“A BALEIA”
ou
(UM
TURBILHÃO
DE EMOÇÕES.)
ou
(DE COMO A
DOR
E A DEGRADAÇÃO
HUMANA NOS INCOMODAM.)
Já se passaram alguns dias após eu ter assistido ao espetáculo “A BALEIA”, no Teatro Adolpho Bloch, por duas vezes, e ainda guardo bastante da emoção com que voltei para casa naquela noite, totalmente impactado com o que vi no palco. A peça é das melhores coisas que tive a oportunidade de conhecer nos últimos anos e, certamente, a se pautarem os prêmios de TEATRO pela meritocracia, deverá ganhar muitos prêmios, ao final do ano teatral de 2025.
SINOPSE:
Um homem de
meia-idade, um professor, de quase 300 kg, chamado Charlie
(JOSÉ DE ABREU), que se esconde do
mundo, dentro de seu apartamento, tenta se reconectar com sua filha de 17
anos, Ellie (GABRIELA FREIRE).
Os dois se
separaram, quando a menina tinha apenas 9 anos, depois que Charlie
abandonou sua família, para ficar com seu amante “gay”, Allan
(Não
aparece na história.), que, mais tarde, morreu.
Charlie, então, passou a comer compulsivamente, de dor e culpa.
O
protagonista é cuidado por uma velha amiga enfermeira, Liz (LUISA THIRÉ) e é visitado por um jovem, missionário de uma igreja
evangélica, o Irmão Thomas (EDUARDO SPERONI), que deseja “salvá-lo”.
Quase ao
final da trama, entra em cena sua antiga esposa, Mary (ALICE BORGES).
A peça data de 2012 e foi escrita por SAMUEL D. HUNTER. É
ambientada na cidade de Moscou, no estado de Idaho.
Toda a trama dura menos que uma semana. Tem como personagens o protagonista, Charlie,
um professor de língua inglesa e literatura, que ministra aulas “on-line”,
sem utilizar a câmera, com a idade em torno dos 40 anos; Liz,
uma amiga de Charlie e enfermeira, que cuida dele, porém alimenta a sua
compulsão por comida, levando-lhe, diariamente, “fast food”, apesar do enorme peso de Charlie e de seus próprios apelos para que ele procurasse melhores
cuidados médicos; Élder Thomas, um jovem missionário mórmon; Ellie, a filha afastada
de Charlie;
e Mary,
a ex-esposa do protagonista. Ellie não vê nem falava com o pai
havia 8 anos, graças à guarda total da mãe, até que, um dia, ela
aparece no apartamento dele, sem que Mary o saiba.
Um pouco sobre o autor da peça, extraído de uma
pesquisa que fiz: SAMUEL D. HUNTER é um dramaturgo
norte-americano, conhecido por suas obras que exploram temas de isolamento,
redenção e fragilidade humana, muitas vezes ambientadas em pequenas cidades dos
Estados
Unidos. “A BALEIA” (“The
Whale”, no original.), uma de suas peças mais aclamadas, estreou em 2012
e recebeu elogios pela sensibilidade com que aborda a história de um professor
de inglês recluso e com obesidade severa, que tenta se reconectar com sua filha
adolescente. HUNTER
diz que suas reflexões sobre o ensino foram o ponto inicial de inspiração
para “A BALEIA” e que ele só adicionou o aspecto da obesidade mais
tarde, como uma forma de fazer o professor ter uma “distância” do público e
dos outros personagens. E também justifica a presença de um jovem missionário
mórmon como uma forma de “autoproteção ou distanciamento”,
para que ele pudesse “escrever sobre religião, mas de uma forma
que não parecesse muito próxima de casa”. E mais: que usou o personagem
Elder
Thomas como uma “espécie de conexão improvável com Deus”.
“A BALEIA”, em 2022,
deu origem a um filme de drama psicológico americano, tendo
estreado no “Festival Internacional de Cinema de Veneza” e foi lançado, nos Estados Unidos, ao apagar das luzes de 2022,
tendo sido premiado, nas categorias de Melhor Ator e Melhor Cabelo e Maquiagem, no Oscar de 2023.
