendores.  O texto é ótimo, para se discutir o valor do “mérito” no mundo globalizado e imediatista de hoje.  O porquê de se fazer TEATRO de antigamente é o mesmo de hoje?  O TEATRO teria, hoje, o mesmo sentido de ontem?  O público vai ao teatro, hoje, para se informar, se entreter (é claro) e para refletir?  Para ver um bom texto, de um dramaturgo consagrado, ou para ver, de perto, o seu artista preferido da novela das oito?

 

 


 

 

O que se vê em cena, também, é uma velha rivalidade entre algumas pessoas que circulam no universo de duas mídias: TEATRO ou televisão?  O total emprego das maiúsculas e o detalhe do negrito já são o indício do lado que mais valorizo, ainda que não deixe de reconhecer o “adversário”.  Particularmente, faço, aqui, um pequeno parêntese, para dizer que reconheço mais o talento de quem representa num palco, sem desmerecer aqueles que jamais o pisaram, como é o caso de Glória Pires, por exemplo, que parece ter uma profunda relação de amor eterno com as câmeras, o que não é motivo de nenhum desmérito, e, segundo consta, já declarou não ter interesse em fazer TEATRO, o que é digno de todo respeito.  Por outro lado, existe, sabemos todos, uma quantidade enorme de atores e atrizes, principalmente os mais jovens, que despontam, com muito sucesso, na TV, mais por sua plástica do que por seu talento, e que, quando tentam o palco, é um fracasso.  Cada vez que vejo, no TEATRO, um “bonitinho” ou uma “bonitinha”, oriundos da TV, marcando sua passagem no palco com talento, competência, dignidade profissional, não me furto a aplaudir de pé e a dizer: Aí está um/a ATOR/ATRIZ!  Felizmente, isso tem acontecido com boa frequência nos últimos tempos.  É o caso, inclusive, do jovem ator que representa CADU, JÚLIO OLIVEIRA.  Pesquisei sobre sua trajetória, sua história de vida, que achei linda e muito me emocionou (pesquisem vocês também), e sei que já fez mais de um trabalho televisivo, que nunca tive a oportunidade de ver, mas, desde que começou a atuar, em A BALA NA AGULHA, imediatamente, constatei que se tratava de um ATOR.  Como isso me deixa feliz!

 

Um detalhe interessante na escalação do elenco é o fato de que os três atores apresentam pontos em comum com os personagens, como o fato de EDUARDO SEMERJIAN ser, basicamente, um ator de TEATRO; JÚLIO OLIVEIRA ter migrado da TV para o TEATRO; e DENISE DEL VECCHIO ter iniciado sua carreira no TEATRO, fazendo, depois, simultaneamente, TEATRO e TV, e saber jogar bem, e marcar muitos gols de placa, nos dois gramados.

 

NANNA DE CASTRO soube retratar, muito bem, um tema bastante atual, que permeia o texto, do início ao fim, que é viver, e sobreviver, num mundo em que a jovialidade é colocada em primeiro plano e, cada vez mais, as pessoas procuram maneiras eficazes, não importa se éticas ou politicamente corretas, para retardar o envelhecimento e, consequentemente o ocaso.

 

Não sei se o espetáculo foi apresentado, em São Paulo, em teatro de arena, mas acredito que sim, pois o próprio texto assim o exige.  CHICO VALENTE, ao desafiar o insipiente “ator” para três diferentes embates, deseja transformar o espaço cênico numa arena cheia de leões, onde o jovem “ator” será a “vítima” “para o delírio da plateia”.

 

Durante cerca de 90% da peça, alguém tem uma arma (revólver) apontada para outrem, o que gera um clima de tensão fantástico, aproximando atores e plateia.  Há uma ameaça constante de que, a qualquer momento, uma bala sairá do cano e ferirá, mortalmente, alguém, até um dos espectadores (Quem sabe?).

 

Há um constante duelo, aparentemente injusto, no qual alguém sempre levará a melhor, uma vez que só existe uma arma em jogo, contudo, isso não é verdade, porque a outra arma, que não é física, também está em cena, representada pelas palavras, às vezes, mais letais que um tiro.

 

“Bala na agulha” é uma expressão que pode apresentar vários significados, como, por exemplo, ao pé da letra, “uma bala já engatilhada para o disparo” ou, conotativamente falando, as respostas prontas, que uma pessoa tem, para serem ditas, no momento mais indicado.

 

 

 


 

 

 

 





Um pouco sobre a ficha técnica:

 

TEXTO – NANNA DE CASTRO – nada mais a acrescentar: excelente.

 

DIREÇÃO – OTÁVIO MARTINS – Muito boa.  Se o texto faz transbordar um humor corrosivo, cheio de mordacidade, este aspecto foi muito bem explorado pela direção.  Costumo ficar atento a diversos pequenos detalhes, uma das razões pelas quais gosto de ver um espetáculo mais de uma vez, por meio dos quais observo o dedo do diretor e suas possíveis intenções.  Às vezes, “viajo”; outras, mantenho-me estacionado na plataforma de embarque.  Achei muito interessante o detalhe do balanço, no qual o jovem ator se movimenta, em prolongados movimentos (insegurança), enquanto os dois veteranos ATORES, quando dele fazem uso, ficam apenas sentados, parados (estabilidade).  Será?

