domingo, 17 de setembro de 2023

 

“MATAR OU MORRER – EUCLIDES DA CUNHA E DILERMANDO DE ASSIS”

ou

(UM OUTRO VIÉS PARA A

“TRAGÉDIA DA PIEDADE”.)

 



         Apesar de só estar sendo publicada agora, esta crítica foi escrita a mão, na cidade de Barrie, na província de Ontário, Canadá, onde eu me encontrava em férias. O motivo de ela ter sido escrita a mão, para, posteriormente, ser digitada, recebendo o acréscimo de ilustrações de imagens, é que não me acostumei, ainda, a trabalhar com um “notebook”, o qual poderia ser levado para onde eu fosse; mas já estou me preparando para adquirir um. É impossível, para a minha atividade, viver sem uma dessas máquinas infernais. Sim eu sou do século passado (Momento descontração.)



         A peça em tela já saiu de cartaz, no dia 27 de agosto próximo passado, tendo cumprido temporada no Centro Cultural Justiça Federal, mas fiz questão de deixar o registro da minha admiração por ela. Como só pude assistir ao espetáculo no penúltimo dia que antecedeu a minha viagem (17 de agosto/2023) e por estar, à época, com o meu computador avariado, nas mãos de um técnico, para reparo, não consegui escrever a crítica que a peça merecia, o que faço agora, com imenso prazer. Gostei demais desta montagem e não poderia, por isso, deixar de escrever sobre ela, ainda que de forma mais simplificada, porém abundante em verdade.



         O texto foi escrito por MIRIAM HALFIM, a qual me fez o convite, recebeu a direção de ARY COSLOV, contando com um excelente elenco, formado por SÁVIO MOLL, MARCELO AQUINO e MARIA ADÉLIA.




 SINOPSE

No espetáculo, uma juíza, interpretada por MARIA ADÉLIA, é tão obcecada pela história de amor e ódio, envolvendo um triângulo amoroso, formado entre o escritor Euclides da Cunha (SÁVIO MOLL), Dilermando de Assis (MARCELO AQUINO) e Anna de Assis, personagem que não está, presencialmente, nesta peça, que acaba se tornando mediadora de um reencontro fictício e turbulento, promovido por ela, entre Euclides, marido de Anna, e Dilermando, jovem amante desta, numa espécie de “limbo da existência”


 


 


         Três detalhes, de saída, precisam ser mencionados. O primeiro é que a chamada “tragédia da Piedade” é considerada “o grande drama social republicano do início do século XX”, envolvendo toda a sociedade brasileira de 1909, em torno de uma questão que é muito cara aos homens, a “honra”, principalmente para os machistas de plantão. “Traição se pune com sangue, lavagem da honra, matando o ‘inimigo’”. A “tragédia” aconteceu no subúrbio carioca, no bairro da Piedade, quando o Rio de Janeiro ainda era a capital do Brasil. Euclides da Cunha, famoso escritor, autor do clássico “Os Sertões”, não era um bom marido para Anna Emília, a "S'Anninha", e, diante da traição de sua esposa com o jovem cadete do Exército Brasileiro, Dilermando de Assis, bem mais jovem que ela, enquanto Euclides passou um longo tempo afastado da família, principalmente aquele em que esteve presente no cenário da “Guerra dos Canudos”, tomou a decisão de lavar sua honra com sangue”. No duelo, a bala, travado pelo dois, Euclides levou a pior e sucumbiu, morto por Dilermando, após aquele ter atingido, o irmão deste, Dinorah de Assis (Estava no lugar errado, na hora errada.), que o levou, posteriormente à condição de paraplégico, até seu suicídio, na águas do Rio Guaíba, em 1921Dilermando atirou, pois, em Euclides em legítima defesa, motivo que o fez passar por dois julgamentos, tendo sido inocentado nos dois, fato que foi desaprovado, e jamais perdoado, pela maioria da sociedade da época. Se, hoje em dia, em pleno século XXI, ainda vemos acontecer, diariamente, casos de feminicídio, pelo fato de, infelizmente, alguns homens não aceitarem o fim de um relacionamento afetivo, considerando-se donos, proprietários, de suas esposas, noivas ou namoradas, o que se poderia esperar de pessoas que viviam sob a "égide" de uma falsa moral, muito imposta pela religião, principalmente? Destarte, o homicídio ao marido traído, pelo amante de sua esposa, tornou-se um escândalo, pondo em cheque a discussão sobre o “valor da honra”. E Euclides foi considerado, duplamente, a vítima de toda a fatal trama.




