“PRIMA FACIE”
ou
(A
DESAGRADÁVEL SURPRESA
DE UM BURACO
PROFUNDO APÓS UMA CURVA NA ESTRADA.)
ou
“PAU QUE DÁ
EM CHICO
DÁ EM
FRANCISCO.”
ou
(É “MASTERCLASS”
DE TEATRO
QUE SE FALA? É!!!
Ah! O sempre revigorante prazer de assistir, entre um infeliz “equívoco” e outro, infelizmente, a um VERDADEIRO ESPETÁCULO DE TEATRO! No caso, a peça é “PRIMA FACIE”, já em cartaz desde o dia 02 de maio próximo passado, ficando, no Teatro Adolpho Bloch, até 30 de junho (2024), uma raridade, nos dias de hoje – uma temporada de dois meses -, espetáculo que, de saída, já RECOMENDO COM O MAIOR EMPENHO e ao qual assisti na segunda semana da temporada, há mais de um mês e meio atrás, e me deixou extremamente impactado, encantado. Antes de mais nada, quero esclarecer que a vontade de escrever sobre a peça era enorme e pensei até em começar o trabalho tão logo, naquela noite, chegasse a casa, mas só me concentrei nele na manhã do dia seguinte. Este texto já estava quase pronto há muito tempo (Recebeu um oportuno adendo agora.), contudo não havia sido publicado ainda por conta das fotografias, para sua ilustração, que demoraram a me chegar.
O título da peça deve ser lido como é escrito. Trata-se de uma expressão latina, que, literalmente, deve ser traduzida como “à primeira vista”, modernamente se aproximando do sentido de “em face disso”, “No contexto jurídico, é usada para se referir a uma evidência ou conjunto de fatos que, se não forem refutados, são suficientes para provar uma determinada reivindicação ou conclusão”. Fugindo ao “juridiquês” e tentando aproximar o conceito ao nível de “língua de gente simples”, para facilitar o entendimento, nada mais é do que uma prova considerada cabal, categórica, decisiva, que permita a suposição ou consolidação de um fato, “a menos que seja refutada”. É aí, exatamente, que “mora o perigo”! Isso, porque pode acontecer de uma “prima facie” não se sustentar ou cair por si só. Coisas da “Justiça” (Contém ironia.) Como isso pode acontecer? Acontecendo, pois nunca podemos nos esquecer de que “a Justiça é cega”. (Contém sarcasmo. Assumo o que escrevo.) Para não entediar os que me dão o prazer e a honra de ler estas considerações críticas sobre uma peça teatral, julgo ser mais producente e agradável passar logo à SINOPSE do texto.
SINOPSE:
Em cena, DÉBORA
FALABELLA vive a personagem Tessa, uma
jovem, brilhante e muito bem-sucedida advogada de defesa criminal, especializada
em defender homens acusados de agressão e abuso sexual, e que, depois, é
agredida, passando à condição de vítima.
Vinda de uma família
pobre, ela batalhou e venceu no complexo mundo da advocacia.
Ao mesmo tempo que
experimenta o sucesso, Tessa
precisa encarar uma crise que a obriga a rever uma série de valores e
princípios, além de refletir sobre o sistema judicial, a condição
feminina e as relações conturbadas entre diversas esferas de poder.
Um acontecimento inesperado a obriga a enfrentar a
contraposição do poder patriarcal da lei, a exigência do ônus da prova e a
força de uma “moral” machista.
A causídica muda sua
visão do sistema jurídico, depois que ela própria foi agredida sexualmente.
Não
sei se SUZIE MILLER, a autora deste
texto dramático, um dos melhores a que tive acesso nos últimos anos, ao escrevê-lo,
tinha a noção do impacto que ele causaria, no público e na imprensa
especializada, a ponto de levá-la a ser convidada para debater sobre o
tema central da peça numa assembleia da ONU, sobre o abuso contra as mulheres.