 

ELENCO – Não preciso desperdiçar palavras para comentar a atuação de cada um dos três:

 

EDUARDO SEMERJIAN – faz um trabalho comovente e convincente.  Acompanho a carreira do ator, nos palcos, e creio que, nesta montagem, ele teve a grande oportunidade de mostrar seu potencial.  E o fez. 



 


Eduardo Semerjian

 

 

DENISE DEL VECCHIO – Para os cariocas, é mais conhecida por seus trabalhos na TV, já que, infelizmente, pouco aparece por aqui com um espetáculo teatral (deveria vir mais).  Considero-a, sem nenhum favor, uma das maiores atrizes brasileiras.  E, aqui, limito-me ao TEATRO, já que não tenho muita oportunidade de assistir a novelas (nada contra).  Embora seja difícil, sua missão, a do personagem, é intervir como mediadora, na contenda, e, a despeito de também vir a ser alvo de agressões verbais por parte dos dois personagens masculinos, consegue manter-se, até onde o limite permite, tranquila, e sai vitoriosa, como, talvez, a vencedora de uma duelo, no qual sua participação não estava nos seus planos.  Faz um trabalho impecável, além de ser uma bela figura em cena.

 

 


Denise Del Vecchio

 

 


 

 

JÚLIO OLIVEIRA Que coisa boa ver esse rapaz em cena! 

Na ficha técnica do espetáculo, também aparece o nome de ALEXANDRE SLAVIERO.  E eu fiquei pensando que houvesse um quarto personagem.  Só depois, entendi que o papel de CADU é interpretado pelos dois atores.  O que não sei é se eles se revezam, na temporada carioca, ou se JÚLIO ficou sendo o titular do papel nesta curtíssima temporada de três semanas.  Até gostaria de ver ALEXANDRE, como CADU, mas a lembrança que guardarei, para sempre, de JÚLIO, na pele do personagem, é a de um jovem grande ATOR, que, espero, ainda nos brindará com outras brilhantes atuações.  Tornei-me um admirador do seu trabalho.

 

 


Júlio Oliveira

 

 

DESENHO DE LUZ – PEDRO GARRAFA – Logo nas primeiras cenas, não me contive e sussurrei aos amigos que me acompanhavam: Que luz linda!  Assim foi até o final da peça.

 

CENÁRIO – CLÁUDIO SOLFERINI – Foi a primeira coisa que me chamou a atenção, logo que adentrei a arena do SESC Copacabana.  Muito bonito!  Os galhos secos, presos ao teto, e as folhas secas, espalhadas pela arena, remonta ao outono, que, curiosamente, se iniciava naquele dia e que, simbolicamente, é a estação que representa o amadurecimento e a velhice (de CHICO) - (Primavera = nascimento, o novo que surge.  Verão = vigor, força, auge da juventude.  Outono = amadurecimento, época de colher os frutos, velhice.  Inverno = morte, o fim).

 

 


 

 

 


 

 

FIGURINOS = MARICHILENE ARTSEVISKS – bem interessantes.

 

TRILHA SONORA = OTÁVIO MARTINS – Boa.  Acho que deva ser uma vantagem a trilha sonora ser feita pelo próprio diretor do espetáculo.  Talvez seja mais fácil escolher a música que melhor contribuirá para que o público embarque nas intenções do “maestro” da montagem.

 

Quando falei, acima, da expectativa de um quarto personagem, posso dizer que ele existe.  Não fisicamente, mas se “materializa” por meio de toques da tradicional campainha do teatro, que marca os sinais, para o início do espetáculo.  ÉDEN, um contrarregra, participa das ações, operando luz e som, previamente acordado com  CHICO VALENTE, e atende às solicitações dos personagens, principalmente as de CHICO, acendendo este ou aquele refletor, fazendo tocar esta ou aquela música e, o mais importante, respondendo, afirmativa ou negativamente, aos questionamentos que lhe são feitos, com um ou dois toques da campainha, respectivamente.  Quase sempre, um toque; quando a aciona duas vezes...  É preciso assistir ao espetáculo.  Não vou contar.

 

Valeu a pena tanto sacrifício, para chegar ao Espaço SESC Copacabana, onde a peça ficará em cartaz apenas até o dia 30 de março, sempre às 5ªs, 6ªs e sábados, às 20h30min, e, aos domingos, às 19h.

 

 

(FOTOS – DIVULGAÇÃO / PRODUÇÃO / FACEBOOK.  Observação: nas fotos de cenas do espetáculo, o ator que interpreta o personagem CADU é sempre ALEXANDRE SLAVIERO; não foram encontradas fotos com o ator JÚLIO OLIVEIRA).

 

3 comentários:

  1. Gilberto, bela percepção da metáfora do balanço... Parabéns! Não havia embarcado nesta viagem, mas pensado agora, notei que, ao final, Chico Valente enrosca-se no balanço, simbolizando toda a sua desorientação naquele momento.

    Eis um belo espetáculo, que certamente agradará qualquer amante das artes cênicas!

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  2. A peça tem um texto muito inteligente. Ótimo espetáculo.

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