Voltando à peça, creio que,
dificilmente conseguirei assistir, neste ano de 2025, a algo que se
aproxime da qualidade desta produção brasileira. O espetáculo, que está sendo
mostrado no Teatro Adolpho Bloch (VER SERVIÇO.) é algo arrebatador, que me
obrigou a revê-lo, para poder captar melhor todos os seus detalhes, com o
objetivo de poder escrever, a contento e como gosto, esta crítica. A trama é
milimétrica e cuidadosamente projetada, como numa partida de xadrez, em que
cada jogada corresponde a uma nova surpresa, que vai num crescendo, pautada em
novas pistas, que se entrelaçam, até chegar ao magnífico desfecho. Mais uma
vez, afirmo que a espinha dorsal de uma grande peça, principalmente um drama, é o texto, o que sustenta, ou, no mínimo, é o pontapé inicial para uma perfeita produção
teatral. Aqui, todas as peças de um quebra-cabeça vão se ajustando e formando
um grande painel sobre a degradação humana, que atinge a todos os personagens,
com menor carga, a meu juízo, sobre Liz.
O autor do texto pressiona, com muita
força, os dedos sobre feridas do passado e do presente, mais sobre aquelas do
que estas, e isso causa danos irreparáveis aos personagens, e quem mais os
sofre é Charlie.
A plateia não consegue piscar, durante os
100
minutos de duração da peça, os quais passam sem que o percebamos, e, mesmo que tente resistir, se vê levada a
exercer uma profunda empatia pelo protagonista, vivido de forma admirável pelo
grande ator JOSÉ DE ABREU. O bom
espectador, aquele que sabe se comportar na plateia de um teatro, se vê
projetado ao palco e, como uma esponja, absorve todo o drama daquele homem
recluso e obeso, que tenta se reconectar com a filha, enquanto enfrenta os
desafios de seu passado e sua saúde debilitada. Ele o faz, ao que me parece,
não para se desculpar, propriamente, de sua decisão de abandonar a família,
para viver o amor verdadeiro e a felicidade merecida ao lado de outro homem.
Não posso, entretanto, me desviar do pensamento de que, ao mesmo tempo, aquela
tentativa de aproximação de Ellie tinha, sim, o motivo de, em
parte, ficar em paz consigo mesmo, com relação à função paterna.
Charlie vivia em constante drama de
consciência, por não saber o que a igreja evangélica frequentada pelo amor de
sua vida fez com este, levando-o a um estado pleno de depressão, que culminou
com o seu suicídio. Aquela incógnita o fazia se sentir culpado, embora não
soubesse bem por quê.
Um dos principais, se não o principal,
aspecto abordado, com bastante firmeza, no texto, é a repressão, por parte da religião, a Igreja da Luz Universal,
em relação aos homossexuais e de que forma a não aceitação por parte da
comunidade e da família pode levar a conflitos internos tão intensos, que
tornam viver uma tarefa difícil de suportar, um peso quase impossível de ser
carregado, como aconteceu ao namorado do protagonista. Charlie foi muito
corajoso, ao se decidir por deixar uma família tradicional constituída, ainda
que disfuncional, para assumir sua homossexualidade, em nome de um estado de
prazer, felicidade e harmonia plena, o que, infelizmente, não saiu como era
previsto.
O
cuidado verificado nesta produção faz com que todos os elementos da peça
convirjam para um estado de total perfeição. A cenografia, de BIA JUNQUEIRA, é um verdadeiro achado.
O aspecto geral do apartamento é de falta de cuidado, aproximando o seu
morador, Charlie, da categoria de um “acumulador”, a julgar
pela enorme quantidades de objetos inúteis espalhados pelo ambiente, com
destaque para uma quantidade absurda de embalagens de pizzas. A cenografia
reflete o interior do personagem. Também me chamou a atenção, no cenário,
o detalhe de um painel, que sobe e desce, onde são projetadas indicações dos
momentos em que se dão as cenas, estas como se fossem quadros, e as imagens dos
alunos, numa reunião pelo “zoom”, durante as aulas do
professor Charlie. Merece destaque, ainda, sobre o cenário, um elemento
cênico que entre na cena final da peça, sobre o qual não farei comentários,
para não tirar o prazer da surpresa, e que compõe a magnífica solução
encontrada pela direção para tal cena, que também não será comentada, para não
dar “spoiler”.