Isso não se deu por acaso; é fruto do brilhantismo e da transparência de sua
escrita, da maneira como ela trata o problema. Ainda mais: o texto de “PRIMA FACIE” passou a ser desejado e
disputado por produtores do mundo inteiro e se transformou num vetor para
incentivar debates e esforços, com o objetivo de mudar algumas leis britânicas.
SUZIE MILLER.
(Foto: Wikipédia.)
A
violência contra as mulheres é um dos atos dos mais abjetos e desumanos, que,
infortunadamente, enfrentamos e ainda são muito acobertados por uma sociedade
machista e uma “Justiça” (SEMPRE A GRAFAREI
ENTRE ASPAS.) injusta, ainda que algum leve alívio já exista,
como, por exemplo, a aplicação da “Lei Maria da Penha”; mas muito
ainda tem que ser feito. O tema da peça, além de universal, é, incrivelmente,
atual, principalmente agora, no Brasil, quando a sociedade civil se revolta,
indignada, contra um considerável número de “parlamentares” (TAMBÉM
MERECEM ASPAS.) hipócritas, inclusive (PASMEM!!!) cerca de 40 mulheres,
a grande maioria de “falsos evangélicos”, exigindo urgência na votação de um
projeto de lei que torna rés, com pena de 20
anos de reclusão, mulheres, de qualquer idade, que procurem um
atendimento médico para realizar a interrupção, já legalizada, de uma
gravidez indesejada, quando fruto de um estupro, o que equivale a dizer que será
mais imputada que o agressor, o criminoso, o “porco ordinário”, o “monstro”
que a obrigou, à força de uma violência, a consumar um coito.
Via
de regra, mostro-me muito cético diante de um sucesso estrondoso, meteórico, que se
transforma num grande fenômeno, da noite para o dia, com relação a qualquer
coisa. Não que isso não seja possível, porém, na grande maioria das vezes,
acabo constatando que tudo não passava de um “fogo de palha”, expressão
muito usada popularmente, mas que a maioria dos que a usam não se dão o
trabalho de entender-lhe o significado: “empolgação que dura pouco tempo; algo que
parece intenso e importante, mas que acaba rápido; é transitório, efêmero”,
tal qual o efeito veloz e devastador do fogo que se alastra pela palha seca.
Era, na verdade, alguma coisa “fabricada”, um falso sucesso,
desprovido de qualidade, alavancado pelo poder e pela força da mídia, muitas
vezes objetivando algo escuso. Isso, ABSOLUTAMENTE, jamais seria o caso
de “PRIMA FACIE”. A ascensão da peça
ao topo do sucesso se dá por conta de ser algo pelo que as sociedades, mundo
afora, tanto ansiavam ouvir e ver.
“PRIMA FACIE”, uma peça dramática, um
verdadeiro fenômeno, uma vez que, desde quando foi escrita, em 2019,
pela dramaturga australiana-britânica SUZIE MILLER, vem alcançando números astronômicos, sendo merecedora disso. Estreou,
no mesmo ano em que foi escrita, no dia 17 de maio, no Teatro dos Estábulos (Nome mais
estranho para um Teatro!!!), em Sidney, Austrália, e, de lá até
hoje, já foi encenada em mais de 60 países –
Acho isso um fato histórico e digno do maior destaque, se considerarmos que, praticamente,
um ano e meio, no meio desse período, os Teatros estiveram fechados, por conta
da pandemia de COVID-19.), tendo sido a montagem londrina indicada a
cinco prêmios "Laurence Olivier", com conquistas de “Melhor Nova Peça” e “Melhor
Atriz”, para Jodie Comer,
que, posteriormente, ganhou um “Tony Award”, pelo mesmo papel, na Broadway.
Atualmente, além da montagem brasileira, há muito mais outras, espalhadas pelo
mundo. Com relação a prêmios, se prevalecer o critério da meritocracia, a produção
nacional deverá abiscoitar muitos prêmios, em várias categorias. Sinto muito,
mas se isso não acontecer, esses prêmios poderão perder muito de seus créditos;
para mim, pelo menos, além do que já vêm perdendo.