         O segundo detalhe a ser destacado é o fato de a personagem da juíza, de certa forma, ter a ver com MIRIAM HALFIM, uma vez que a autora do texto, segundo o “release” do espetáculo, que me chegou às mãos, via Dobbs Scarpa – Assessoria de Imprensa, também foi tomada por um enorme interesse pela “tragédia”, depois de ter conhecido a história de Dirce de Assis Cavalcanti, filha de Dilermando de Assis, hoje com 90 anos. Dona Dirce foi apontada, tantas vezes, como “a filha do assassino”, tendo sofrido “bullying”, na escola e na vida, por causa do julgamento moral da sociedade que condenou seu pai — mesmo absolvido em dois tribunais —, por ter matado o consagrado escritor, em legítima defesa – é bom que se repita.



E o terceiro detalhe está afeto ao título da peça, que reproduz a intenção com que Euclides fora à procura de Dilermando, naquele fatídico 15 de agosto de 1909. Há relatos de que, quando foi à casa do amante de sua esposa, Euclides teria dito: “Vim para matar ou morrer”. E já entrou atirando. Na verdade, Dilermando, apontado, tantas vezes, como assassino, nunca tivera a intenção de matar. Euclides, sim, saiu de casa com esse propósito, bem claro, em mente. “Mas, por ser membro da ‘Academia Brasileira de Letras’, a imprensa ficou do lado dele.”. Euclides era um homem que passava muito tempo fora, viajando. Nessas ausências, Anna, que se sentia muito só, foi com os filhos para uma pensão, onde conheceu Dilermando, que, na época, tinha 17 anos, e ali eles se apaixonaram. Segundo MIRIAM HALFIM, “a peça é uma tentativa de promover um encontro entre os dois, 114 anos depois, e buscar um pouco de paz”.



Felicito a dramaturga pela ideia de levar ao palco uma obra que revisita um dos maiores escândalos de amor, que abalou, ao extremo, a mídia da época. De uma forma muito original e criativa, MIRIAM traz a lume um discurso que dividiu, radicalmente, a opinião pública. O que mais louvo, na iniciativa da autora do texto, é o desejo de resgatar a moral e o caráter de um homem, verdadeiramente, de bem, que, por matar o marido de sua amante, foi julgado e considerado inocente, amparado pela tese de legítima defesa. Não “da honra”, mas física; a defesa de vidas humanas. Vítima da sanha extrema dos que o condenavam, no seio da opinião pública, muito alimentada pela imprensa da época, mereceu um segundo julgamento, no qual se ratificou a sentença aplicada ao primeiro.



Duas teses jurídicas pontuaram aqueles dois julgamentos. Uma, como já mencionei, a que livrou o assassino das grades, é a da legítima defesa, pela maneira como Euclides procurou, deliberadamente, sua esposa, a quem maltratava bastante, e o jovem Dilermando, para matá-los, na frente dos próprios filhos. Não era intenção de Dilermando revidar a violência de Euclides, entretanto, como numa tragédia grega, o escritor matara, antes, acidentalmente, o irmão do cadete, e teria feito o mesmo com os dois “caçados”, como animais selvagens, se Dilermando não tivesse atingido de morte seu “algoz”. Por ser militar, o assassino do escritor sabia como manejar uma arma de fogo, ao passo que Euclides, além de totalmente transtornado, mordendo-se de ciúmes, não tinha a menor intimidade com um armamento de fogo.



Um recorte sociológico de época, infelizmente, “justifica” o porquê de uma postura tão "inquisitória" contra o assassino. Euclides se apoiava numa segunda tese, que vigorou, durante muito tempo, no Brasil, a qual preconizava a absolvição para assassinos que cometeram suas atrocidades em nome de uma pretensa “legítima defesa da honra”, tese esta que, felizmente, não faz mais parte das figuras jurídicas em vigor, surgida no Código Penal Brasileiro de 1940 e julgada inconstitucional no ano em curso de 2023.



MIRIAM HALFIM foi muito feliz na construção de uma dramaturgia que reúne, num encontro fictício, promovido por uma juíza, os dois litigantes, saídos de seus túmulos, mais de 100 anos após aquele infortúnio.



Não se trata, absolutamente, de um terceiro julgamento, muito menos de se procurar impingir uma culpa a um ou a outro. Ou, muito menos, à mulher, a qual, depois de, oficialmente, viúva, acabou por contrair núpcias com Dilermando. Dois grandes méritos tem o texto: a originalidade e a carpintaria dramatúrgica, muito bem representada pelos diálogos – justos e necessários -, entremeados por passagens narrativas, dirigidas, diretamente, à plateia, com a quebra da quarta parede.