CARLOS ALBERTO NUNES assina os
excelentes figurinos, todos muito adequados aos personagens, com destaque
para o do protagonista. Para que Charlie aparentasse os quase
300 quilos de peso, foi-lhe feito um traje único, especialmente
confeccionado com enchimentos de espuma, utilizando-se tecidos naturais e
sintéticos especiais. Um detalhe curioso é que, para que tal material não
fizesse alterar a temperatura corporal do ator, por dentro do traje, à altura
do ventre, existem duas bolsas de gelo, cada uma comportando 2 quilos, como elemento
de climatização.
A
ótima iluminação é de MANECO
QUINDERÉ, que funciona muito bem em cada cena e na passagem de uma a outra.
Sendo
o TEATRO
a arte do coletivo, não posso me furtar a citar os nomes de quem pôs seu
tijolinho para a construção desta obra, começando por FEDERICO PUPPI, que, mais uma vez, no TEATRO, colabora com uma trilha
sonora original que se encaixa nas diversas situação da peça. MONA MAGALHÃES deixou sua contribuição
na parte de visagismo. JACYAN
CASTILHO colaborou com a direção de movimento. E JANE CELESTE fez a preparação vocal do elenco.
Quanto a este aspecto, normalmente, não há o que ser dito, uma vez que todo
ator tem a obrigação de saber projetar sua voz e com uma perfeita dicção. No
caso do uso de microfones, menos ainda tem a ser comentado. Nesta peça, todos os
atores são microfonados, entretanto um voto de louvor a JANE se deve, em particular à emissão vocal de JOSÉ DE ABREU, que, por sua constituição física, precisa falar de
um modo especial, arfante, mas que tem de ser captado pelo público, como ocorre
durante toda a peça.
A
seleção do elenco é um dos maiores acertos desta produção, a começar pelo
protagonista. JOSÉ DE ABREU, muito
dedicado a outras mídias, estava afastado dos palcos desde 2013, quando se
apresentou na comédia “Bonifácio Bilhões”. Já fazia muita
falta e fez sua “reentrée” no TEATRO em grande estilo, na pele de Charlie,
um personagem muito difícil de ser construído e representado e que deve custar
ao ator muito sacrifício físico. É impossível e injusto negar-lhe os mais
calorosos aplausos e gritos de “BRAVO!”, por seu irretocável trabalho. O seu Charlie não parece ser; ele "o é".
LUISA THIRÉ, mais uma vez, honra a “dinastia
Carrero/Thiré”, com uma emocionante interpretação de Liz,
que é, talvez, a detentora de um dos maiores segredos do texto, o qual, quiçá, seja
o responsável por tanto amor e dedicação ao amigo Charlie. LUISA sabe dosar muito bem as suas
emoções e controlar suas reações, diante de todos os outros personagens com os
quais contracena.
Não
esperava nada diferente da parte de EDUARDO
SPERONI, que faz um brilhante trabalho em cena. Acompanho sua trajetória
sobre as tábuas desde 2016, salvo engano, na peça que
marcou o panorama teatral da época, “Caranguejo Overdrive”, e, de lá
para cá, não tenho perdido nenhum dos espetáculos de que fez parte, como ator,
todos com um ótimo rendimento. Só quem já foi procurado por um missionário
mórmon, como eu, pode ter ideia do comportamento desse tipo de gente. EDUARDO “incorporou” um perfeito (Irmão)
Elder Thomas. O personagem também guarda um segredo, que vem à tona no momento exato para isso.
A
minha mais grata surpresa, com referência ao elenco, recai sobre a
jovem GABRIELA FREIRE, em seu
primeiro grande trabalho profissional, interpretando Ellie, a filha de Charlie.
Nunca a tinha visto em cena e fiquei muito feliz com o que GABRIELA me ofereceu, em
termos de interpretação. A personagem, ainda que aparente ter passado por uma
transformação, ao final da peça, é extremamente cruel com todos, principalmente
com o pai. Ellie é uma criatura “brigada com o mundo”, “rebelde
e de temperamento forte”, no dizer de Charlie, como que para
desculpar as atitudes esdrúxulas da filha. O trabalho de GABRIELA é merecedor de prêmios de TEATRO, bem como o de
outros do elenco, mormente JOSÉ DE ABREU.