Digo,
escrevo e assino embaixo que aquilo que DÉBORA
FALABELLA, como atriz, e YARA DE NOVAES,
como diretora,
nos proporcionam, sem nem levar em consideração a pujança do texto, em “PRIMA FACIE”, é uma AULA
DE TEATRO como poucas vezes se pode ver, uma verdadeira “Master
Class”. Para quem, porventura, ainda não saiba o significado da
expressão em inglês, ela foi criada a
partir da união de duas palavras: “master” (mestre) e “class” (aula), que
quer dizer uma aula oferecida por um mestre em determinado assunto: SUZIE, na dramaturgia; YARA,
na condução
da batuta; e DÉBORA, no ato de “dar
vida” à personagem. O espetáculo, que, aparentemente, possa ser de
interesse apenas do público feminino, na verdade, é também, praticamente, voltado,
tanto quanto, para o masculino. É, acima de tudo, uma obra de arte que merece,
a meu juízo, ser alçada ao nível de OBRA-PRIMA. Ajuda as mulheres a
aprender como devem se defender ante a inseguridade que
enfrenta no seu cotidiano, a misoginia, a discriminação e objetificação sexual e
o fato de ser educada a assumir uma posição subalterna e a obedecer a um padrão
de comportamento imposto pelo machismo, incluindo o estrutural.
Em
sua melhor atuação, mesmo considerando tantas outras excelentes da atriz às
quais pude assistir, DÉBORA FALABELLA,
num trabalho de profunda entrega à personagem, regida pelo seu incomensurável
talento, na pele de Tesse, narra a história sob o ponto de vista da personagem.
Tanto o público leigo quanto aqueles que são “do meio” sabemos que,
para qualquer ator/atriz, assumir um papel de protagonista – até porque só existe ele/ela em
cena – num monólogo, é um grande desafio. No caso desta peça, parece-me
que esse “risco” é superlativado, pelo quanto de emoção o texto oferece
à atriz que representa a personagem, exigindo o mesmo dela. DÉBORA, no entanto, assume a empreitada com total correção e faz com que a plateia não perca a atenção e o interesse
pelo que vê e ouve no palco. É impossível não se envolver, emocionalmente, com
aquela representação, que não parece ser ficção, e sim a mais crua das realidades.
É de tirar o fôlego e deixar o espectador como se nocauteado, ao final de uma
violenta luta de vale-tudo.
(Foto: Reprodução Instagram.)
O
arco dramático do texto e da personagem vai sendo construído de uma forma totalmente
inesperada para o público; e genial. Durante, aproximadamente, o primeiro terço,
dos 90
minutos de encenação, tudo parece fluir bem, quando a personagem se limita a lembrar,
orgulhosamente, os
muitos casos profissionais em que venceu, assim
como relembra momentos agradáveis e felizes, “normais”, que viveu, como
as festas das quais participou e as pessoas interessantes que conheceu ao longo
de sua vida, tanto na esfera de relação do trabalho quanto fora dele. De
repente, não mais que de repente, o curso da narrativa toma outra direção e
começa a atingir o espectador, da mesma forma como assustou a personagem,
momento a partir do qual ela passa a falar de assédio e violência sexual
praticados contra si própria. É como se o assistente, na plateia, estivesse
dirigindo, placidamente, por uma estrada e, após uma curva, se visse,
subitamente, caindo dentro de um profundo buraco, com danos quase irreparáveis
para o veículo. Com mais propriedade, quase irreversíveis para quem o conduz.
Comprovam
as estatísticas que, no Brasil, um tipo de violência contra
a mulher é praticado a cada 8 minutos, e as crianças são o alvo
maior dos criminosos, quando se trata de violência sexual. Os números podem ser ainda maiores do
que os divulgados, se considerarmos que, de cada 100 casos estimados desse
tipo de violência, apenas 7 são registrados. A violência contra as mulheres, por aqui, continua a ser uma grave questão
de direitos humanos, como revelam os dados do “Atlas da Violência 2024”.