Apoiado num impecável texto, ARY COSLOV desenvolveu sua proposta de trabalho, como diretor, com um ótimo rendimento, repetindo o sucesso da dupla (ARY / MIRIAM) em outras peças: “Meus Duzentos Filhos”, “Freud e Mahler” e “O Homem do Planeta Auschwitz”, tirando partido, inclusive, do ambiente. Os dois protagonistas entram em cena vindos de um piso inferior (Os camarins do Teatro do CCJF ficam ali situados.), por uma escada que dá acesso ao fundo do palco, como se saíssem de seus túmulos, para voltar ao mundo dos vivos. E pelo mesmo caminho saem de cena, ao final da peça, apaziguados, para um merecido descanso eterno, para ambos, depois de, até ali, uma relação muito conturbada. Essa marcação é um grande "achado".



ARY administra muito bem o deslocamento e o posicionamento dos atores em cena, e provoca bastante curiosidade no público, ao fazer com que o espetáculo inicie com uma atriz – não a personagem – MARIA ADÉLIA, situando a plateia na narrativa que vai acontecer sobre aquelas tábuas. Depois de uma espécie de prólogo, que antecede a entrada em cena de Euclides e Dilermando, ADÉLIA deixa bem clara sua transformação em personagem, a juíza, colocando uma peruca e calçando um par de sapatos, à mostra, quase no proscênio. É a materialização da magia e do “milagre” do TEATRO, à vista dos espectadores.



O elenco da peça atua em total sintonia, visto ser formado por três grandes nomes do TEATRO BRASILEIRO: SÁVIO MOLL, MARCELO AQUINO e MARIA ADÉLIA. O primeiro incorpora o gênio irascível de Euclides e, repetidas vezes, demonstra – o personagem – sobrepor a emoção à razão. AQUINO, por sua vez, muito cônscio de sua correta atitude, procura – o personagem – fazer com que o “cego” Euclides desça de sua pose de “marido herói traído” até o limiar do real. Ambos os atores realizam um excelente trabalho de interpretação. Ainda que sua personagem seja considerada, tecnicamente, secundária, MARIA ADÉLIA, com seu talento de atriz, valoriza o papel, pondo-se como uma ótima mediadora, à procura de uma solução final, boa para ambos os combatentes. Conquanto procure se manter neutra, nota-se, levemente, que, na sua balança, o prato referente a Dilermando pesa um pouco mais, obviamente, já que é a visão, muito clara e transparente de alguém que prioriza a razão. Com relação a isso, outro detalhe que achei bem interessante foi o fato de MIRIAM HALFIM ter preferido uma juíza a um juiz. É importante que, cada vez mais, as mulheres ganhem um merecido protagonismo na sociedade, em todos os seus setores.




Dentro dos atuais padrões de dificuldade para se conseguir o grande feito de conseguir montar uma peça de TEATRO, o espetáculo não se curva ao luxo, podendo, até mesmo, ser considerado uma produção “franciscana”, porém com todos os setores de uma montagem teatral funcionando a contento: a cenografia, de MARCOS FLASKMAN; os figurinos, de WANDERLEY GOMES; a iluminação, de AURÉLIO DE SIMONI; e a trilha sonora, de ARY COSLOV.






 FICHA TÉCNICA:

 

Autora: Miriam Halfim

Direção: Ary Coslov

 

Elenco: Marcelo Aquino, Maria Adélia e Sávio Moll

 

Cenário: Marcos Flaksman

Figurino: Wanderley Gomes

Iluminação: Aurélio de Simoni

Trilha Sonora: Ary Coslov

Assessoria de Imprensa: Dobbs Scarpa Assessoria de Comunicação

Assessoria de Mídias Sociais: Rafael Gandra

Fotos: Guga Melgar

Produção Executiva: Osni Silva

Diretor de Produção: Celso Lemos

 

 


 



         Quando assisto a um espetáculo como este, deixo-me levar por um misto de alegria e tristeza. Alegria, por ter tido acesso a uma montagem de tão excelente qualidade; tristeza, por ver que tanto sacrifício e empenho para erguer um espetáculo teatral chegue a um público tão pequeno, num espaço bem acanhado e realizado numa temporada muito curta, com menos sessões do que, realmente, merecia, de 03 a 27 de agosto de 2023.

 

 

 



FOTOS: GUGA MELGAR



GALERIA PARTICULAR:


Com Miriam Halfim.


Com Ary Coslov.


Com Sávio Moll e Maria Adélia.


Com Marcelo Aquino.


Cumprimentado Sávio Moll.

 

 

 

VAMOS AO TEATRO!

OCUPEMOS TODAS AS SALAS

DE ESPETÁCULO

 DO BRASIL!

A ARTE EDUCA E CONSTRÓI,

SEMPRE!

RESISTAMOS, SEMPRE MAIS!

COMPARTILHEM ESTE TEXTO,

PARA QUE, JUNTOS,

POSSAMOS DIVULGAR

O QUE HÁ DE MELHOR

NO TEATRO BRASILEIRO!





































Nenhum comentário:

Postar um comentário