O/a
ator/atriz, quando “tem garrafas vazias para vender”, não precisa ser protagonista
nem estar em cena o tempo todo. Na montagem do musical “Pippin”, há alguns anos,
com direção
de Charles Möeller e Claudio Botelho, a inesquecível DONA Nicette
Bruno tinha uma única aparição, como a avó do protagonista, que durava
cerca de 15 minutos, se muito, e, simplesmente ganhava toda a plateia,
que ia ao delírio com sua participação. Da mesma forma, ALICE BORGES, em “A BALEIA”,
só aparece no final da peça, como Mary, a ex-mulher alcoólatra de Charlie,
e fica em cena também por uns 15 minutos, uma aparição meteórica,
porém marcante, na trama, e merece aplausos fartos.
Faltou falar do trabalho cirúrgico de direção. LUIS ARTUR NUNES, um grande diretor de atores, deixa, aqui, a sua marca de um competente profissional, sabendo como alinhavar e costurar todas as cenas de uma peça que é uma espécie de “narrativa em mosaico” e que aborda temas diversos e complexos, como isolamento, reconexão, intolerância religiosa, homofobia, gordofobia, culpa e empatia, “sempre a partir de personagens humanos, complexos e cheios de contradições”. “É um material encharcado de emoção”, como se coloca o diretor, que também assina a tradução do texto.
FICHA
TÉCNICA:
Texto:
Samuel D. Hunter
Tradução:
Luis Artur Nunes
Direção:
Luis Artur Nunes
Elenco:
José de Abreu, Luisa Thiré, Gabriela Freire e Eduardo Speroni
Participação
Especial: Alice Borges
Coordenação
Artística: Felipe Heráclito Lima
Cenário:
Bia Junqueira
Figurino:
Carlos Alberto Nunes
Iluminação:
Maneco Quinderé
Trilha
Sonora: Federico Puppi
Visagismo: Mona Magalhães
Preparação
Corporal: Jacyan Castilho
Preparação
Vocal: Jane Celeste
Assistente
de Direção: Claudio Benevenga
Assistente
de Cenografia: Victor Aragão
Assistente
de Figurino: Arlete Hammond Rua
Desenho
Gráfico: Cadão
Fotografia: Renato Mangolim
Mídia
Social: Lab Cultural
Assessoria
de Comunicação: Vanessa Cardoso | Factoria Comunicação
Assessoria
de Imprensa: Daniella Cavalcanti
Direção
de Produção: Alessandra Reis
Coordenação
de Produção: Wesley Cardozo
Produção
Executiva: Cristina Leite
Lei de
Incentivo: Natália Simonete
Produtores
Associados: Alessandra Reis e Felipe Heráclito Lima
SERVIÇO:
Temporada:
de 06 de junho a 20 de julho de 2025.
Local: Teatro
Adolpho Bloch.
Endereço:
Rua do Russel, nº 804 – Glória – Rio de Janeiro.
Informações:
(21) 3553-3557.
Dias e Horários:
De quinta-feira a sábado, às 20h; domingo, às 18h.
Valor
dos Ingressos: De R$ 25 (meia-entrada) a
R$ 160 (inteira), dependendo da localização do assento.
Desconto
Caixa Residencial: clientes CAIXA Residencial têm 50% de desconto na compra de
até dois ingressos.
Horário
de Funcionamento da Bilheteria: De terça-feira a sábado, das 12h às 20h;
domingos e feriados: das 12h às 19h.
Vendas
online: https://www.ingresso.com/espetaculos/locais/teatro-adolpho-bloch
O
teatro conta com um totem, para vendas de ingressos, localizado ao lado da bilheteria.
Indicação
Etária: 14 anos.
Duração:
100min (sem intervalo).
Capacidade:
359 lugares.
Gênero:
Drama.
Por fim, além de dizer que RECOMENDO, COM A MAIOR CONVICÇÃO, A PEÇA, faz-se
necessário dizer que ela não é para puro lazer e divertimento. É muitíssimo
mais: é sobre conflitos emocionais, superação e saúde física e mental, refletindo questões além da superfície. Fala
mais de conflitos emocionais e dificuldades de superação do que sobre
obesidade.
FOTOS: RENATO MANGOLIM
É preciso ir ao TEATRO, ocupar todas as salas de espetáculo, visto que a arte educa e
constrói, sempre; e salva. Faz-se necessário resistir sempre mais. Compartilhem esta
crítica, para que, juntos, possamos divulgar o que há de melhor no TEATRO
brasileiro!
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