Esse número alarmante destaca a necessidade de providências cabais, severas e
coordenadas, para proteger as mulheres e meninas no país. Isso é seriíssimo,
porque as agressões sexuais foram o tipo
de violência mais recorrente registrado
contra, principalmente, meninas
de 10 a 14 anos em
nosso país (49,65%), em 2022, aponta o “Atlas”.
Ao me deparar com a interessante cenografia de ANDRÉ CORTEZ, confesso que estranhei
ver móveis empilhados, ainda que de forma harmoniosa, é verdade: mesas e
cadeiras. Estranhei aquela imagem, que me pareceu insólita, mas que,
certamente, seria explicada com o decorrer da peça. Eu esperava, pelo menos. Demorei
bastante para entender a proposta – Fui pensando, pelo caminho de volta a casa.
-, se é que a minha decodificação não possa equivaler a uma “viagem”
de alguém com, digamos, uma imaginação excessiva. Como os móveis estão distribuídos
em mais de um plano, penso que aquela disposição possa ter uma relação com a
ideia de uma estrutura social, em que a mulher esteja representando um ser subalterno,
ou inferior, em relação ao “macho alfa”, condição esta
explícita na dramaturgia, embora isso não seja uma verdade. FÁBIO NAMATAME desenhou figurinos
que são trocados à vista da plateia, distribuídos entre uma toga, veste que
caracteriza profissionais da "Justiça", e trajes, digamos, “civis”. Outros detalhes
que merecem destaque, entre os artistas criadores, é o desenho
de luz, assinado por WAGNER
ANTÔNIO, e a instigante e expressiva trilha sonora, de responsabilidade
de MORRIS.
FICHA TÉCNICA:
Texto: Suzie Miller
Tradução: Alexandre Tenório
Direção: Yara de Novaes
Atuação: Débora Falabella
Cenografia: André Cortez
Figurino: Fabio Namatame
Iluminação: Wagner Antônio
Trilha Sonora: Morris
Consultoria Jurídica:
Maria Luiza Gomes e Mateus Monteiro
Assistência de Direção: Ivy Souza e Renan Ferreira
Coordenação Administrativa: Coarte
Assessoria de Comunicação: Pedro Neves / Clímax Conteúdo
Fotos: Annelize Tozetto
Produção Executiva:
Catarina Milani
Direção de Produção: Edson Fieschi e Luciano Borges
Realização: Borges & Fieschi Produções e Antes do Nome
SERVIÇO:
Temporada:
De 02 de maio a 30/06 de 2024.
Local:
Teatro Adolpho Bloch.
Endereço:
Rua do Russel, nº 804 – Glória – Rio de Janeiro - RJ.
Dias e
Horários: De 5ª feira a sábado, às 20:00; domingo, às 18:00.
Valor
dos Ingressos: R$150 e R$ 75.
Duração:
90 minutos.
Classificação
Etária: 12 anos.
Gênero:
Drama.
Yara de Novaes
(Foto: Murilo Basso - Jornal "Estado de Minas".)
Não resta a menor dúvida de que “PRIMA FACIE” é uma das melhores
produções deste ano, até o presente momento, sendo mais do que uma simples peça
de TEATRO para o entretenimento. É,
muito mais que isso, um exemplo da ARTE
a serviço das pessoas, da sociedade; um alerta, para que o discurso da defesa
das mulheres não fique apenas no plano das teorias e, sim, seja posto,
concretamente, em ação.
FOTOS: ANELIZZE TOZETTO.
VAMOS AO TEATRO!
OCUPEMOS TODAS AS SALAS DE
ESPETÁCULO DO BRASIL!
A ARTE EDUCA E CONSTRÓI, SEMPRE; E
SALVA!
RESISTAMOS SEMPRE MAIS!
COMPARTILHEM ESTA CRÍTICA, PARA
QUE, JUNTOS, POSSAMOS DIVULGAR O QUE HÁ DE MELHOR NO TEATRO BRASILEIRO!
Fiquei super curiosa em assistir essa peça através da sua crítica tão bem fundamentada, Gilberto. Adoro o trabalho da Débora. Quero assistir!
ResponderExcluir